sexta-feira, 25 de maio de 2018

DAS BARBÁRIES PARA A CIVILIDADE NA HISTÓRIA DAS NAÇÕES EM GIAMBATTISTA VICO: LUZES PARA REFLEXÃO SOBRE DOIS MOMENTOS DE TENSÃO NO BRASIL.


Comunicação apresentada no XI colóquio vaziano "Democracia e Sociedade: Conquistas e Desafios. Entre os dia 24 e 25 de maio. (comunicação em processo de publicação)
Isaias mendes Barbosa[1]
isaiasredentorista@hotmail.com
RESUMO: A presente comunicação objetiva tratar das barbáries no processo de constituição e civilização humana, na história das nações, segundo o pensamento de Giambattista Vico (1696-1774), na sua mais brilhante obra: a Ciência Nova (1744). Por conseguinte, essa exposição será relacionada com dois pontos históricos de tensão humana no Brasil, a saber, a ditadura militar e a contemporaneidade. Ora, a concepção do “percurso das nações”, enquanto “Ciência da Vida Civil” ou Ciência Humana, é marca inovadora e característica do filósofo napolitano no seu projeto de nova ciência distinta daquela tratada na tradição, isto é, a ciência (metafísica) do mundo natural. Tal história ideal das nações passa por um processo de humanização em três idades que podem se entrelaçar historicamente: a idade dos deuses, a idade dos heróis e a idade dos homens. Porém, cada momento histórico de autoconstituição do ser humano, – pelos seus costumes, línguas, direitos, leis, governos, culturas e mentalidades – passa por duas barbáries (a barbárie dos sentidos, a barbárie da retornada) e o risco iminente de uma terceira barbárie, a da reflexão. Todavia, cada estado de barbárie não é estaque em si, mas aberto, sob a luz da providência divina, como possibilidade para a civilidade, conservação e preservação humana nos seus princípios fundamentais, sem os quais ela não pode subsistir. Assim as três barbáries estão em relação estreita com a civilidade e os princípios metafísicos de existência humanitária, política e civil. Isso nos serve de inspiração para a nossa sucinta e breve reflexão sobre a história e situação social – política do Brasil, entre 1964 e 1974, assim como na situação de crise que passa o país. Tendo como base metodológica uma reflexão analítica e exposição sobre a temática referida, apresentamos as seguintes considerações: i) as três barbáries na Ciência Nova de Giambattista Vico; ii) os três princípios universais e necessários para a civilidade humana; iii) colocações crítico-reflexiva sobra a ditadura Militar e a atual  crise política (um estado de exceção?) a partir da ideia viquiana de barbárie e civilidade. A pesquisa conclui que as três barbáries se definem geralmente como ausência ou negação de civilidade, do mundo criado pela humanidade, o mundo Civil. Elas são um desvio ou negação dos costumes ou princípios metafísicos do humano – religião, matrimónio e sepultura –, e dos demais princípios que se deduzem a partir deles. Porém, cada barbárie é marcada por um processo, ou possibilidade (de retorno) de humanização. A partir disso, refletimos sobre as situações de barbáries que se deram na Ditadura Militar, com certa relação àquela apresentada no pensamento viquiano. Por conseguinte, refletindo sobre alguns fatos e acontecimentos da nossa conjuntura brasileira, destacamos que um certo tipo de barbárie perdura no nosso país, por diversas vias, de modo velado ou descrito como força do ocaso, no âmbito social e político brasileiro. Por fim, em vista das ultimas decisões, ora antiética (Impeachment de Dilma Rousseff), ora inconstitucional (prisão do ex-presidente Lula), dentre outras, destacamos o risco de uma barbárie indicada por Vico: a barbárie da reflexão. Quando o homem utiliza-se da racionalidade e intelecto para fazer mal à humanidade. Quando não há uma sensibilidade para com a sociedade e o bem comum, mas a paulatina desumanização e destruição de civilização humana.    
PALAVRAS – CHAVE: Percurso das nações; Metafísica civil; Barbáries; Reflexão; Brasil.
Introdução
          O projeto viquiano de pensar e descrever a história humana enquanto Ciência é uma das propostas mais geniais deste pensador que estava à frente de seu tempo. Tal projeto é uma resposta para o problema da ciência (metafísica) do mundo natural que, segundo Vico, tenta, sem êxito, apresentar os princípios universais e necessários de onde se fundamenta a realidade do cosmo. A propedêutica da proposta viquiana, sobre o mundo humano, está na afirmação de que a única realidade conhecida para o ser humano é aquela que ele mesmo cria, isto é, o mundo humano, o mundo das nações. Daí podemos observar uma história ideal de todos os povos, uma ciência do “mundo civil”. Porém, o curso das nações começa na origem de todos os povos, na distinção entre dois tipos de história: a história sagrada e a história profana. É pela negação daquela que o homem decai na sua humanidade e, no meio da selva, sem nenhuma lei, racionalidade, divindade, que o governe, se torna bárbaro (1º ponto).
          O contato com o mundo natural e a providência divina faz esses bárbaros terem uma ideia de Deus e adentrar na primeira idade, a saber, a dos deuses. Daí começa um processo de criação de si, de humanização que se faz pelos três princípios da civilidade: a religião, o matrimónio e a sepultura (2º ponto). O processo de civilidade segue mais duas idades: a dos heróis e a dos homens. Porém, pode acontecer que tal processo seja interrompido, quando, retorna no tempo as características da primeira barbárie. Assim acontece a barbárie retornada, enquanto que uma suposta terceira barbárie (da reflexão) é intuída como o grande risco de negação e destruição humana, num tempo posterior, em que a sociedade está no seu estado humano e civil equilibrado. Ora, tal base filosófica nos é útil para refletir sobre a barbárie que se deu no Brasil no período da Ditatura Militar e na atual crise que passamos, pois suspeitamos que contemporaneamente corremos o risco de uma terceira barbárie que se relaciona diretamente com o atual estado de exceção (3º ponto).
I) as três barbáries na Ciência Nova de Giambattista Vico
O findar do século XVII e o início do século XVIII é um período transitivo de mudanças paradigmáticas no universo da educação, da cultura, da religião e da política napolitana. Essa viragem cultural tem como preocupação os diversos saberes da época e da vida civil, o destaque está na novidade de um método cartesiano – física cartesiana –(VICO, 1998, p.102), que predomina como condição de saber verdadeiro, e a exaltação das ciências geométricas e instrumentais em detrimento dos saberes relacionados aos studios humanitatis: a história, a retórica, as letras, a literatura e a poesia. É nesse universo conflitivo que Giambattista Vico (1668 – 1744) desenvolve, de modo revolucionário, o projeto de uma nova Ciência. Não aquela ciência que segue o método matemático para descrever a realidade humana, não mais aquela ciência do mundo natural, a quem só Deus conhece porque é o autor que a fez (VICO, 2005, p.172), mas a ciência das nações, a ciência do mundo civil, pois esta foi feita pela própria humanidade, por força da Providência divina. Na obra Ciência Nova (1744) Vico trata de um saber enciclopédico e metafísico sobre a humanidade, desde sua originalidade necessária, comum e útil. Sua proposta de Ciência da Vida Civil considera todos os saberes da tradição literária antiga, renascentista e moderna, desprezados em sua época, que são úteis, enquanto material de pesquisa, para conhecer o único mundo construído pelo arbítrio e fazer humano, o mundo civil.
Tais saberes descrevem as nações nos seus costumes, nas suas línguas, nos seus governos originários e gestativos. No resgate dessa literatura, pela abordagem filosófica e filológica, Vico descreve a história ideal das nações, desde seus princípios metafísicos do mundo civil. Porém, para categorizar tal ciência histórica, o autor defende que o percurso das nações passa por um ciclo histórico elítico, conforme a “divisão das três idades que os Egípcios diziam terem transcorrido antes do seu mundo, a dos deuses, a dos heróis e a dos homens” (VICO, 2005, p.667). A primeira idade é precedida, na história pelo povo que recusou a tradição adâmica – do povo hebreu – e negando a religião de seus pais, e os princípios de humanidade, se debandaram num errar ferino. Daí surge o estado pré-humano distinto daquele presente na história sagrada:
[...] para as nações de todo o restante do mundo a questão devia passar-se de outra maneira. Porquanto a raça de Cão e Jafeth devem ter-se dispersado pela grande selva desta terra, num errar ferino de duzentos anos; e assim, vagabundas e solitárias, devem ter produzido os filhos, com uma ferina educação, desnudada de todo o costume humano e privadas de toda a fala humana e, por quanto num estado de animais selvagens. (VICO, 2005, p.65)
Ora, esse primeiro momento prévio, de negação da história sagrada, trata do estado primitivo humano, a saber, o da primeira barbárie. Esse estado é o momento propedêutico da primeira idade a que percorreram todas as nações (gentis). Os bárbaros eram os “primeiros homens, estúpidos, insensatos e horríveis bestiagas” (VICO, 2005, p.211), denominados de bárbaros, pois estavam ausentes de qualquer pensamento racional, sem nenhum temor a qualquer divindade ou aos seus pais. Nesse sentido a barbárie primeira se reporta àqueles primeiros homens de natureza cruel, povos não domesticados pelas leis, que viviam de uma natureza ferina, pois “devem ter andado num errar bestial, porque, ao fugirem das feras (que deviam abundar sobejamente na grande selva da terra) e ao perseguirem as mulheres esquivas e relutantes [...], deviam encontrar-se dispersos por toda a terra” (VICO, 2005, p.160). São aqueles que:
[...] sem qualquer temor de deuses, de pais ou mestres, que esfria o excesso exuberante da idade da idade juvenil-, devem ter aumentado desmesuradamente as carnes e os ossos, crescido vigorosamente robusto e, assim, terem se tornado gigantes. Esta é a ferina educação, e num grau mais feroz daquela em que [...], César e Tácito fundam a causa da gigantesca estatura dos antigos Germanos, como foi a dos Godos. (VICO, 2005, p.206)
Vico sustenta que esta primeira barbárie configura o percurso inicial humano gentílico para que o homem adentrasse nas selvas da terra e resistisse ás forças da natureza. O contato com a natureza, o medo dos fenômenos naturais, levaram tais bestiagas a possuírem “um pavoroso pensamento de uma qualquer divindade” (VICO, 2005, p.180). É a partir de então que os primeiros homens, no seu estado barbárico, iniciam os primeiros passos para sua humanidade. Nesse processo, segundo Vico, o homem passou por um ciclo de natureza, costumes, direitos, estados, línguas e jurisprudência, caraterístico das três idades, a saber: a dos deuses, a dos heróis e a dos homens. Quando se encerram as três idades, a história humana retoma, porém, ao seu início, ou seja, retoma ao seu curso (ricorso), quando os homens voltam para o seu estado bestial. Todavia, no percurso ideal das nações pode acontecer uma segunda barbárie, quando a humanidade chega a retroceder ao seu estado de natureza primitivo e inumano.
Trata-se, portanto, de um retrocesso na história, uma negação das leis fundamentais, seus princípios universais e necessários, que geram, regem e mantem a humanidade civilizada. Vico sustenta que na história humana tal barbárie aconteceu na Idade Média, no declínio do Império Romano. Essa segunda barbárie é chamada de regressada, porque descreve a retomada de alguns elementos da primeira barbárie, porém, no contexto já civilizatório, socializado, formado com suas leis, estados, governos e culturas. Se a barbárie primitiva se situa na fundação da humanidade (ainda no seu estado de irracionalidade, imerso nas paixões, preenchida pelas faculdades pré-reflexivas, com uma qualquer ideia de divindade, e com atos bestiais), na barbárie retornada esses elementos se manifestam novamente:
Regressaram certas espécies de juízos divinos, que foram denominados “purgações canónicas”; demonstramos, acima, que uma espécie de tais juízos, nos tempos bárbaros primeiros, foram os duelos, que, porém, não foram reconhecidos pelos cânones sagrados. Regressaram os latrocínios heroicos; dos quais vimos acima que, tal como os heróis se tinha atribuído a honra de serem chamados “ladrões”, assim foi título de senhoria aquele, que de “corsários”. Regressaram as represarias heroicas, que observamos acima terem durado aos tempos de Bártolo. E porque as guerras dos tempos bárbaros últimos foram como aquelas dos primeiros, todas religiosas, tal como vimos há pouco, regressaram as escravaturas heroicas, que duraram muito tempo entre essas mesmas nações cristãs. (VICO, 2005, p.795)
Assim se sucedeu em Roma, após ter sido assolada pelos bárbaros. Foi o declínio dos princípios metafísicos civilizatório do povo romano. A negação ou deturpação da lei, o voltar para imersão dos sentidos, das paixões bestiais. Daí, na história romana, após a segunda barbárie, aconteceu um novo ciclo, de acordo com a sucessão das três idades, dos três estágios de línguas, de culturas, de educação, de política e governos. Disso resulta o retorno de vários elementos presentes na primeira barbárie, como certas espécies de juízo divino, os latrocínios, as represarias, a tirania das leis e a violência, dentre outras coisas no processo de declínio humano. E desse modo houve o retorno dos feudos divinos, que na primeira barbárie foi a selva que Hercules ateou fogo para o cultivado. Do mesmo modo se deu com os feudos de Roma. Porque sucedeu por toda a parte “as violências, as rapinas, os assassínios, pela suprema ferocidade e arrogância daqueles séculos barbaríssimo; [...] não existindo outro meio eficaz de refrear os homens, desobrigados quer de todas as leis humanas, quer da divina” (VICO, 2005, p.796). Deste retorno, observamos a retomada inicial do curso das coisas humanas e civis conforme os três Estados, a saber, aristocrático, democrático e monárquico.
No entanto, após esse tipo de barbárie, Vico apresentar os riscos de uma terceira barbárie, que decorre do afastamento dos seus princípios fundantes e fundamentais da humanidade. Nesse sentido, ele apresenta a terceira barbárie como sendo pior que a segunda, isto é: a barbárie da reflexão. Trata-se não somente da negação dos princípios da humanidade, no âmbito da educação, da cultura, da ética e da política que rege a civilidade, mas da própria negação das faculdades de base do entendimento humano, pré-reflexivo: o engenho, a imaginação e a fantasia. Além disso, podemos sustentar que trata-se de um excesso de racionalidade que nega a própria existência humana.
[...] uma vez que tais povos, à maneira dos animais, se tinham acostumado a não pensar em mais nada se não nos seus próprios interesses particulares, e cada um tinha atingido o cume das comodidades, ou para melhor dizer, do orgulho, á maneira das feras que, ao serem minimamente contrariadas, se ressentem e se enfurecem, e assim [...], por tudo com obstinada facções e desesperadas guerras civil, passam a fazer das cidades selvas e das selvas covis de homens; e desse modo, ao longo de vários séculos de barbárie, vão-se enferrujar as grosseiras subtilezas dos engenhos maliciosos, que tinham feito deles feras mais imanes com a barbárie da reflexão. (VICO, 2005, p.842)
A intuição desta terceira barbárie é marcada pela frivolidade e pelo descuido em relação aos saberes, culturas e práticas fundamentais à humanidade. Se a barbárie da reflexão ocorrer, os seres humanos desumanizados se tornarão basicamente selvagens, vivendo sob a aparência amável, porém imersos na má fé e ação desumana. Daí, deste estado perigoso, as nações terminarão sucumbindo, vítimas da sua própria debilidade e corrupção. Acontecerão, assim, guerras terríveis contra os inimigos internos e externos. Por sua vez, a civilização decairia e os homens se espalhariam, as cidades cairiam, e sobre as suas ruínas cresceria novamente a floresta. Desse modo, um ciclo se completaria na história e daria início a outro novo.  
II) os três princípios universais e necessários para a Civilidade Humana
Ao tratar do percurso das nações enquanto ciência do mundo civil, Vico apresenta na Ciência Nova (1744) os princípios metafísicos pelos quais a humanidade no seu estado originário, deixou o estado bestial, portanto, barbárico, para se formar, ou se constituir enquanto humana, sociável, civil. O material cronológico das nações está na primeira parte de sua obra. É a partir deste material, com uma abordagem filosófica e filológica, que Vico destaca os princípios pelos quais todas as nações tiveram sua origem, desenvolvimento e formação. Estes princípios são conhecidos por fazerem parte do fazer humano, do seu arbítrio, e de uma realidade nunca antes refletida como ciência: o mundo das nações. Essa realidade, esse saber metafísico-civil promovido indiretamente pela providência divina, portanto, teologia civil, se demonstra como a única possível de ser conhecida, pois é fruto direto da práxis humana:
Agora, uma vez que este mundo de nações foi feito pelos homens, vejamos em que coisas perpetuamente concordam e ainda concordam todos os homens, porque tais coisas poderão fornecer-nos os princípios universais e eternos, tal como devem ser de toda a ciência, sobre os quais surgiram todas as nações e todas se conservam. (VICO, 2005, p172)
Esses princípios fazem parte dos costumes que as nações tiveram em comum, desde a formação das coisas, dos hábitos, da cultura, da educação, das línguas, das leis, dos governos humanos na sua Antiguidade. Esses elementos culturais comuns, e do arbítrio humano, são os instrumentos utilizados para encontrar os princípios da vida civil. Nessa reflexão Vico apresenta os três princípios geradores das nações:
Observamos que todas as nações, [...] se bem que fundadas separadamente, afastadas entre si por imensos espaços de lugares e tempos, conservam estes três costumes humanos: que todas têm alguma religião, todas contraem matrimónio solene, todas sepultam os seus mortos; nem entre as nações, mesmo as selvagens e cruéis, se celebram acções humanas com mais requintadas cerimonias e mais consagradas solenidades do que religiões, matrimónios e sepulturas. (VICO, 2005, p.172-173)
Esses três princípios concordam com a décima terceira máxima, ou dignidade, que considera ideias uniformes de povos desconhecidos como princípio comum de verdade. Portanto, sendo estes os três princípios das nações, eles são os três princípios da Ciência Nova de Vico, e eles devem ser conservados por todas as nações para manter-se como povo humano e como natureza sociável. Do contrário, a negação de tais princípios levaria o ser humano ao seu estado barbárico. Em relação à religião, é importante observar que se trata de uma experiência pré-humana em pelo contato com a natureza o homem teve uma ideia inicial de algo superior, pelo qual ele rearticulou toda a sua existência. A presença da religião na história das nações é confirmada do seguinte modo:
Porque todas as nações crêem numa divindade providente, pelo que se puderam encontrar quatro, e não mais religiões primárias ao longo de todo o decurso dos tempos e por toda a vastidão deste mundo civil: uma dos Hebreus e, portanto, outra dos Cristãos, que acreditaram na divindade de uma mente infinita e livre; a terceira dos gentios, que acreditaram na de vários deuses, imaginados compostos de corpo e de mente livre, pelo que, quando pretendem significar a divindade que rege e conserva o mundo, dizem deos immortales; a quarta e última, dos Maometanos. (VICO, 2005, p.174)
            Em relação ao matrimónio Vico o apresenta como princípio fundante e conservador da sociedade. Segundo a opinião de que haja uniões conjugais sem solenidades de matrimónio Vico sustenta que tal ato na antiguidade foi “censurado por todos os povos, pois, todas celebram religiosamente os matrimónios e por eles definem” (VICO, 2005, p.175). Assim, tais concubinatos são naturalmente repugnados em todas as nações, além de que não foram praticados por alguns senão na sua ultima corrupção, como pelos Persas (VICO, 2005, p.176). O matrimónio se constitui pelo caráter relacional e geração humana, de onde se formou as primeiras comunidades e posteriormente a sociedade civil e política. Por último Vico apresenta à sepultura. Esta faz parte dos costumes de todos os povos. Para fundamenta-la como princípio, Vico faz a seguinte consideração:
Imagine-se um estado ferino em que os cadáveres humanos permaneçam insepultos sobre a terra, a servir de engodo aos corvos e cães; pois deve estar certamente de acordo com este costume bestial não só aquele de ficarem os campos incultos, mas também as cidades desabitadas, e o dos homens, à maneira dos porcos, irem comer as bolotas, apanhadas por entre a podridão dos seus parentes mortos. (VICO, 2005, p.176).
            Disso se fundamenta a necessidade de todos os povos de ter como princípio universal a sepultura, como procedimento da vida humana, do onde se observou os espaços do sepultamento, a memória dos pais, a estabilidade nas propriedades, e etc. Outra colocação referente a este princípio é a questão da imortalidade da alma, que permaneceria errante em torno de seus corpos insepultos. Portanto, na Ciência Nova esses são os três princípios que se fundamentam todas as nações, nos seus costumes e que todas, sem nenhum contato entre si, procederam, por ordem da providência divina, e deixaram o estado bestial. Esses princípios são fundamentais na constituição e conservação de todos os povos, sendo que eles se articulam entre si de tal modo de um influenciar o outro e o próprio percurso das nações, desde seus primeiros momentos de humanidade.
Daí se justifica as três barbáries explanadas por Vico, pois, no âmbito geral, cada barbárie é uma negação da civilidade, sendo que na primeira observamos a negação da racionalidade, da crença numa divindade, uma ausência de lei e sociabilidade; enquanto que a segunda se classifica como uma negação das leis, normas e culturas do status quo em processo de civilização; e a última se intui como a deturpação dos mecanismos ou princípios da manutenção social comum, por uma racionalidade perversa e negação das faculdades sensitivas da mente humana. No que toca à relação entre barbárie e civilidade, é perceptível que a humanidade se rebaixa ao seu estado barbárico quando negam os princípios fundamentais e fundantes de todos os povos. Deste modo Vico justifica e comprova cada princípio. Desses princípios metafísicos Vico apresenta outros princípios que contribuem para que a humanidade subsista, se auto constitua e se mantenha enquanto tal.
III) colocações crítico-reflexivas sobre a Ditadura Militar e a atual crise política a partir da ideia viquiana de Barbárie e Civilidade
Após essa exposição sobre as três barbáries na história das nações, que se classifica como negação dos princípios fundamentais, e dos subsequentes, geradores de humanização, civilização, direito e equidade civil. Agora vamos refletir sobre a situação política no Brasil entre 1964 e 1974. São dez anos demarcados por uma repressão política militar, ações tirânicas que podem ser classificadas como barbárica ou com características semelhantes as barbáries apresentadas no pensamento viquiano. O período da Ditadura é característico de força repressiva e violenta contra os que lutavam pela liberdade, igualdade e equidade de vida, de bens econômicos e bens comuns. Isto é, uma tirania violenta aos setores populacionais que fora denominados ou acusados de “comunistas”. Ora, no período de 1961 acontece o “episódio da renúncia de Jânio Quadro aos nove meses de mandato presidencial, a legalidade foi quebrada e o estamento militar tentou se assenhorar do poder” (MIRANDA, 2008, p.15). A partir de então temos os passos do Golpe no Brasil.
É na ascensão política e hegemonia dos militares pelo poder, que se iniciou na história do Brasil uma repreensão, opressão, violência, tortura e assassinato aos povos brasileiros (políticos), pobres, trabalhadores e militantes. Na obra dos filhos deste solo: mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar, a responsabilidade do Estado (1999), observamos a crueldade com que os líderes políticos e militares encarceraram, torturaram, prenderam e até mataram aqueles que não seguiam o status quo.
Os filhos do solo, nas páginas do livro de Nilmario e Carlos, levantam-se do chão e, clamando por justiça que lhes foi negada, apontam pelas responsabilidades de quantos, durante cerca de vinte anos, prenderam ilicitamente, torturaram e mataram, escudados numa impunidade permitida pela interpretação oficial da Lei de Anistia [...]. A leitura dos 364 casos Dos filhos deste solo aponta, sem dúvida – diante da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, em nada valendo a Lei de Anistia, [...]. (MIRANDA, 2008, p.14)
As explanações desses casos de atrocidade humana destacam a realidade brasileira sobre a égide de dominação de uma camada populacional elitista e tirana, sobre um povo que fora censurado e torturado. Neste aspecto observamos que o militarismo promoveu o Golpe de Abril de 1964 e a Ditadura (LEITÃO, 2013, p.15). A deturpação da lei e manipulação da mesma para garantir a imposição antidemocrática marca esse período barbárico. A falaciosa justificativa era de que na referida época havia “no Brasil uma guerra de fato e de direito e, nessas circunstâncias, não existiriam regras, cabendo aos agentes da repressão atirar primeiro para matar. Era ‘matar ou morrer’” (MIRANDA, 2008, p.23). Nesse viés:
A ditadura eliminou garantias individuais e coletivas, cassou mandatos e direitos, censurou e proibiu, instituiu punições drásticas para seus opositores, mas nunca poderia ter conferido a seus agentes policiais e militares o poder de sequestrar, torturar, matar e promover desaparecimentos forçados (MIRANDA, 2008, p.23).
Tais ações ditatoriais são exemplos de corrupção das leis, uma destruição dos direitos civis e humanos (LEITÃO, 2013, p.161) que na lógica viquiana seria uma negação dos princípios fundamentais da humanidade. Esse tipo de barbárie se aproxima daquelas apresentadas por Vico na história das nações, pois englobam: a tirania das leis de humanidade, a proibição de escrito sobre qualquer ação desumana dos militares, a atrocidade para com membros militantes ou críticos da sociedade civil, isto é, a destruição do gênero humano, e o ceifamento de membros do tecido familiar. A violação dos direitos humanos, isto é, da lei que resguarda a dignidade humana, apresenta elementos característicos de uma barbárie retornada, pois tais ações efetuadas na Ditadura rompem com a estrutura social vigente e implanta um voltar ao liberalismo tirânico sem moral, portanto, ao retorno do estado bestial de violência e morte humana.  
A barbárie que se realizou na Ditadura do Brasil se constituiu com atrocidades multifacetárias e criativas, que são indicadas pelos laudos médicos dos corpos que foram encontrados. Isso foi razão para um desnudamento da falsidade sobre os acidentes ou mortes divulgadas pela mídia e meios de comunicação. “Ao invés de ‘suicídios’ e mortes por atropelamento’, assassinatos sob torturas cruéis. Ao invés de ‘fugas da prisão’, desaparecimento forçados. Ao invés de ‘tiroteios’, quase todos simulados, execuções à queima roupa” (MIRANDA, 2008, p.23). Assim, exemplificamos essa barbárie com as atrocidades que praticaram ao dominicano Frei Tito:
Frei Tito foi torturado durante 40 dias pela equipe do delegado Sérgio Fleury. [...] Torturado durante dois dias, pendurado no pau-de-arara, recebendo choques elétricos na cabeça, nos órgãos genitais, pés, mãos, ouvidos, com socos, pauladas, “telefones”, palmatórias, “corredor polonês”, “cadeira-do-dragão”, queimaduras com cigarros, tudo acompanhado de ameaças e insultos. A certa altura, o capitão Albernaz ordenou-lhe que abrisse a boca para receber a hóstia sagrada, introduzindo-lhe um fio elétrico que lhe queimou a boca [...] (MIRANDA, 2008, p.184).
A Ditadura passou e o Brasil institucionalmente se democratizou, porém, a força abusiva policial-militar, e o sistema político gerador de corrupção e violência não acabaram, apenas perderam as forças e até certo ponto ficaram no anonimato social. Porém, partir de 2015 o Brasil sofreu alteração na sua conjuntura. A crise política, com seu sistema corrupto veio a tona, o setor policial recebeu força e autonomia no governo Dilma para atuar nos casos de corrupção e desvio públicos. Todavia seu objetivo ético não foi realizado, os setores empresariais, institucionais, econômicos e políticos que estavam envolvidos na corrupção, não foram jugados, mas poupados. Enquanto que certo setor militante de esquerda (PT) se tornou alvo de uma rede de lideranças corruptas e fascistas que estavam no poder e nas várias esferas do governo. Nesse contexto de crise política, corrupção e fortificação policial, aconteceu, em 2016 o Impeachment da até então presidente Dilma Rousseff, acusada de cometer crime de irresponsabilidade.
A partir de então entrou em curso uma onda fascista, de tradição ditatorial barbárica, que implantou um “Golpe”. Este tem certa relação com Golpe de 1964. O recente “Golpe” de Estado jurídico midiático parlamentar está negando o Estado de Direito. Agora temos um Golpe que entrou em curso e já seguiu com suas intervenções na vida populacional (principalmente dos mais pobres) e nos movimentos político militantes de esquerda. Vemos seus efeitos nas reformas da educação, nos cortes econômicos de assistência social pública, na reforma trabalhista, no aumento de impostos nos produtos de consumo populacional, no aumento de desemprego, na execução de Marielle Franco Anderson Pedro Gomes, e na injusta prisão do ex-presidente Lula. Tais fatos nos leva a questionar se não estamos diante do risco de uma terceira barbárie (da reflexão), mais sofisticada e vestida disfarçadamente de justiça social e condenação da corrupção personificada. O risco de um Estado de exceção não pode ser descartado no nosso país.
Conclusão
Em suma é perceptível que as três barbáries, no projeto viquiano, são marcadas por suas particularidades, sendo que enquanto na primeira há o predomínio da não civilidade, pois os homens estão em um estado pré-reflexivo, isto é, voltado sobre a força dos sentidos, da ausência de conatos e de qualquer moralidade interna, na segunda barbárie há uma negação das leis, uma espécie de declínio nas normas civilizatórias, um voltar-se sobre as paixões do corpo e uma prática desumana subversiva aos princípios de humanidade, que faz declinar qualquer império. Neste universo se observa que o homem se torna o lobo de si mesmo.
Todavia, a suspeita da terceira barbárie se encontra num estado mais evoluído, quando todos os princípios de humanização e regulação social, como os costumes, as leis, a língua, os governos, a política, a educação são orientados ou instrumentalizados contra a própria humanidade. Assim seria a subversão humana mediada juridicamente pelas leis de regência e conservação social. O destaque de tal barbárie é a racionalidade que se volta contra a sua própria geração humana, pois está pautada nos interesses particulares subversivos, nas formas mais evoluídas de dominação, opressão e destruição humana. Rastros destas três barbáries são encontrados no Brasil, no período da Ditadura Militar.
Além disso, observamos uma intuição de uma terceira barbárie na contemporânea crise política que se passa no Brasil. Sua configuração é mediada pela lei, como imagem de justiça e legalidade constitucional, porém, os fatos e a forma de intervenção política nos quatro poderes, a omissão e suavidade da justiça para com os ricos e poderosos em detrimento da maior camada populacional pobres, só destaca cada vez mais o Estado de Exceção onde se nega o Estado de Direito e a urgente necessidade de apoio das esferas mais debilitadas de nosso país como a educação, a saúde, a moradia e o desemprego. O risco de intensificação da disparidade entre ricos e pobres pode intuitivamente justificado como o resultado dessa barbárie da reflexão que descarta a democracia, o bem comum e o grito dos mais pobres nas capitais, cidades, ruas, praças e periferias de nosso país.
Referências bibliográficas
ARNS, D. P. E. (org). Brasil: nunca mais. Vozes: Petrópolis, 2014.

LEITÃO, R. C.1968 – O grito de uma geração. Eduepb: Campina Grande, 2013.

MIRANDA, N. Dos filhos deste solo: mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar, a responsabilidade do Estado. Boitempo Editorial/Editora Fundação Perseu: São Paulo, 2008.
VICO, G. Autobiografía de Giambattista Vico [1725-1728]. Trad. Esp. Moisés González García y Josep Martínez Bisbal. Madrird: Siglo XXI de España, 1998.

_____. Ciência Nova [1744]. Trad. port. Jorge Vaz de Carvalho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.


[1]  Graduado em Filosofia na Universidade Estadual do Ceará (UECE), discente do curso de Teologia na Faculdade Jesuíta Filosofia e Teologia (FAJE). 

A greve dos caminhoneiros


A greve dos caminhoneiros tem movimentado as mídias e meios de comunicação no país, além disso tem afetado diretamente os sistemas de transporte e distribuição de mercadoria terrestre e aéreas no nosso país. Ora, atualmente estamos tendo uma intervenção de um setor que só recentemente é conhecido publicamente e que por muitos está sendo louvado. Não podemos negar os efeitos positivos dessa intervenção: como forçar o sistema econômico de combustível diesel a baixar o seu exorbitante preço. Isso é até bom para boa parte da população que utiliza de tal combustível para realizar suas atividades profissionais e cotidianas. Porém fica uma questão que não pode ficar esquecida. Por que esta greve (tão amplamente divulgada) está tendo um efeito efetivo e louvável por muitos, enquanto que outras greves (nas universidades, no sistema trabalhista, no setor de transporte, na saúde) não tiveram o mesmo valor, os mesmos elogios e as mesmas preocupações em relação aos detentores do poder e também ao público?
Há várias hipóteses que não podem ser descartadas, mas gostaria de apresentar objetivamente algumas: 1) a greve dos caminhoneiros afeta fortemente a economia do país. São transportadoras de produtos (de várias naturezas) que requerem uma demanda de consumo ou até certo ponto uma utilização imediata. Engraçado que o primeiro e principal problema é o econômico; 2) a pauta de exigência grevista não é a mudança de um sistema econômico, não é um fora Temer com toda a sua cambada de ladrões. É que “ –Seja reduzida a carga tributária incidente sobre operações com óleo diesel a 0 (zero), sendo elas as alíquotas da contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Património do Servidor Público – PIS/PASEP – e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS – incidentes sobre a receita bruta de venda no mercado interno de óleo diesel a ser utilizado pelo transportador autônimo de cargas. – E torne isentas da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – CIDE – instituída pela lei nº 10.336, de 19 de dezembro de 2001, incidente sobre a receita bruta de venda no mercado interno de óleo diesel a ser utilizado pelo transportador autônomo de cargas”.
Em poucas palavras: a exigência principal é tornar o óleo diesel isento de imposto. Não é aumento de salário, não é problema na remuneração profissional, não é conflito na contratação e no acordo profissional. Não é por uma educação mais digna, não é pelo aumento de emprego, não é por uma sociedade igualitária, não é por questões de precariedade pública hospitalar. 3) a intervenção gera um prejuízo econômico aos setores empresariais. As outras greves atingiam em cheio a população, mas não os setores empresariais mais ricos. Em outras palavras: fazer greve na escola e universidade interfere na educação populacional e na exigência do cuidado dos pais ou responsáveis para com seus filhos. Mas não interfere na vida do empresário de alta categoria. Este tem filho na Escola particular.  A greve dos correios não atinge efetivamente a distribuição dos bens de consumo alimentícios e de alto custo. A greve no sistema de saúde (pública) só atinge diretamente as pessoas que estão em risco de vida. Com destaque: os pobres. Não atinge, como deveria, quem está produzindo capital. Eis algumas pontuações que diferenciam essa greve das demais. 4) a greve apresenta uma estagnação no sistema econômico, a diminuição do consumo populacional, o travamento na dinâmica de vida empresarial e profissional.
Há até suspeitas de que as pautas apresentadas pelos caminhoneiros tem influência de certo setor empresarial do que realmente uma reinvindicação propriamente crítica e consciência da categoria de caminhoneiros. Portanto, sem tirar certo mérito desse evento histórico, podemos já constatar que a importância dessa greve indica a hierarquia dos valores, onde o econômico e o mercado estão em primeiro lugar, enquanto que os valores pertinentes ao setor humanitário e da vida (que deveria ser o primeiro) do povo, estão em último degrau dessa hierarquia. Num Brasil desigual, as lutas e greves muitas vezes se apresentam como fragmentadas. E com certa divisão de classes.
A situação atual exigiria uma unificação dos diversos setores de greve, porém, o que vemos é uma injustiça para com os setores grevistas de classe inferior, que são tachados de vândalos, terroristas, vagabundos e etc, enquanto outros setores nada fazem ou nada participam nessa luta. Soma-se a isso a letargia populacional dos que acham que nada têm haver com isso, dos que simplesmente são indiferentes e dos que esperam a salvação vir de outro e não deles mesmos. Um olhar egoísta, uma insensibilidade para com o outro e uma falta de solidariedade paira no Brasil (na classe mais alta?), vemos também aqueles que praticam obras de caridade para aliviarem suas consciências, enquanto seus corações permanecem os mesmos, e nos seus sonhos só participam alguns privilegiados. Essa visão de mundo, esse sistema mercadológico, torna o nosso país mais caduco e desigual. Ai a democracia só chegou para quem tem mais condição econômica, privilégios e acordos políticos, enquanto que os setores mais fragilizados (onde estão os pobres, miseráveis, abandonados e excluídos) ainda esperam, com grande resistência, uma libertação que nunca acabará sua chama, pois não se esquecem do bem mais sublime e mais sagrado da vida humana: o verdadeiro Amor. O resultado positivo dessa greve deve ser louvável, assim como um copo d’água em tempo de seca é motivo de animo, mas isso deveria ser apenas o micro começo de uma busca de saciedade humana pelo oceano que acabaria com a sede de todos. Isso eu chamo de democracia, dignidade e direitos humanos iguais.

terça-feira, 22 de maio de 2018

A CONFERÊNCIA DE MEDELLÍN E PAPA FRANCISCO: ELEMENTOS DE UMA TEOLOGIA EM CONTINUIDADE.


Artigo comunicado no Colóquio de Teologia e Pastoral, nos "50 anos de Medellín: de Medellín a Francisco" entre os dias 07 e 09 de maio. Texto em processo de publicação. 
Autor: Isaias Mendes Barbosa[1]
RESUMO: A presente comunicação apresenta a relação intrínseca entre os temas ou elementos teológicos presente na obra Conclusões da Conferência de Medellín e aqueles explanados, sustentados e apresentados pelo Papa Francisco nas obras Carta Circular Ás Pessoas Consagradas (2014), Misericordiae Vutus (2015), Evangelii Gaudium e Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum (2015), dentre outros documentos como apoio. Partindo de uma hermenêutica argumentativa sobre a relação entre tais documentos, conforme a temática proposta, apesentamos as seguintes questões: i) algumas pontuações teológicas características e específicas da América Latina na Conferência de Medellín e ii) algumas pontuações teológicas da Conferência de Medellín que foram, até certo ponto, retomadas ou desenvolvidas por Francisco. Nas Conclusões de Medellín pontuamos como predominante, na América Latina, a hermenêutica teológica a partir do método (indutivo) que parte da realidade; a opção preferencial pelos pobres; a busca pela justiça e pela paz; a inspiração bíblica; a prevalência do aspecto teológico pastoral e a denúncia da idolatria do dinheiro, no aspecto da economia e dignidade, dentre outras coisas. Em estreita relação com isso, está às pontuações teológicas e pastorais apresentadas por Francisco nos seus variados documentos. Concluímos que tal personalidade pontifícia se apresenta como um referencial cristão que continua e desenvolve revolucionariamente as pontuações teológicas explanadas na Conferência. Além disso, observa-se nele uma luz e esperança para a Igreja Católica e sociedade contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Medellín; Papa Francisco; Continuidade.
Introdução
A Conferência de Medellín não pode ser pensada sem uma retomada ao Concílio Vaticano II. Pois este foi a porta de abertura para o desenvolvimento de uma teologia original na América Latina. Teologia esta que foi se moldando após Medellín. Neste evento observamos os primeiros passos de uma teologia que se libertava das amarras da teologia europeia colonial e assumia um novo caráter criativo, revolucionário e libertário.
Vemos os traços de tal teologia nos documentos de Medellín. Não que as Conclusões da Conferência de Medellín tenham sido classificadas como uma obra estruturada e reflexiva de uma nova teologia (fundamental, sistemática), pois esta não era a sua pretensão. Ao contrário de um manual de teologia, as Conclusões são o resultado de uma visão pastoral que tenta responder aos sinais e desafios do seu tempo de modo criativo e espiritualmente responsável, assumindo o compromisso com a realidade desigual, de exclusão e injusta da América Latina. É sobre esse foco que abstraímos os elementos, termos ou características principais que marcaram e definiram especificadamente a teologia latino-americana. Se este momento é caracterizado por uma intensificação de ruptura do pré-concilio, ele resgatou as raízes mais originais, lúcidas e fundamentais da fé cristã. Observamos isso, especificadamente e com mais propriedade teológica, nos documentos do Papa Francisco.
Ele surpreendentemente é uma síntese mais profunda e desenvolvida do Concílio Vaticano II e de Medellín. Seus documentos resgatam os elementos principais da teologia latino-americana, a saber: a análise crítica social, a transformação evangélica da mesma, a opção pelos pobres, a busca pela paz, a crítica á economia, a luta pela justiça e a inspiração evangélica. Tais pontuações são expressadas em Francisco com uma criatividade e maturidade inigualável. Isso o classifica como um sinal e inspiração para o povo latino americano nas suas lutas e desafios.
Algumas pontuações teológicas características e específicas da América Latina na Conferência de Medellín
Para falar de Medellín é preciso retornar a metade do século XX, quando aconteceu o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). Isso porque tal evento se constituiu como inspiração, luz, para a história singular da América Latina[2]. A motivação da Conferência foi o Concílio, pois “Em busca da fidelidade ao Espírito, ao concluir o Vat.II, Mons. Manuel Larraín, em nome dos bispos latino-americanos, pediu à S.S. Paulo VI que convocasse a segunda conferencia geral do episcopado latino-americano” (OLIVEIRA, 1992, p.105).  Em vista dessa inspiração, observamos que duas pontuações foram fundamentais, no Concílio, para compreendermos a razão da Conferência de Medellín ter apresentado uma posição teológica distinta do que vinha na tradição da Igreja na Europa: 1) O Concílio motivou toda a Igreja ao aggiornamento criativo da mensagem cristã a partir de uma profundidade e inspiração evangélica reveladora e querigmática; 2) O Concílio foi uma abertura dialogal para o mundo moderno que dava seus passos autônomos[3]. Esse dois pontos deu abertura para que a América Latina pudesse dar os passos de uma teologia própria, portanto, não mais pautada a partir das “iluminações” dedutivas e dogmáticas da fé, mas da própria realidade contextual histórica que passava. Foi nessa dinâmica de abertura dialogal para o mundo e de retomada evangélico escriturística, em relação com as ciências sociais (história e sociologia), que a Conferência de Medellín se tornou um marco histórico relevante na América Latina.
Essa nova postura foi de ruptura para o que havia na tradição até antes do concílio. Podemos observar que Medellín intensificou essa ruptura, dando novos passos para um novo modo de perceber, pensar e teologizar a fé cristã. Na relação entre o pré-concilio e Medellín pós-conciliar destacamos essas novas demarcações em que atua a teologia latino-americana: a) de uma teologia moral de caráter tomista-aristotélica-escolástica para uma nova forma criativa de pensar teológico; b) do abandono de um rigorismo perfeccionista, ou moral laxista, para a abertura ao aspecto mais equitativo e contextual da vida cristã; c) de uma transição da heteronomia da consciência e prática humana para a autonomia da mesma; d) da troca dos silogismos dedutivos e abstratos como fundamento da teologia moral, pelo “sinais dos tempos” e pela Palavra revelada (Jesus Cristo) como base inspiradora para a vida cristã. Desses pressupostos podemos compreender os elementos ou termos fundamentais que perpassa a teologia da América Latina em Medellín.
A Conferência de Medellín teve como objetivo eclesial compreender a missão e desafio da Igreja em um continente particular e de uma realidade específica. Desse norte podemos abstrair seus elementos principais. Não podemos descrever sobre a teologia, enquanto estrutura teorética e elaborada, nos documentos de Medellín, pois não se trata de um manual de teologia, mas destacamos os elementos, termos ou conteúdos presentes nas Conclusões da Conferência de Medellín[4] (CCM) que nos apresentam o pano de fundo da teologia da América Latina nos seus primeiros passos de gestação original.
A primeira questão elementar que apresentamos está no método teológico. Não era mais o dedutivo, mas o indutivo. Partia da reflexão sobre a realidade, para depois propor caminhos pastorais. É o “ver-julgar-agir”. Medellín segue esse método. De fato, na Introdução às conclusões de Medellín, os bispos exprimem essa nova ótica nestes termos:
Não podemos deixar de interpretar este gigantesco esforço por uma rápida transformação e desenvolvimento como evidente sinal da presença do Espírito que conduz a história dos homens e dos povos para sua vocação. Não podemos deixar de descobrir nesta vontade, [...] os vestígios da imagem de Deus no homem, como um poderoso dinamismo. [...] Nós, cristãos, não podemos, com efeito, deixar de pressentir a presença de Deus que quer salvar o homem todo, alma e corpo. [...] Assim como outrora Israel, o Antigo Povo, sentia a presença salvífica de Deus quando o libertava da opressão do Egito, [...] assim também nós, o novo Povo de Deus, não podemos deixar de sentir seu passo que salva, quando se dá o “verdadeiro desenvolvimento” [...](CCM, n.4-6, p.38).

O segundo elemento é a teleologia do método. O método indutivo implica uma práxis transformadora. As palavras introdutórias da Conferência tem relevância efetiva e pastoral no caráter de orientação da teologia latino-americana: “Não basta, certamente, refletir, conseguir mais clarividência e falar. É necessário agir. A hora atual não deixou de ser a hora da palavra, mas já se tornou, com dramática urgência, a hora da ação” (CCM, n.3, p.38).
O terceiro aspecto dessa teologia está no “espaço teológico”. Não mais partia apenas de silogismos ou de um pressuposto dedutivo das escrituras, mas da própria realidade contextual histórica. A Conferência levou a cabo tal orientação ao descrever pontualmente a situação a que se encontrava a maioria do povo latino-americano:
As diversas formas de marginalização, socioeconômicas, políticas, culturais, raciais, religiosas, tanto nas zonas urbanas como nas rurais. Desigualdade excessiva entre as classes sociais, especialmente, embora não de forma exclusiva, naqueles países que se caracterizam por um acentuado bi-classismo: poucos têm muito (cultura, riqueza, poder, prestígio) enquanto muitos nada têm. [..] Frustrações crescentes: o fenômeno universal das expectativas crescentes assume na América Latina uma dimensão particularmente agressiva. [...] Formas de opressão de grupos e setores dominantes [...] (CCM, n.2-5, p.59-60).
Tal conjuntura social é a base se onde se situa a experiência humana latino-americana. Em outras palavras, o momento histórico se caracterizou “por uma situação de subdesenvolvimento, revelada por fenômenos maciços de marginalidade, alienação e pobreza, e condicionada, em última instância, por estrutura de dependência econômica, política e cultural” (CCM, n.2, p.147).
O destinatário da práxis cristã não ficou relegado ao cristo teológico assumido pela tradição antiga. A consciência teológica não se deteve numa postura egoísta da salvação individual e na prática da caridade para com os mais pobres como meio de salvação. Os pobres e sua situação tornou-se referencial-destino da evangelização, pois estes eram e ainda são os escolhidos por Jesus, aqueles a quem Jesus quis se identificar, e que, na América Latina, passavam por uma situação de miséria.
Ao abrir os olhos a realidade histórica, se encontraram com a maioria empobrecida e crente da América Latina: os indígenas, os camponeses, os moradores das periferias urbanas. A experiência dos pobres e a situação inumana em que sobrevivem sobre saiu em reuniões preparatórias. Assim mesmo, se irá refletindo, a luz da fé, que nos dizia o Senhor nessa realidade (OLIVEROS, 1992, p.106).
A opção preferencial pelos pobres se tornou o marco da teologia na América Latina. Ela já estava nos documentos do Concílio como a Gaudium et Spes. Porém em Medellín essa opção se radicaliza. “A opção pelos pobres era a grande preocupação e como que uma resposta dos bispos aos clamores de justiça e de libertação que, nos anos 1960, se espalhavam por todo o continente” (BARROS, 2017, p.128). Observamos isso nos documentos:
O mandato particular do Senhor, que prevê a evangelização dos pobres, deve levar-nos a uma distribuição tal de esforços e de pessoal apostólico, que deve visar, preferencialmente, os setores mais pobres e necessitados e os povos segregados por uma causa ou outra [...]. Queremos, como bispos, nos aproximar cada vez com maior simplicidade e sincera fraternidade, dos pobres, tornando possível e acolhedor o seu acesso até nós (CMM, n.9-10, p.199).
A justiça se tornou um elemento presente na Conferência. Foi o título do primeiro capítulo. O documento apresenta que “O Episcopado latino-americano não pode ficar indiferente ante as tremendas injustiças sociais existentes na América Latina, que mantêm a maioria de nossos povos numa situação dolorosa de pobreza, que muitos casos chegam a ser miséria desumana” (CMM, n.1, p.195). Tal justiça é como uma resposta ao clamor do povo, pois:
As famílias, muitas vezes, não encontram possibilidades concretas de educação para seus filhos; a juventude reclama seus direitos de entrar nas universidades ou em centros superiores de aperfeiçoamento intelectual ou técnico-profissional; a mulher reivindica sua igualdade, de direito e de fato, com os homens; os camponeses pedem melhores condições de vida; [...] (CMM, n.1, p.45).
A justiça não é somente uma exigência urgente humana, mas fazia parte do próprio imperativo profético bíblico: “A busca cristã da justiça é uma exigência do ensinamento bíblico. [...] Cremos que o amor a Cristo e aos nossos irmãos será não só a grande força libertadora da injustiça e da opressão, mas também e principalmente a inspiradora da justiça social” (CMM, n.5, p.48).
A justiça se relaciona direto com a paz. Como disse Dom Helder Câmara: se queres a paz, lute pela justiça. Essa referência está no segundo capítulo do documento: “A paz é, antes de mais nada, obra da justiça. Ela supõe e exige a instauração de uma ordem justa na qual todos os homens possam realizar-se como homens” (CMM, n.14, p.65). É nessa lógica de relação que se afirma no documento: “Defender segundo o mandato evangélico o direito dos pobres e oprimidos, urgindo nossos governos e classes dirigentes a que eliminem tudo quanto destrói a paz social: injustiça, inércia, venalidade, insensibilidade” (CMM, n.22, p.71).
A referência à sagrada escritura, apesar de pouca, como uma fonte de inspiração teológica marca outro elemento da teologia em Medellín. A sagrada escritura ou Palavra de Deus é recomendada pastoralmente como caminho para formação humana e cristã: “Procurar a formação do maior número de comunidades eclesiais nas paróquias, especialmente nas zonas rurais ou entre os marginalizados urbanos. Comunidades que se devem basear na Palavra de Deus” (CMM, n.13, p.115). Essa postura de inspiração bíblica terá sua maturidade nas próximas conferências da América Latina, porém, destacaremos sua maior expressão nos documentos de Francisco.
Por fim, outro elemento que percorre a teologia da América Latina está na questão da Economia em relação com a dignidade humana. É nesse entrelaçamento que o documento pontua sobre o problema do capital, ou capitalismo liberal:
No mundo de hoje, a produção encontra sua expressão concreta na empresa, tanto industrial como rural, que constitui a base fundamental e dinâmica do processo econômico global. O sistema empresarial latino-americana e, devido a ele, a economia atual, corresponde a uma concepção errada sobre o direito da propriedade dos meios de produção e sobre a finalidade da economia. A empresa, numa economia verdadeiramente humana, não se identifica com os donos do capital, [...] (CMM, n.10, p.50).
Neste sentido a teologia presente na Conferência denúncia o “sistema liberal capitalista” (CMM, n.10, p.51), porque tal sistema atenta “contra a dignidade da pessoa humana”, pois tem como pressuposto “a primazia do capital, seu poder e sua utilização discriminatória em função do lucro” (CMM, n.10, p.51). Tal sistema cria “tremendas injustiças sociais existentes na América latina, que mantêm a maioria de nossos povos numa dolorosa pobreza, que em muitos casos chega a ser miséria desumana” (CMM, n.1, p. 195).
Algumas pontuações teológicas da Conferência de Medellín que foram, até certo ponto, retomadas ou desenvolvidas por Francisco.
Os elementos teológicos presentes na Conferência de Medellín possuem sua inspiração a partir da abertura e orientações do Concílio Vaticano. A criatividade teológica teve impasses e desafios até hoje, porém, mais do que uma invenção inovadora e uma inspiração divina, tais pontuações ou elementos teológicos foram retomados e amadurecidos nas demais Conferências (de Puebla, de Santo Domingo e de Aparecida) da América Latina a tal ponto de configura esse continente com uma teologia própria e singular, distinta da europeia e, libertária da pessoa humana. Não sem riscos, falhas e progressos, tais elementos teológicos perduram na nossa realidade e configuram as especificidades da nossa teologia. Percebe-se que aproximadamente entre o ano 1985 e 2008 tal teologia diminuiu o seu passo e teve seu momento de deserto, por diversas razões que não vem ao caso. Todavia, é percebido, no pontificado do Papa Francisco a retomada e continuidade de tais elementos. É neste sentido que, pela objetividade da proposta temática, tentaremos demonstrar que nos documentos produzidos por Francisco, permeiam alguns dos conteúdos, elementos ou e orientações teológicas que se gestaram em Medellín.   
A primeira consideração está na observação prévia sobre a realidade contextual contemporânea que Francisco faz em todas as suas obras. A Evangelii Gaudium[5] e a Laudato Si’[6] estão entre os textos que mais expressam uma compreensão da realidade a partir das duas partes do método utilizado por Medellín, a saber, o ver e julga. Para exemplificar mais destacamos a Carta Circular Ás Pessoas Consagradas (2014)[7]. Nas orientações para os religiosos ele explana profeticamente sobre a situação da sociedade atual “que ostenta o culto da eficiência, da saúde, do sucesso” (APC, n.1, p.17). A teologia de pano de fundo segue a dinâmica da apreensão da realidade, “a capacidade de perscrutar a história em que vive e interpretar os acontecimentos: é como uma sentinela que vigia durante a noite e sabe quando chega a aurora” (APC, n.2, p.18). Neste sentido a captação da realidade é uma constante no seu discurso teológico, isso tem influência de Medellín. Mas a leitura dos sinais dos tempos está entrelaçada pelo aspecto prático:
Viver com paixão o presente significa tornar-se ‘peritos em comunhão’, ou seja, ‘testemunhas e artífices daquele ‘projeto de comunhão’ que está no vértice da história do homem segundo Deus’. Numa sociedade marcada por conflito, convivência difícil entre culturas diversas, prepotência sobre os mais fracos, desigualdades, somos chamados a oferecer um modelo concreto de comunidade [...] (APC, n.2, p.12).
A epistemologia da atual situação não se fecha no puro conhecimento, mas está em função do aspecto pastoral da teologia, do aspecto da práxis cristã. A característica peculiar da praticidade está na Evangelii Gaudium quando Francisco exorta os fiéis para ser uma igreja em saída:
[...] hoje todos nós somos chamados a esta nova “saída” missionária. Cada cristão e cada comunidade há de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias [...] (EG, n.20, p.20).
“Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros” (EG, n.24, p.22). Aqui percebemos o aspecto prático teológico que Francisco nos exortar a realizar. Uma saída da mesmice e do de sempre para renovar-se com a práxis. Porém, ao contrário de um ativismo, a prática cristã está ligada com uma experiência fundamental já expressada em Medellín: a experiência de Deus, a escuta da Palavra de Deus, a retomada inspiradora do Evangelho. Todos os escritos de Francisco são marcados por essa base bíblica, mas não se trata apena de um fundamento ou base teológica das escrituras, mas sim de uma experiência com alguém que se manifesta pela Escritura:
A pergunta que somos chamados a fazer neste Ano é se e como nos deixamos, também nós, interpelar pelo Evangelho; se este é verdadeiramente o vade-mécum para a vida de cada dia e para as opções que somos chamados a fazer. Isso é exigente e pede para ser vivido com radicalismo e sinceridade. Não basta lê-lo (e, no entanto, a leitura e o estudo permanecem de extrema importância), nem basta meditá-lo (e fazemo-lo com alegria todos os dias), Jesus pede-nos para pô-lo em prática, para viver as suas palavras (APC, n.2, p.10).
Quanto à opção preferencial pelos pobres, observamos em Francisco tal elemento teológico que perdura e amadurece na sua reflexão cada vez mais. Na Misericordiae Vutus[8] Francisco apresenta um pequeno trecho que expressa essa preferência teológica. A linha reflexiva está relacionada com a o valor da “misericórdia” e a crítica aos ricos que são indiferentes aos pobres. Junto dos pobres está o seu contexto existencial: as periferias.
Neste Ano Santo, poderemos fazer a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo atual! Quantas feridas gravadas na carne de muitos que já não tem voz, porque o seu grito foi esmorecendo e se apagou por causa da indiferença dos povos ricos. Neste Jubileu a Igreja sentir-se-á chamada ainda mais a cuidar destas feridas, aliviá-las, [...]. É meu vivo desejo que o povo cristão reflita, durante o Jubileu, sobre as obras de misericórdia corporal e espiritual. Será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados [...](MV, n.14-15, p.16-17).
Outro elemento teológico é a “justiça”. Francisco explicita-a nos seus diversos documentos. “Deus não rejeita a justiça. Ele a engloba e a supera em um evento superior em que se experimenta o amor, que está na base de uma verdadeira justiça” (MV, n.21, p.25). “A justiça de Deus torna-se agora a libertação para quantos estão oprimidos [...]” (MV, n.20, p. 24). Na Evangelii Gaudium Francisco explana sobre a justiça como imperativo eclesial:
[...] a Igreja ‘não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça’. Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são chamados a preocupar-se com a construção de um mundo melhor. É disto mesmo que se trata, pois o pensamento social da Igreja é primeiramente positivo e construtivo, orienta uma ação transformadora e, neste sentido, não deixa de ser um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo (EG, n.184, p.152).
Na Laudato Si’ encontramos a questão da paz, porém mais do que a relação com a justiça, tal temática está relacionada com a alegria e o cuidado com a casa comum. Neste aspecto a paz se situa numa relação interior, espiritual e antropológica, com uma reação social. Pois segundo Francisco afirma:
Ninguém pode amadurecer em uma sobriedade feliz, se não estiver em paz consigo mesmo. E parte de uma adequada compreensão da espiritualidade consite em alargar a nossa compreensão de paz, que é muito mais do que a ausência de guerra. A paz interior das pessoas tem muito mais a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida, reflete-se em um equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida (LS, n.225, p.179)
Por fim, destacamos na teologia da América Latina a questão da economia. Esta se tornou uma temática profética de Francisco relacionado com a moral cristã e a realidade social capitalista: “Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’” (EG, n.53, p.48). A raiz na desigualdade humana é expressa na relação entre o dinheiro e a idolatria.
Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer de que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de outro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objeto verdadeiramente humano (EG, n. 54-55, p.49-50).
Conclusão
A presente pesquisa conclui que Medellín é um marco histórico de onde germinou, com propriedade criativa e pastoral, os principais elementos que constituiu e ainda constitui a teologia na América Latina. Sem negar sua inspiração no Concílio Vaticano II, acentuamos que Medellín é como se fosse o sopro forte do Espírito Santo para as expectativas, esperanças e frustrações do povo latino- americano. Isso é observado na forma como aos poucos, porém, com incrível criatividade, a teologia do nosso continente foi original e inovadora para assumir o novo tempo, marcado pela desigualdade, exploração, opressão e coisificação da maioria do povo pobre da América Latina. Se o temor e a força conservadora reprimiu a teologia (da libertação) gestada em Medellín, atualmente, na figura do Papa Francisco vemos tal teologia ganhar seu vigor, amadurecer, aprofundar as raízes e ser um sinal de esperanças, justiça, alegria, paz e libertação verdadeira para o povo de Deus, assim como para a humanidade. Essa esperança não é ilusória, pois o processo de desenvolvimento da teologia cristã de libertação na América Latina, ainda não chegou a seu termo. Por isso se faz cada vez mais urgente, a partir do Papa Francisco, uma retomada de suas raízes teológicas, uma maturidade que não termina na história, e um constante diálogo criativo e responsável com a atualidade, com seus novos clamores e justiça por libertação.
Referências bibliográficas
BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

CARTA APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO. Ás Pessoas Consagradas: em ocasião do ano da vida consagrada. São Paulo: Paulinas, 2014.

CARTA ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

CELAM. Conclusões da Conferência de Medellín -1968. Trinta anos depois, Medellín é ainda atual? 3.ed., São Paulo: Paulinas, 2010.

EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii Gaudium: do Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.

GODOY, M.;JUNIOR, F (Org.). 50 anos de Medellín: revisitando os textos, retomando o caminho. São Paulo: Paulinas, 2017.

VARIOS, Autores. Vida, Clamor y Esperanza: aportes desde América Latina. edições paulinas: Buenos Aires, 1992





[1] Licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e graduando no curso de Teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE).
[2]A inspiração ou influência do Concílio Vaticano II na Conferência de Medellín é confirmada pelo teólogo Tony Mifsud na obra Una construccion ética de la utopia Cristiana ( 1988, p.181): “Los documentos de Medellín llevan el título de La Iglesia em la actual transformación de América Latina a la luz del Concilio. Medellín es la concreción o la aplicación latino-americana del Vaticano II, es decir, se introduce em este processo comenzado por el Vaticano II y lo aplica a la situación del continente”.
[3] Essas duas orientação desenvolvidas foram sintetizada pelo teólogo Roberto Oliveros na obra Clamor y Esperança:aportes desde América Latina (1992, p.105): “Juan XXIII convoco al concílio, a fin de ‘aggiornar’ criticamente la acción eclesial en las nuevas circunstancias mundiales”. Cf. VARIOS, Autores.Vida, Clamor y Esperança:aportes desde América Latina.edições paulinas: Buenos Aires, 1992.
[4] As citações referente a esta Conferência está na seguinte obra: “CELAM. Conclusões da Conferência de Medellín -1968. Trinta anos depois, Medellín é ainda atual? 3.ed., São Paulo: Paulinas, 2010.
[5] EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii Gaudium: do Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.
[6] CARTA ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
[7] CARTA APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO. Ás Pessoas Consagradas: em ocasião do ano da vida consagrada. São Paulo: Paulinas, 2014.
[8]BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.