quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

A inspiração para um Natal ecológico e integral


Nos passos iniciais do Natal como celebração, festa e memorial litúrgico do nascimento de Jesus no mundo, somos impelidos ao compromisso ético, social e ecológico com a nossa casa comum e com os diversos seres que a habitam. Tal compromisso pode-se dizer que é ecoteológico, isto é: possui como fonte de inspiração o próprio mistério da fé cristã, mas a partir de uma perspectiva transversal, holística e integral do evento (da encarnação de) Jesus e do ethos ambiental e humano em que ele se insere.
Assim, na ótica ecoteológica vamos nos debruçar e refletir sobre as leituras da liturgia do dia 25 de dezembro de 2019, complementadas com outras, para sustentar a inspiração de um Natal que possa assumir merecidamente o predicado de ser ecológico, como espera-se que seja na espiritualidade e prática cristã atual. Vejamos as seguintes leituras: Primeira Leitura (Is 52,7-10), Responsório (Sl 97), Segunda Leitura (Hb 1,1-6) e Evangelho (Jo 1,1-18).
Na primeira leitura se evidencia o caráter essencial da fé cristã. No contexto do terceiro profeta Isaias, uma parcela significativa do povo Hebreu passa pelo drama existencial, regional e cultural do exílio e da escravidão. O drama tem como resposta a expectativa da vinda de alguém como salvador. Esse alguém vem trazer a paz, proclamar a boa nova e anunciar a salvação (Is 52,7).
Ora, a expectativa da salvação humana é o elemento essencial da fé cristã. Todavia, há um vínculo desta com a ecologia e com compromisso evangélico e social cristão. Como sustenta o teólogo Agenor Brighenti (2018, p.18): “Ecologia tem a ver com evangelização, com a missão da Igreja, com o serviço dos cristãos ao mundo; em resumo, ecologia tem a ver com salvação. Salvação não só do planeta, mas da própria humanidade”.
Apesar do texto bíblico não explicitar a terra (prometida?) e muito menos o planeta Terra como espaço necessitado de salvação, da presença de um salvador, podemos constatar que há um vínculo estreito e uma participação da terra com a salvação humana ,como o profeta infere: “Porque Deus consolou o seu povo, ele redimiu Jerusalém!... e todas as extremidades da terra viram a salvação do nosso Deus” (Is 52, 9-10).
Neste sentido poderíamos dizer que o termo ‘extremidades da terra’ se referia aos povos todos que habitavam nas regiões circunvizinhas de Canaã e não a região terrestre ou ao sistema planetário. Bem, o texto fragmentado poderia nos conceber tal ideia superficial de extensão demográfica, mas juntando o texto do profeta com o salmo 97 somos levados a considerar a presença e vínculo da terra no projeto de salvação do povo de Deus. Assim diz o salmista: “Os confins da terra contemplaram a salvação do nosso Deus. Aclamai a Deus, terra inteira, dai gritos de alegria” (Sl 97,3-4).
Daí, a concepção de terra como espaço de contemplação da salvação e como ser existencial  (vivo) que é exortado pelo profeta para aclama a Deus e dar gritos de alegria denota uma certa concepção judaica sobre a terra não como objeto inanimado e nem como matéria orgânica ou objeto de consumo humano, mas como um ser pertencente ao projeto criativo de Deus. Neste sentido, a linguagem configura a terra como criatura. Tal criatura, na ordem do criado, está vinculada e relacionada com a criação humana no livro do gênesis. Na concepção tradicional judaica a terra assume a função de ser “produtora de seres vivos” (Gn 1,24) e parte dela é utilizada para a criação humana.
Essa compreensão nos leva a considerar o vínculo relacional e interdependente entre os seres humanos e os demais seres. Nessa lógica faz sentido o que o teólogo Leonardo Boff diz simbolicamente: que “todos [os seres, incluindo nós,] entre si são parentes, primos e irmãos e irmãs” (BOFF, 2009, p. 25). Vale ressaltar que o vínculo do ser humano com os demais seres criados é tão fundamental no projeto salvífico que tal vínculo configura a compreensão de Deus tanto como Criador do mundo como também libertador ou salvador do seu povo. Isso estar no salmo 136: O Deus que criou os céus, a terra, as águas, os astros (v.1-9), libertou o povo da escravidão do Egito (v.10-15) e o conduziu pelo deserto (v.16-24).
A participação de todos os seres criados no projeto salvífico justifica a dimensão integradora da ecoteologia entre toda a criação e não só a humana. A luz dessa concepção está à fé cristã que compreende a criação de um novo modo. Trata-se de um novo modo “de sentir, pensar e experimentar a Deus e suas relações com todos os seres, tal como a mesma mãe Terra” (CHIPANA; ISMAEL; DIETMAR, 2011, p.33). Essa concepção ganha força reflexiva com a abordagem do Papa Francisco na “Laudato Si’” ao afirmar que “tudo está interligado no mundo” (LS, n.16) e que “somos chamados a reconhecer que os outros seres vivos têm um valor próprio diante de Deus e, ‘pelo simples fato de existirem, eles O bendizem e Lhe dão glória’” (LS, n.69).
Assim, é válida e justificável a concepção de que na fé professada hoje se reconfigura uma significativa visão cristã sobre a Terra ora como a nossa “irmã, com quem partilhamos a existência, ora uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços” (LS, n.1). Para Francisco a fé considera um novo significado ao meio ambiente, à biodiversidade, para além daqueles que servem somente para os fins de uso e consumo imediatos (LS, n.5). Nessa perspectiva se considera o mundo como um dom confiado por Deus ao ser humano e inserido no projeto da salvação. Como acréscimo da importância da ecologia na teologia e prática cristã basta considerar alguns salmos (Sl 97;135;136) que convidam, frequentemente, o ser humano a louvar a Deus criador. E não obstante, estão outros salmos (Sl 148) que chamam as outras criaturas a louvarem a Deus: “Louvai-o, sol e lua; louvai-o, astros todos de luz. Louvai-o céus dos céus e águas acima dos céus” (Sl 148,3-4). .
Desde já podemos dizer que na tradição neotestamentária há pouco se não quase nada de elementos que justifique ou ofereça-nos uma compreensão salvífica de Jesus Cristo que se amplie para além do gênero humano, isto é, que se debruce com propriedade sobre a criação. “Como bem observa Moltmann, quem procura por declarações sobre a criação no Novo Testamento, frequentemente se decepciona” (MURAD, 2009, p.281). Mas isso não significa que não há textualmente indicações que vinculam a auto-revelação e a ação salvífica de Deus com a criação. Pois tudo, no Novo Testamento, vai gravitar em torno do fato cristão.
O autor, desconhecido, da Carta aos hebreus (1,1-6) fala aos cristãos oriundos do judaísmo que estavam em clima de perseguição e eram imaturos na fé. Ele vai direto a questão essencial da fé cristã: “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos nossos pais, pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas” (Hb 1,1-2).
A centralidade do discurso é Cristo como autocomunicação divina, porém dele não só participa e depende a salvação humana, mas também a criação toda toma parte de tal esperança. Neste sentido Cristo, o Filho de Deus, tem por direito e dignidade a herança de todas as coisas e do mundo. Aqui a antropologia e a cosmologia se encontram, pois “É ele o resplendor de sua glória e a expressão de sua substância (ser); sustenta o universo com o poder de sua palavra” (Hb 1,3). A centralidade cristológica exalta a Cristo como divindade a ser adorada até pela hierarquia angelical, pois “quando...entrar o Primogênito no mundo, Deus diz: 'Todos os anjos devem adorá-lo!'”(Hb 1,6). Ora, não há como negar a efetiva e intrínseca relação da criação, da comunidade de vida além do humano, no mistério salvífico divino, porque "tudo foi feito por meio dele e para ele" (Cl 1,16).
Vale ressaltar que, com a encarnação de Deus como humano e na história, a dimensão salvífica assume uma conotação não só natural, mas sobrenatural, isto é, transcendental. Nessa perspectiva se acentua a espera escatológica salvífica de toda a criação com Deus pelo Cristo, no Espírito. Sem Cristo, nada poderia subsistir (Cl 1,17). Deste modo “a criação aguarda com ardente expectativa a revelação dos filhos de Deus” (Rm 8,19). Isto é, ela espera que o projeto de Deus se realize na vida humana e em si mesma, pois para tal fim foi criada.  
E “sabemos que toda a criação, conjuntamente, geme e está com dores de parto até agora; e não só ela, mas até nós, [...] também gememos em nós mesmos, aguardando a adoção filial, a saber, a redenção do nosso corpo. Pois nossa salvação é objeto de esperança” (Rm 8,22-24). Essa nova experiência é indicativo da permanência e participação da criação (ou em termos secular: de todos os seres bióticos da ecosfera) na soteriologia divina. Assim é que se menciona no apocalipse, dentre outros textos, o deslumbrar visionário da nova criação como “um novo céu e uma nova terra” (Ap 21, 1).
No coração da liturgia e fé cristã, vamos nos deter sobre o texto de João (1,1-18). A partir do discurso joanino duas personalidades podem ser deduzidas como destinatários da mensagem salvífica cristã: os gregos-helénicos e os judeus cristãos. Os destinatários justificam o estilo argumentativo e a forma de abordagem do autor: João inicia a boa nova da encarnação de Jesus a partir da origem da criação humana e de todos os seres como no livro do gênesis: no princípio (Gn 1,1; Jo 1,1). Aqui o evento natalino é descrito de forma distinta dos evangelhos sinóticos.
De antemão já podemos suspeitar que a vinda de Jesus é descrita não diretamente com Maria e José, pela ação do Espírito Santo, mas diretamente de Deus e como parte de Deus: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). O vínculo natalício de Jesus com Deus no começo da criação denota uma característica de fundamental importância na ecoteologia: pensa e perceber a ação de Deus no horizonte planetário e até eco-planetário, na redescoberta de que tudo está em relação, interligado, interdependente, de modo sistêmico e complexo, tudo é um todo. Isso concorda com a concepção da ecoteologia que “consiste em pensar a fé no horizonte da consciência planetária. Essa se caracteriza como a (re)descoberta de que o mundo torna-se um todo, o ser humano é membro da Terra e deve assumir a responsabilidade pelo futuro do planeta habitável” (MURAD, 2016, p.211).
O discurso natalício confirma tal concepção de que todos os seres criados estão em Deus e no seu Filho Jesus: “Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1,3). Ora, “o que foi feito nele era a vida” e tal vida (zoe) é compreendida como plenitude da existência, portanto fonte vital de todos os seres existentes. Se tal predicado de Jesus (zoe) no processo da encarnação já nos liga integralmente ao todo da criação e, poderia assim disser, ao sistema complexo de todo o nosso meio ambiente, então tal vínculo e presença do Deus já se confirma na expressão textual: “Ele estava no mundo”, portanto, presente em toda a criação, tal como de fato indica melhor o significado do nome Deus: Aquele que estar, e não aquele que é. O Verbo é definido como “Luz”: Ele era a luz verdadeira (Jo 1,9), que caracteriza a propriedade essencial dos planetas no nosso sistema.
No discurso joanino a relação do Deus Verbo (Criador) com o Salvador Humano se realiza no processo de encarnação, porque o Verbo que estava em Deus (e por Ele tudo o que existe subsiste, portanto o Verbo Criador) se fez carne (sarx), humano pleno, e habitou entre nós (Jo 1,14). Daí é possível interpretarmos intuitivamente que há o vínculo relacional e interdependente entre a comunidade de vida no nosso planeta e os seres humanos. Portanto o vínculo da ecologia com a antropologia, o que faz sentido ao que o Papa Francisco afirma sobre “tudo estar interligado”. Tal hermenêutica não pode ser descartada se nós quisermos levar a fé cristã para a sua consequência teológica, salvífica e integral. Aqui um Jesus cósmico não pode ser descartado como chega a sustentar o teólogo Leonardo Boff.
Bem, na encarnação do Verbo a visão ecoteológica pode encontrar sua inspiração para seguir adiante, porque para todos os seres, como verdade consequente “Este é aquele de quem eu disse: o que vem depois de mim, passou adiante de mim, porque existia antes de mim” (Jo 1,15). Ele existia antes, com e após a criação do mundo. Para não nos restringir ao texto do evangelho de João, vale considerar que no Natal a criação toda aponta e colabora na encarnação de Jesus. Em Mateus (2,2) “vimos à sua Estrela no oriente” que para no local onde nasce Jesus. A “Terra de Judá” é espaço de onde deve nascer o Salvador (Mt 2, 6). Em Marcos o Espírito Santo assume o formato de uma ave (Mc 1, 9) e Jesus assume um vínculo harmônico com a espécie animal no deserto: Jesus estava com os animais selvagens (Mc 1,12). E em Lucas (2,7) Jesus nasce em meio à criação, num estábulo, porque não havia lugar para ele na sociabilidade urbana.
Portanto, inspirados nesses textos e reflexões, podemos dizer que a criação, nas suas diversas esferas de abordagens, encontra seu sentido primordial e realidade última (plena: nova criatura) em Jesus. A encarnação deste se relaciona com distintos momentos de uma mesma proposta salvífica, em que não se exclui a participação das demais criaturas, da comunidade de vida, da biodiversidade que há na nossa ecoesfera. Neste sentido, desde o livro do gênesis até o apocalipse elementos constituintes da ecologia estão ligados ao projeto de salvação humana. Se o Natal é o ponto inicial e fundamental da fé cristã e salvação humana, tal evento não pode estar dissociado da complexa rede de vida que há no mundo.
Se as ciências ambientais resgataram o valor dos diversos seres bióticos e abióticos que compõem, sustentam, equilibram e promovem à vida no planeta, muito menos para a teologia tal postura deve ser descartada, apesar do atraso reflexivo e prático que temos na fé cristã. Teilhard de Chardin pode nos ajudar nessa concepção integral da salvação, pois ele percebeu Deus em todas as criaturas, mas sem reduzir o Criador às criaturas. Isso concorda com a concepção joanina de Deus como o Senhor da Vida. Nessa lógica de compreensão o Natal deixa de ser um evento estritamente antropocêntrico e exclusivista do ser humano como única realidade criada e digna imerecida de salvação, para ser um evento que integra o projeto salvífico da toda a obra criada por Deus.
A luz de Francisco é mais do que justo que o Natal seja celebrado, vivenciado, espiritual e socialmente praticado como teologia ecológica pela proposta afetiva e efetiva de uma ecologia integral. Assim, além do que já foi dito, tal Natal pode passar por nós e nos ajudar a se comprometer com o mistério da encarnação de Jesus pelo projeto do “cuidado da casa comum” (LS, 138-162). Neste Natal, tal projeto exige de nós: 1) um experimentar e encarnar Jesus, na nossa prática de vida, numa relação integral com toda a criação (LS, n.138); 2) uma prática ética que dignifique cada ser que há no planeta, que usufrua corretamente dos bens e serviços que o nosso ecossistema oferece; que, de modo especial, cuide e proteja os excluídos e a natureza; 3) nas esferas institucionais e governamentais, a sustentabilidade e saudável interação do ser humano com o meio ambiente, os seus ecossistemas e biomas; 4) a valorização e cuidado com as riquezas culturais – diversas e complexas – da humanidade, contra o sistema econômico exploratório e dominante; 5) uma ecologia urbana que promova a inclusão, a sociabilidade, os direitos humanos, a digna cidadania dos pobres e periféricos, e uma estrutura sócio-ecológica nas cidades; 6) o bem comum que lute pelo o respeito e adesão aos direitos humanos, à justiça social e à paz; 7) e a justiça intergeracional que implica na preservação e sustentabilidade da nossa casa comum para as gerações que ao de vir.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Mudanças, problemas, reformas e necessidade de lutar no Brasil que nos resta!

As mudanças realizadas pelo Presidente Jair Bolsonaro e sistema governamental, político-econômico, vêm interferindo drasticamente nas diversas esferas da vida cultural, profissional, social e política brasileira. As intervenções possuem uma justificação: uma mudança de presidência, governo e gestão político-social, uma “REFORMA” que é dita “necessária” para o “bem” do País “Verde e Amarelo” e das finanças públicas; para a libertação de um ideológico Brasil “Vermelho”. As medidas governamentais e políticas estão acontecendo: na reforma (cortes) da educação, no aumento dos impostos, na reforma trabalhista, na redução de benefícios econômicos de assistência social, no enfraquecimento dos movimentos sociais de luta indígena, feminista, LGBT e ecológica, dentre outros.
Os efeitos são danosos para a vida humana (dos mais pobres?), o nosso ecossistema brasileiro e seus biomas. Essas medidas interventivas possuem como “causa não dita” a manutenção de um Sistema insustentável de cinco dimensões que imperam hoje: (i) capitalista, industrial, mercantil exploratório; (ii) neocapitalista; (iii) do capital natural; (iv) de economia verde; (v) do ecossocialismo; (vi) do ecodesenvolvimento. A manutenção desse Sistema predominantemente lucrativo (empresarial, bancário e multinacional) insaciável está condicionando a implantação de Reformas. Mas gostaríamos de destacar a “Reforma” de emergente preocupação: a “reforma no sistema previdenciário”. Esta é realizada com a finalidade de se captar mais lucros e manter uma economia de Mercado acedente de uma minoria detentora de poder e capital. 
O caráter discursivo extremamente técnico e calculista sobre as mudanças necessária para a Previdência torna esta de difícil entendimento para a maioria da população. Boa parcela da população entende apenas o que está sendo “vendido” pela propaganda oficial e pelo noticiário: “A Reforma igualará ricos e pobres”, Ledo engano! Essa Reforma da Previdência será “sustentável e igualitária” apenas para o “Mercado financeiro”. E isso estar tentando ser realizado à custa do sacrifício da maioria da população brasileira: a classe trabalhadora, dentre outras. Há mentiras (de que a Reforma vai corrigir distorções, combater privilégios e tirar o país da crise econômica), há uma implantação do medo (se ela não sair, o país vai quebrar, transformar-se-á num caos), há manipulação mediática para obrigar a população a aceitar tal proposta no Congresso.
Nesse aspecto o Filósofo e Sociólogo Noam Chomsky (1928) nos ajuda a compreender esse processo de manipulação das massas. Ele escreveu sobre “as 10 Estratégias de Manipulação de Massas”. Delineando as dez estratégias, vamos refletir sobre a manipulação das massas – realizada pelo atual presidente e sua equipe apoiadora – a fim de implantar a “Reforma da Previdência”, dentre outras reformas que estão por vir. Isso está em risco de acontecer para a infelicidade da população brasileira, se esta não fizer algo, não mudar o curso desta e outras medidas interventivas: prejudiciais para a camada vulnerável e pobre do nosso país.
  A primeira estratégia é a da “Distração” que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio, distrações e informações insignificantes. Na sociedade brasileira não houve um debate populacional, não houve espaços de diálogos, rodas de conversas e análise reflexiva acerca da Previdência, das propostas de Reforma. A PEC 06/2019 não está sobre o conhecimento da população, esta não sabe com propriedade o que significa a “Reforma” que se pretende implantar, o público não sabe os efeitos dessa proposta na sua vida. As informações midiáticas sobre “ideologia”, “contra o comunismo”, “contra a comunidade LGBT”, “a Escola sem Partido” e a “juventude que não se interesse pela política”, são meios que nos desviam da questão central: a mudança interventiva que sacrifica os mais pobres, penaliza as mulheres e os trabalhadores rurais, que pune as pessoas com deficiência.
A segunda estratégia é “Criar problemas, ou deixar que eles aconteçam, para depois oferecer soluções”. É o chamado “problema-reação-solução”. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos. O caso Marielle, os 200 tiros emitidos pela polícia contra o músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo (no Rio) e o novo decreto sobre o porte de arma são sinais concordantes com esta estratégia. A violência junto com o armamento são elementos principais para se criar problemas e se implantar uma Ditadura Militar que altere as leis conforme o Status Quo. Recentemente tivemos o corte no setor da educação. O ministro da educação disse: “nesta terça-feira (7), que se a reforma da Previdência for aprovada, pode voltar a liberar o dinheiro do orçamento de universidades federais”.
A terceira estratégia é “de Gradação”. Para fazer com que se aceite uma medida inaceitável, basta aplicá-la gradativamente, a conta-gotas, por anos consecutivos. Em curto prazo tivemos mudanças na “Reforma”. Algumas coisas foram tiradas – com muito custo da oposição – para minimizar seu efeito catastrófico na vida das pessoas. Porém, a decisão de manter a “Reforma” e captar lucros à custa do sacrifício do Trabalhador continua uma constante. Vale destacar: a “reforma já começou com os cortes que tivemos nos programas assistenciais que nos foram tirados”.
A quarta estratégia é “do Deferido”: apresentar a proposta reformista como sendo “dolorosa”, mas “necessária” para o bem do futuro. A justificação dessa imposição sacrificante é guardar recursos para que em 20 anos as despesas do Brasil tenham sido economizadas em 4,5 trilhões. É um sacrifício doloroso e necessário para um futuro promissor.
A quinta estratégia é “dirigir-se ao publico como crianças de baixa idade”. No dia 09 de maior Bolsonaro e o Ministro Abrão Weintraub usam chocolate para explicar os cortes nas Universidades. Isso e tratar o público social como crianças. No dia 30 de abril Bolsonaro chega a tratar os estudantes universitários negativamente como infantis: “A gente não vai cortar recurso por cortar. A ideia é investir na educação básica. Ouso dizer até que um número considerável não sabe sequer a tabuada. Sete vezes oito? Não vai sabe responder”. Os termos que Bolsonaro utiliza para com os estudantes de Universidade ou qualquer outra pessoa que estava nas manifestações são: "massa de manobra" e “inocente úteis”.
A sexta estratégia é “Utilizar o aspecto emocional”. Isso causa um curto circuito na análise racional e ao sentido crítico dos indivíduos. No dia 6 de setembro Bolsonaro é esfaqueado enquanto fazia a sua campanha em Juiz de Fora.  Isso lhe concedeu quantidade suficiente de voto para ser eleito presidente. Não foi uma reflexão crítica que lhe concebeu assumir a presidência, mas o aspecto emotivo. Uma semelhança falsa com Jesus crucificado injustamente. O debate nas redes nacionais entre Bolsonaro e seus adversários políticos não aconteceu. O testemunho de Michelle Bolsonaro sobre seu esposo (pessoa boa e generosa) tira de foco a principal questão: ele tem condições intelectuais e racionais para assumir o governo? Ele sabe o que fala quando afirma que a “Reforma” é um bem para a população?... O discurso veemente contra os chamados “inimigos vermelhos” desvirtuam a real questão: qual o benefício justo que a população trabalhadora terá com a “Reforma da Previdência”?, “para quem é esta reforma”?...
A sétima estratégia é “Manter o público na ignorância e na mediocridade”. É fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível. Em 26 de abril Bolsonaro diz que “o ministro da Educação, Abraham Weintraub, estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas)". Os cursos de grande reflexão crítica e política estão sendo suprimidos aos poucos. Isso é promover a falta de criticidade nas pessoas. Não é tão burra a afirmação de Bolsonaro sobre a juventude estudantil: “queremos uma garotada sem interesse na política”.
A oitava: “Estimular o público a ser complacente na mediocridade”. Fazer o público pensar que é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto. Em 9 de outubro Bolsonaro coloca seu adversário Fernando Haddad como criador do “Kit gay”. A informação influenciou a mentalidade das pessoas para não votarem em Haddad porque, segundo o Bolsonaro, Haddad estava promovendo a homossexualidade das crianças no sistema educativo. No dia 28 de abril o presidente publica o vídeo de uma aluna confrontando uma professora de gramática. Ele apoia a aluna e afirma: "Professor tem que ensinar e não doutrinar". O projeto Escola Sem Partido é uma coibição da diversidade de opiniões. Após Bolsonaro ser eleito presidente do Brasil não foram nulas as manifestações de violência verbal, psíquica e até física contra pessoas que eram pobres, negras e homoafetivas.    
A nona estratégia é “Reforçar a autoculpabilidade”. Essa estratégia faz o indivíduo acreditar que é somente ele o culpado pela sua própria desgraça, por causa da insuficiência de sua inteligência, de suas capacidades. Assim, ao invés de rebelar-se contra o sistema econômico, o individuo se auto-desvalida e culpa-se, o que gera um estado depressivo do qual um dos seus efeitos é a inibição da sua ação. E, sem ação, não há revolução! Os partidos e grupos sociais mais revolucionários no país estão passando por um processo de enfraquecimento. Em pronunciamento no Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro culpou os governos do PT pela crise na Venezuela. O novo decreto de porte e utilização de armas será um ótimo motivo para acusar o próprio povo brasileiro de agressor e assassino.
Por último, a décima estratégia é “Conhecer melhor os indivíduos melhor do que eles se conhecem”. As estratégias que o atual presidente utilizou – para ser eleito e para dividir ainda mais o nosso país – foi usufruir no seu discurso de ideias que faziam parte do Senso Comum. Do que tal população estava suscetível para apoiar a sua candidatura e, por que não, seus projetos. Um povo afetivo precisa de razões afetivas (pena, misericórdia, simpatia, auto-identificação) para seguir tal pessoa. Assim está acontecendo com parte das massas no seu governo. O discurso de “fora PT” e “Comunismo” foi muito utilizado no seu governo até hoje. Parte da massa o apoiou por ele se posicionar contra os partidos de esquerda. Boa parte da população apoiou e apoia o governo de Bolsonaro por este oferecer ao povo “segurança” com os militares e armas. Agora todo o trabalho está em tentar persuadir o povo de que a Reforma da Previdência é uma coisa boa. Portanto, cremos que alguma semelhança com as medidas já tomadas pelo presidente e seus apoiadores, contra o povo trabalhador e os movimentos sociais e revolucionários, não é mera retórica, mas tentativa de manipulação de massa.

sexta-feira, 7 de junho de 2019

MARIA LIBERTADORA: TRAÇOS MARIANOS NOS EVANGELHOS E SUA CONTRIBUIÇÃO TEOLÓGICA PARA A IGREJA LATINO-AMERICANA.



Introdução
É comum na piedade e devoção popular encontrar em Maria a figura exemplar de mãe, doce e compassiva, próxima de Deus e dos santos, tão alta em dignidade, piedade e intercessão, que recorremos a ela para nos ajudar nas nossas causas. Tal devoção cultual e veneração mariana estar em contraponto ou conflito com o desprezo ou desvalorização de certa camada protestante (evangélica e neopentecostal) pela mesma.
Porém, para além do devocionário popular, dos excessos de divinização mariana e de certa tradição maximalista acerca do valor de Maria na Igreja e na vida dos fiéis devotos, vamos nos deter, até certo ponto, sobre um novo rosto de Maria que emergiu na América Latina (da década de 60 em diante), influenciado pelos escritos bíblicos e pela realidade de injustiça, miséria e sofrimento da maioria do povo latino americano: os pobres. A nova concepção que se gestou de Maria no nosso continente (nos Estudos Bíblicos, nas Comunidades Eclesiais de Base e nos Movimentos Teológico-Revolucionários) atribui à Maria o predicado de “libertadora”. Essa orientação teológica é chamada de “Mariologia Latino-Americana”, mas poderíamos também chamá-la de “teologia mariana da libertação”.
Tal reflexão teológica revolucionária ajuda-nos hoje a ter uma fé cristã mais madura, pois percebe Maria (e com ela a nossa identidade de fé) fazendo parte do projeto da salvação cristã. Observamos Maria não com uma identidade angelical, divinizada e pós-pascal, como já se sustenta na Tradição (até certo ponto importante), mas com uma identidade humana-cristã. Marcada por lutas, conflitos e dificuldades reais, porém, totalmente comprometida com a salvação e libertação do Povo (de Israel), assim como de todos nós, na atual situação que estamos: de conflito, de violência, intolerância, discriminação, exploração, desigualdade e injustiça socioambiental.
Para explicitar o que pretendemos com essa identidade mariana e, com ela, a nossa identidade cristã, vamos primeiro nos deter sobre as características de Maria em parte dos escritos e contextos bíblicos (evangelhos). Por conseguinte vamos delinear a influencia libertadora mariana na teologia e práxis latino-americana.
1) CONTORNOS DE IDENTIDADE MARIANA LIBERTADORA NOS EVANGELHOS
Vale deixar claro que toda a dinâmica dos evangelhos está orientada para o mistério da vida, paixão, morte e ressurreição de Cristo. Nessa dinâmica está a participação, identidade e presença de Maria.
a)   Maria no evangelista Marcos
O Evangelho de Marcos está subdividido em duas grandes partes. Na primeira (Mc 1,1-8,26) se situa os textos que fazem referência à Maria. Nesta parte observamos Jesus inaugurando o Reino de Deus (1,14ss), Reino de libertação, contra o anti-reino (1,16-45): de injustiça, de exclusão, de negação de Jesus e do projeto do Pai. 
Se na primeira parte há uma busca pela identidade de Jesus (8,27: quem dizem os homens que eu sou? ), na segunda parte temos a identidade dos que estão com Jesus: os seguidores (discípulos, apóstolos e nós). Os que se identificam com Jesus estão seguindo-o, como Simão e André (1,16s). O sofrimento e a renúncia fazem parte do seguimento (8,34). A expressão mais radical do seguimento é o serviço contínuo até a entrega da própria vida pelo Reino como indica Jesus: “começou a dizer o que estava para acontecer....o Filho do Homem será entregue ao chefes dos sacerdotes e aos escribas; eles o condenarão a morte...” (10,32-33).
A presença de Maria se encontra na passagem que fala sobre a família de Jesus a procura Dele (Mc 3,31-35). A identidade de Maria é a de “Mãe”, aquela que com sua família procura o Filho (Jesus). Porém, a questão familiar nuclear (parentesco sanguíneo de primeiro grau) não está em jogo, mas a questão polinuclear: a família ampliada, aquela que se situa na cultura parental do clã. Marcos apresenta que há um conflito entre a família nuclear e a família dos seguidores de Jesus.
Ao apresentar a concepção familiar na dinâmica comunitária cultural da época, Jesus apresenta o sentido teológico moral-social da identidade familiar cristã: “Eis minha mãe e meus irmãos. Todo aquele que faz a vontade de Deus”. Em Marcos (6,1s) Maria é Mãe a partir da filiação de Jesus: “Não é este o carpinteiro, o filho de Maria,...?” (6,3).  Porém, a família sanguínea de Jesus é colocada como “fora” da dinâmica do Reino, da adesão de Fé em Jesus como profeta (6,4). Enquanto os parentes de Jesus são caracterizados como incrédulos, nada pode ser afirmado sobre Maria, a não ser que ela estava no meio dos parentes e que não estava presente na hora da cruz. Fora disso, nada mais é possível afirmar dela.
b)   Maria no evangelista Mateus
Em Mateus Maria está incluída na narrativa da infância (Mt 1-2) e em alguns relatos da vida pública de Jesus.  O Evangelho tem a finalidade de apresentar ao leitor quem é o Cristo ressuscitado, em quem a comunidade crer e a quem esta quer seguir. Por esse foco Maria irá ser melhor compreendida.
Jesus é o “filho de Davi e Abraão” (1,1), portanto, é da geração de Israel. Se a tradição era descrever a geração de pai para filho ou filha (Mt 1,2:“Abrão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó”), Mateus dar mais importância à Maria, e não a José, ao tratar da geração de Jesus: “José o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo” (Mt 1,16).
Sem desmerecer José, observamos que Maria tanto faz parte da tradição de Israel (a vida de escravidão, luta e libertação), como também é a que acolhe em seu seio o Espírito Santo e é aquela que concebe (co-geradora?) de Jesus salvador, o Emanuel (Mt 1,18-23), o Messias, o “rei dos judeus”. Apesar de Jose ser um homem justo e bondoso, a relação de Maria com Jesus é de importância singular. Maria está implicada na ação do Espírito, na promessa do Salvador, na presença do “Deus conosco”, no encontro dos magos com Jesus (“viram o menino com Maria, sua mãe”) e na fuga para se livrar da morte (2,13).
Agora em Mateus (12,46-50; 13,53-58) a distância entre a família biológica de Jesus e a família de seus seguidores é diminuída. Não há oposição como em Marcos. Portanto, há uma abertura para identificação de Maria como aquela que faz a vontade do Pai (12,50).  Até aqui já é possível fazer uma ligação de Maria com a Trindade, pois ela está aberta para fazer a vontade do Pai, concebe o Filho e acolhe o Espírito.
c)    Maria no evangelista Lucas
O Evangelho de Lucas nos dá maior contribuição para a identidade mariana na dinâmica da realidade latino-americana. Pois no evangelista encontramos espaço para Maria como perfeita discípula e seguidora de Jesus. Para uma síntese distribuímos o Evangelho em oito blocos: i) a anunciação (Lc 1,26-38), ii) a visitação (Lc 1,39-45) e o Magnificat (Lc 1,46-55), iii) o nascimento e visita dos pastores (Lc 2,1-20), iv) a apresentação no templo (Lc 2,22-35), v) a vida oculta em Nazaré (Lc 2,39s e 2,51s), vi) o desencontro no templo (Lc 2,41-50), vii) a nova família (Lc 8,19s),  a mulher na multidão (Lc 11,27s) e viii) a preparação para pentecostes (At 1,14).
No primeiro bloco a identidade virginal de Maria (1,27) engloba a única e exclusiva ação de Deus. Ela está aberta a Alegria (Ave: Hairè) (1,28) messiânica (Zc2,14s; Sf 3,14-17) da promessa de Deus. É a contemplada (em quem habita o Espírito), o Senhor está com ela assim como esteve na vida de luta de Isaac (Gn 26,3.24), Jacó (Gn 28,15), Moisés (Ex 3,11s) e etc. Maria busca o sentido para as coisas (Lc 1,29), é questionadora (Lc 1,34), é profetiza que está a serviço de Deus (Lc 1,38), é decididamente comprometida e ativa com a missão de salvação divina (Lc 1,39).
No segundo bloco Maria supera a tradição patriarcalista de ser acolhida e saudar primeiro o dono da casa (Maria saudou Isabel e não Zacarias), é bendita junto com o filho Jesus (Lc 1,42), é bem-aventurada porque teve fé (1,45), ela produz o fruto pela fé e não será abandonada na promessa messiânica. No Magnificat Maria manifesta a grandeza do Senhor e exulta-O como Salvador. Deus olhou para a humilhação de sua serva (Lc 1,48) como olhou para o sofrimento do povo de Deus no Egito.
Todos a chamarão de feliz (bem-aventurada) pelo que Deus fez em seu favor. Maria é pobre de Deus, é dependente Dele. Porque Ele olhou para a sua humilhação. Maria exalta a Deus (“seu nome é santo”) e afirma profeticamente a justiça real e social de Deus: “agiu com força de seu braço, dispensou os homens de coração orgulhoso. Depôs poderosos de seus tronos, a humildes exaltou. Cumulou de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias” (Lc 1,51-53).
Por fim, Maria retoma as esperanças de Israel concretizadas em Jesus: “Socorreu Israel, ser servo, lembrando de sua misericórdia – conforme prometera a nossos pais – em favor de Abraão e de sua descendência , para sempre” (Lc 1,54).
No terceiro bloco Maria passa pelas exigências políticas do recenseamento e em Belém tem Jesus. Encobri-o de faixas e coloca-o numa manjedoura, pois não havia espaço apropriado (Lc 2,7). A situação indica a condição pobre da família de nazaré. Com a presença e fala dos pastores, Maria faz um discernimento interior sobre os acontecimentos (Lc 2,19.51).
No quarto bloco observamos Maria como mulher de fé, sempre no caminho para encontrar-se com Deus e conduzir os seus para Deus. Ela é mulher pobre e começa a ter consciência das intempéries da realidade, das fragilidades, dores e sofrimentos que irá passar por e com Jesus até se concretizar a salvação (Lc 2,29-35).
No quinto bloco situamos Maria como cumpridora da fé e lei de Deus. Mas ela está na periferia, ela é de uma região pobre: Nazaré. Ela é mãe educadora (2,51). No sexto bloco, ela passa pela condição humana de perde de vista Jesus durante o caminho (2,43-45), mas reencontra-o. Maria expressa às limitações existenciais de não compreender o projeto de Deus na sua plenitude (2,50), de reconhecer-se limitada no saber sobre o que Deus queria.
No sétimo bloco Maria quer ver Jesus. A identidade da família de Nazaré em Lucas segue a mesma dinâmica de Mt 3,31-35. Trata-se da identificação familiar como aquela que ouve “a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8,21). Em Lc 11,27 há uma exaltação privilegiada da mulher discípula que ouve e pratica a palavra de Deus no lugar daquela que é mãe de Jesus. Porém, o foco da questão está na dimensão da fé, prática da família de Deus e não uma identificação direta sobre Maria como bendita.
No oitavo bloco acentuamos em Maria a dimensão oracional e comunitária da fé, Ela é perseverante na oração e está inserida na comunidade crente que tem esperança. Ela está integrada com o projeto de concretização do Reino de Deus (At 1,14).
d)   Maria no evangelista João
O Evangelho de João está dividido em três partes: prólogo (1,1-18), livros dos sinais (1,19-12,50) e livro da exaltação (13-20). Maria está presente na segunda e terceira parte. É importante destacar que ela nunca é chamada pelo nome (Maria), mas por duas características importantes e já citadas: mãe e mulher. Um diferencial deste Evangelho é que Maria é chamada de “mãe do discípulo amado”. Aqui se situa sua ligação com toda a comunidade de fé, todo o povo de Deus.
Em Caná (Jo 2,1-12) Maria participa dos sinais de fé, da semana programática. Caná é o espaço privilegiado do começo da revelação de Jesus e da fé dos discípulos. A dinâmica da “glória” tem aproximação relacional com o êxodo/libertação do povo (Ex 10,1; Nm 14,11-22; Dt 7,19). Maria está inserida nessa dinâmica. Na dinâmica da realidade em que falta o vinho (visto como alegria), Maria faz um apelo.
Essa sensibilidade para com a realidade, a descoberta do que se falta para a felicidade da comunidade e a intervenção em favor da mesma é nota da identidade mariana.  A resistência da fé é outro elemento de tal mulher. A exigência da realidade, a intervenção da fé, o sinal de resposta divina e a maior adesão de fé marcam esse processo. O poder, a liderança, a inclusão e participação comunitária integram um caminho para Jesus e concretização do Reino de alegria plena e integral.
Diante da cruz, com o discípulo amado, Maria está integrada no caminho de glorificação do Filho Jesus (Jo 19,25-27). Diante do drama da injustiça e da morte do Filho, Maria está de Pé (Jo 19,25). É perseverante na fé frente ao drama da morte. Maria assume o discípulo amado (comunidade) (Jo 19,26) e este a acolhe como mãe e na comunidade (Jo 19,27).
MARIA LIBERTADORA: NA REALIDADE LATINO-AMERICANA
            A partir do Concílio Vaticano II tivemos nos documentos da Igreja novos desafios para interpretar a presença e importância de Maria na Doutrina Social da Igreja para além de um devocionismo, uma recitação de Rosário e uns relatos de aparições. A nova impostação mariana estava agora sendo refletida a partir da história da salvação e da eclesiologia. Esses dois espaços foram sendo o lugar da reflexão. Porém, mais duas orientações foram decisivas para a nova hermenêutica sobre Maria na América Latina: a retomada das fontes bíblicas, o diálogo com as novas ciências modernas e a contemporaneidade.
            Essas orientações contribuíram para o estatuto epistemológico da mariologia no continente das histórias injustas e com a latente figura materna de Maria na centralidade da fé. Porém, decididamente com as aparições de Guadalupe em 1531 começa na Igreja latina a florescer a figura de Maria associada à Libertação a partir de novas perspectivas antropológicas e sociais.
Daí começou-se a observar em Maria a identidade feminina e de “Mulher” comprometida com a história deste povo (de Deus e do povo latino-americano). Nesse primeiro passo encontramos a relevância da identidade de Maria como Mulher já sinalizada no final do evangelho joanino (19,26) e em partes do evangelho mateano (1,20). A identidade feminina marial tem sua contribuição advinda dos novos sujeitos teológicos (a irrupção da mulher na teologia), das emergentes correntes teológicas (feministas) e das acentuações no campo pastoral e eclesial (a participação e comprometimento feminino nas igrejas, ministérios e lideranças) da América Latina. A emergente mariologia privilegiou uma releitura das Escrituras na dinâmica da práxis libertadora, mas com certo respeito da Tradição e da devoção eclesial à Mãe de Jesus.
Assim, iniciou-se uma maior identificação de Maria com as situações de sofrimentos, dor, desamparo e pobreza do povo. Com ela o Evangelho tornou-se mais encarnado. Sua primeira contribuição foi: a recuperação da voz das mulheres e a escuta dos clamores femininos por libertação, frente à realidade patriarcal, androcêntrica, sexista e discriminatória da mulher. Em tal situação encontramos a inspiração teologal da sensibilidade, resistência e práxis libertadora mariana no evangelista joanino (2,3). De igual modo a liderança, missionariedade e evangelização feminina (Maria faz parte desse processo) encontra sua inspiração bíblica na experiência com o ressuscitado no final dos escritos joaninos.
 Na teologia feminina libertadora a mariologia supera a visão ideologizada de ocultamento e submissão, presente na Tradição, por uma concepção revolucionária de justiça, corporeidade e maternidade na participação co-geradora de um mundo novo em Cristo. Tal concepção é desvelada pela participação e concepção de Maria no evangelho mateano (1,15-16).
A mariologia libertadora assume a causa dos pobres como reflexão bíblica a partir do olhar latino-americano. Trata-se da identificação de Maria com a condição, vida, identidade e esperança do pobre, no evangelho lucano (1,46-50; 1,26; 2,12; 2,24; 7,18-23) e mateano (Lc 2,6). No Magnificat (Lc 1,46-50) Maria é arquétipo da Igreja latino-americana: chamada a identificar-se com os povos sofridos e empobrecidos dessas nações; a maternidade de Maria em relação ao filho Jesus, identifica-a como mãe daqueles a quem Jesus quis si identificar (os pobres), dai o fundamento de Maria ser mãe do Filho de Deus e Mãe dos Pobres, referência cristã na teologia da Igreja por libertação.
BIBLIOGRAFIA
A BÍBLIA de Jerusalém. Nova ed. rev. São Paulo: Paulinas, 1985. 
DORADO, Antonio González. De Maríra conquistadora a María libertadora: mariologia popular latino-americana. Guevara: Editorial Sal Terrae, 1988.
MURAD, Afonso Tadeu. Maria, toda de Deus e tão humana: compêndio de mariologia. São Paulo: Paulinas, Santuário. 2012.
MURAD, Afonso Tadeu. Quem é essa mulher: Maria na Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1996.
SILVA, João Justino de Medeiros. Pneumatologia e mariologia no horizonte teológico latino-americano.Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana, 2003.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Grito Profético contra o crime de Brumadinho

No dia 22 de fevereiro na Igreja São José (paróquia redentorista do centro de BH) aconteceu o grito profético dos religiosos contra o crime humano e ambiental que se deu em Brumadinho – MG, pela multinacional empresa mineradora Vale (composta por uma corporação de apoiadores, políticos e empresarios). Há três anos do rompimento da Barragem de Mariana (5/11/15), (que matou pelo menos 19 pessoas, destruiu o povoado de Bento Rodrigues, destruiu matas, nascentes, córregos e toda a biodiversidade do Rio Doce e sua foz no Atlântico,) agora tal tragédia se repete, porém com danos maiores para a população e o meio ambiente.
Cerca de 500 pessoas (dentre estas, pobres, povo de rua, desconhecidos) tiveram suas vidas ceifadas pelos dejetos; as famílias sofrendo tamanha dor com os que foram soterrados; a cidade com toda a sua riqueza sociocultural foi destruída; o rio Paraopeba morto, está contaminado e com número zero de diversidade aquática; o povo indígena Pataxós foi prejudicado pelo crime ambiental.
O desejo de lucro a qualquer custo, a corrupção fiscal, as negociações políticas e empresariais para o rico empreendimento da Vale fizeram com que ela fechasse os olhos para esse grande mal e pecado socioambiental, pecado este que poderia ter sido evitado. Mas não: a Vale  continuou comprando os políticos, os fiscais, a imprensa e mentindo nos congressos e reuniões de responsabilidade ambiental. O resultado foi catastrófico para a biodiversidade da região e população de Brumadinho.  Essa irresponsabilidade exige Justiça.
Se no caso de Mariana a empresa transferiu todos os seus bens para outra empresa, antes da imposição fiscal, e, por conseguinte, não indenizou os atingidos, não entregou as casas prometidas, não pagou um tostão das multas; na contemporânea situação os mesmo não pode acontecer. Precisamos pressionar nossos governantes para que tal crime não fique impune. Algumas promessas estão sendo encaminhadas (doação de 100 mil e liberação do FGTS para cada família), mas isso nunca pagará as vidas humanas e ecológicas que foram apagadas da existência.  O chamado a consciência ética é o grande apelativo de Deus para com esse crime: “Que fizestes? A voz do sangue do teu irmão, desde o solo, clama a mim!” (Gn 4,10).
Diante deste fato, os religiosos não pretendem deixar esquecida na história esse evento trágico, e muito menos deixar de gritar e exigir do Estado (dependente das grandes empresas) e dos governantes (ligados ao agronegócio, acionistas, projetista e investidores comerciais) leis mais rígidas frente à falta de limite empresarial capitalista. A população não pode se calar. Os envolvidos não podem ser esquecidos e muitos menos ficar impunes.
A proposta de flexibilidade nas leis ambientais (presente no governo de Bolsonaro (PSL), Pimentel (PT) e Zema (PN), dentre outros) está acontecendo e precisa de um basta! Não podemos ficar calados e muito menos imobilizados diante dessa situação. Por isso, que a Igreja São José foi no dia 22 deste mês um espaço que dava voz aos religiosos profetas, aos excluídos indígenas e a todas as pessoas de boa vontade.
Infelizmente há muita desinformação. Muita gente não sabe que atualmente há mais de 24 mil barragens voltadas a diversas finalidades em todo o território nacional, 790 delas são destinadas a rejeitos de mineração. E existem ao todo 31 órgãos que abarcam 154 funcionários para fiscalizarem todas essas barragens (Agencia Nacional das Águas). O governo, dando liberdade irresponsável às empresas para incrementar a atividade criminosa, estabelece que: a fiscalização deve ser exercida pela própria empresa. Nada garante que a fiscalização é de fato efetivada com eticidade. Falta transparência nas decisões políticas: no ano passado (11/12), em reunião com os órgãos de Secretaria do Meio Ambiente, a empresa declarou que a barragem era segura.
Urge fazermos alguma coisa para refrear os crimes que vem acontecendo. É preciso “parar” as atividades mineradoras e fazer uma fiscalização séria e transparente sob a real situação das barragens; é preciso investir em projetos que sejam sustentáveis, isto é, vise o bem comum, e não destrua a vida no planeta por causa de lucro; é preciso ir a luta, assumir os espaços de crise socioambiental e denunciar as injustiças cometidas contra a população e principalmente contra os fragilizados e excluídos da sociedade: os pobres, os indígenas, o ecossistema, a mãe Terra; é preciso medidas éticas, sociais e políticas de preservação social e ambiental.