O Grito dos Excluídos nasceu a partir das pastorais sociais da Igreja Católica com o apoio da CNBB. É uma mobilização popular com o objetivo: a) de denunciar o modelo político e econômico que concentra riquezas e condena milhões de pessoas à exclusão social; b) tornar público, nas ruas e praças, o rosto desfigurado dos diversos grupos excluídos, vítimas do desemprego, da miséria, da fome e do preconceito; c) propor caminhos alternativos ao modelo econômico neoliberal, de forma a desenvolver uma política de inclusão social, com a participação ampla de todos os cidadãos. Em diversas regiões do Brasil a desigualdade social é gritante. É o resultado de políticas públicas, esvaziadas de qualquer princípio de moralidade e ética, principalmente em relação aos mais pobres da nossa sociedade. Quem se cala, consente. Por isso que, no dia 07 de setembro deste ano, nós – Os Missionários Redentoristas da Vice Província de Fortaleza, da Província do Rio e da Província da Bahia, dentre outras províncias e unidades – participamos do “23º Grito dos Excluídos”. O lema foi “Por direitos e democracia, a luta é todo dia” e o tema: “A Vida em Primeiro Lugar”. Em Minas Gerais estivemos no grito e lutamos pela causa dos excluídos de Belo Horizonte, aqueles que também fazem parte do nosso carisma fundacional: 1) levantamos a voz diante da situação política, economia e social difícil que está passando a maior parte do povo brasileiro, 2) gritamos contra as medidas políticas que viabilizam a posse e extração dos bens preciosos da Amazônia, 3) dizemos basta: ao o atual governo que quer implantar o reajuste fiscal e concessões, prejudicando a maioria do povo brasileiro, 4) denunciamos os políticos (Geddel) que fez e fazem lavagem de dinheiro e estão roubando o dinheiro público, 5) gritamos pelo descaso, preconceito, descriminação e exclusão que sofrem os moradores de rua e a mulheres em situação de prostituição. Tais ações do status quo estão tirando o direito e a liberdade democrática do povo brasileiro, principalmente dos mais pobres e excluídos. Em vista da justiça do Reino lutamos contra tais situações de opressão e exclusão: a luta continua, todo dia!
sexta-feira, 3 de novembro de 2017
quarta-feira, 1 de novembro de 2017
EMMANUEL LÉVINAS: DE UMA ONTOLOGIA PARA UMA ÉTICA DA ALTERIDADE INFINITA
Isaias Mendes Barbosa
Graduado em Filosofia
pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), discente do curso de Teologia na
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Estudante da Instituição Congregação do
Santíssimo Redentor.
(Comunicação apresentada no III Seminário Internacional Emmanuel Lévinas no dia 28 de outubro)
(Comunicação apresentada no III Seminário Internacional Emmanuel Lévinas no dia 28 de outubro)
RESUMO: A
proposta filosófico-ética de Emmanuel Lévinas (1906-1995), além de uma crítica
ao pensamento ontológico ocidental, é a articulação de uma ontologia da
existência ao existente, na relação entre o ente e o ser, com a necessidade de
uma superação da absolutização, violência e fracasso a que a ontologia tradicional estava
fadada. A reflexão ontológica levinasiana não se fixa num “ser” totalizado,
estanque em si, mas parte da forma de existência do ser: o “há”, impessoal e sempre existente,
inclusive quando tudo está reduzido ao nada. Porém, tal ontologia fadada à
solidão, fora do mundo e da relação com a alteridade, precisa sair de tal fim
solitário e impessoal para um além ético, um “ser-para-o-outro” que transcende
o estado de prisão que se situou a humanidade. Isso só se realiza pela ética,
que efetiva o “diversamente ser” e a “transcendência” para o Infinito, numa
responsabilidade humana para com o outro ou outrem. Tal responsabilidade para
com o outro – razão de humanização cotidiana – é o modo de realização e
concretude da justiça e do amor na proposta ética levinasiana. Partindo dessas
pontuações, a presente comunicação objetiva descrever o percurso da proposta
ética levinasiana que passa de uma ontologia para uma ética da alteridade. A
entrevista que Lévinas concebeu a Phelippe Nemo, posteriormente editada e
intituladas como Ética e Infinito (1982),
e a obra Totalidade e infinito (1961),
dentre outros materiais literários, são as fontes principais da pesquisa. A
metodologia a seguir é uma exposição filosófica argumentativa acerca das linhas
gerais do filósofo que corroboram a temática tratada. Nesta exposição se segue
categoricamente as seguintes pontuações: i) a crítica levinasiana à ontologia
da tradição ocidental, ii) o “há” ontológico
e as limitações do ser na filosofia levinasiana, iii) a importância da ética da
responsabilidade e alteridade, como saída do ser, na filosofia levinasiana e,
por fim, vi) algumas luzes da ética de Emmanuel Lévinas para conjuntura social
e política no Brasil. A crítica levinasiana à filosofia ocidental se reporta à
concepção absolutista, finita, totalizante e homogenia que se formou na ontologia
e seu esquecimento da alteridade e da ética como fundamento de realização
humana. O “há” levinasiano é o
fenômeno do ser impessoal, é como se o vazio estivesse cheio, ou o que ele
chama de um terceiro excluído, que precisa se libertar, depor-se, numa relação
social com o outrem, o ser-para-o-outro que supera o anônimo, insignificante e
solitário ser, o sem sentido. O aspecto da ética da socialização,
responsabilidade e alteridade é a maneira pela qual acontece a saída do ser sem
sentido. No filósofo a ética, e não a ontologia, assume o estatuto de ciência
primeira e fundamental para o sujeito que deve assumir a alteridade como
condição da existência e essência humana. Pois a vida do outro está sob a
responsabilidade do sujeito sem que este espere uma reciprocidade. É nessa
responsabilidade desinteressada que se fundamenta a justiça e o amor no face a
face e na responsabilidade pelo outro. Neste sentido a humanização é o ser que se
desfaz da sua condição negativa e totalizante para um eu subjetivo na relação e
responsabilidade com o outro. Ser humano significa: viver como se não fosse um
ser entre os seres, mas um outro modo que ser.
A ética da negação do ser solitário, descomprometido social e eticamente
com o outro, é o sinal que pode iluminar a conjuntura social e política
brasileira. Tal ética da alteridade e responsabilidade incondicional do outro é
um contributo para a política brasileira carente de pessoas comprometidas e a
serviço do bem comum, especialmente do outrem descartado e excluído na
contemporânea sociedade.
Palavras-chave:
Filosofia ocidental; Ontologia; Ética; Responsabilidade; Brasil.
Introdução
A
proposta filosófica do lituano Emmanuel Lévinas (1906-1995) não pode ser compreendida
sem dois momentos históricos processuais vivenciados por ele no século XX: as
duas grandes guerras mundiais, e o encontro com Husserl e Heidegger. O
acontecimento das duas guerras foi motivo de reflexão sobre a capacidade humana
de dominação e destruição de sua espécie, assim como foi um questionamento
sobre a validade da razão ilustrativa
como método de apreensão da realidade e de humanização do “ser” humano. O encontro
com os dois pensadores foi determinante para o despertar filosófico levinasiano
acerca da questão ontológica em sintonia com a fenomenologia transcendental.
Foram
esses dois momentos que despertou em Lévinas a possibilidade de uma nova
filosofia que superavam a ontologia até então vigente. Pois na perspectiva de
Lévinas estava cada vez mais patente que a filosofia da tradição era uma
ontologia que fazia violência à humanidade, porque totalizava, conceituava, objetivava,
prendia e uniformizava os seres. Eliminando a possibilidade do diverso, da
alteridade, da criatividade que existia na relação com o Outro. Em suma: o
problema da racionalidade ontológica ocidental foi converter o Outro ao Mesmo e
prender o Eu nas amarras do seu “ser”, presente na primeira pontuação.
A
partir da crítica ao pensamento ontológico ocidental, Lévinas articula uma nova
filosofia, da existência ao existente, na relação entre o ente e o ser, com a
necessidade de uma superação da absolutização, violência e fracasso a que a
ontologia ocidental estava fadada. Neste sentido a segunda pontuação apresenta
o novo percurso filosófico empreendido por Lévinas. Ele parte da forma de
existência do ser, o “há” (Il y a):
um ser impessoal e sempre existente,
inclusive quando tudo poderia estar reduzido ao nada. Porém, tal ontologia
fadada à solidão, fora do mundo e da relação com a alteridade, precisa sair de
tal fim solitário e impessoal para um além ético, um “ser-para-o-outro” que
transcende o estado de prisão que se situou a humanidade. Isso se faz pela
ética. O terceiro ponto mostra que é nessa dinâmica de saída, que se realiza a
ética levinasiana: uma ética da alteridade, uma ética da responsabilidade, que
efetiva o “diversamente ser” e a “transcendência” numa responsabilidade e
espaço de atuação para o outro. É a dinâmica para o Infinito, em que a Ética
assume o estatuto de filosofia primeira.
No
quarto ponto expomos que a partir da ética levinasiana é possível considerar
cinco orientações que iluminam a conjuntura social e política no Brasil:
trata-se de observar a ética na política, a relação entre o Eu político e o
Outro, a responsabilidade para com a alteridade, a busca pela justiça e a
equidade econômica. Essas são as luzes para percebermos a relevância do
pensamento levinasiano na contemporânea sociedade.
A crítica levinasiana à ontologia da tradição ocidental
O
século XX é marcado por grandes transformações e experiências existenciais que
promoveram uma mudança de paradigma, um novo olha sobre a realidade do mundo:
trata-se da primeira (1914) e segunda (1939) guerra mundial (1914 e 1939) e da
Revolução Russa (1917) que propiciou ao ser humano pensar sobre sua existencial
e o sentido fundamental da vida, poderia-se dizer, o sentido para o “ser”
humano e o valor da realidade que o configura. É sobre a força e luzes desse
contexto que o lituano – francês – judeu Emmanuel Lévinas (1906-1995)
desenvolve um pensamento filosófico original e inovador para a Modernidade até
a Contemporaneidade.
Essa
inovação filosófica levinaziana – que chamamos comumente de “ética da
alteridade” ou “ética da responsabilidade”, – se realizou, no referido contexto,
por uma percepção crítica de que a ontologia ocidental da tradição não
respondia as exigências do novo tempo, pós-guerra. Mas, pelo contrário, teria
sido o grande problema que a filosofia ocidental trouxe à Modernidade. Segundo Lévinas
afirma na obra Totalidade e Infinito:
“A filosofia ocidental foi, na maioria das vezes, uma ontologia” (LÉVINAS, 2011,
p.30). Tal ontologia seguiu uma racionalidade que amarrou o ser de sua
liberdade e de sua dinâmica essencial relacional: o Eu com o Outro. “A
ontologia tradicional reduziu o Outro ao Mesmo” (LÉVINAS, loc. cit.), e o “ser” se apresentou na guerra sobre as amarras de
uma ontologia totalizante:
A face do ser que se mostra na guerra
fixa-se no conceito de totalidade que domina a filosofia ocidental. Os
indivíduos reduzem-se aí a portadores de formas que os comandam sem eles
saberem. Os indivíduos vão buscar a essa totalidade o seu sentido objetivo
(invisível fora dela). A unicidade de cada presente sacrifica-se
incessantemente a um futuro chamado a desvendar o seu sentido objetivo. (Ibid., p. 8)
Segundo
comenta o pesquisador Sergio Reis Santos na sua monografia O rosto do outro como apelo à responsabilidade em Lévinas (2012,
p.7): “crítico da filosofia ocidental, Lévinas é contrário à ontologia que
segundo ele, conduz a totalização de tudo incluindo a pessoa humana”. Tal
crítica se reporta aos seus pressupostos fundamentais e essenciais de onde
surge a filosofia grega: a busca pelos princípios das coisas, pelo ser das
coisas que são.
A
preocupação ontológica grega teve seu grande destaque no filósofo Sócrates: a
proposta fundamental era definir as coisas na sua essencialidade. Tal busca
tinha a pretensão de apreender a totalidade da realidade. Em Parmênides a busca
do ser era feita pela libertação do mundo da opinião, mundo este em que se tentava sustentar que o ser e o
não-ser fazia parte da dinâmica da realidade. A proposta de Parmênides é que o
“ser é” e o “não-ser” não é. Isto quer dizer que só havia a predominância do
ser e não qualquer coisa que viesse a negar a sua existência.
Porém
a maior expressão dessa ontologia metafísica está na maiêutica socrática: na
busca pelo ser, da verdade, das coisas a partir do questionamento: o que é?!. A
verdade se expressa da interioridade do Eu e o Outro não tem relevância
construtiva para a compreensão do ser. Tal ser é observado como estático,
imutável, uniforme e permanente. Na busca ontologia o Eu neutraliza o Outro,
pois não há espaço para pensar o diversamente ser, enquanto alteridade. Em
Sócrates o ser é neutralizado e o Mesmo é uma constante imposta ao Outro:
O primado do Mesmo foi a lição de
Sócrates: nada receber de Outrem a não ser o que já está em mim, como se desde
toda a eternidade, eu já possuísse o que vem de fora. Nada receber ou ser
livre. A liberdade não se assemelha à caprichosa espontaneidade do
livre-arbítrio. O seu sentido último tem a ver com a permanência do Mesmo, que
é Razão. [...] A neutralização do Outro, que se torna tema ou objecto – que
aparece, isto é, se coloca na claridade – é precisamente a sua redução ao
Mesmo. (Ibid., p. 30)
Na
obra Ética e Infinito Lévinas comenta
o limite que a filosofia apresentou na ontologia totalizante. A história da
filosofia tradicional se gestou “como uma tentativa de síntese universal, uma
redução de toda a experiência, de tudo aquilo que é significativo, uma
totalização em que a consciência abrange o mundo, não deixa nada fora dela,
tornando-se assim pensamento absoluto” (LÉVINAS, 1982, p. 67). “O saber
absoluto, tal como foi procurado, prometido ou recomendado pela filosofia, é um
pensamento do Igual. [...] ela consiste em fazer que o Outro se torne o Mesmo” (LÉVINAS,
loc. cit.). A absolutização da filosofia ontológica não deixou espaço para
alteridade, implantou a consciência de si ao mesmo tempo com a consciência do
todo, onde não há distinção, diferença e nem o outrem, mas uma apropriação e
redução ao Mesmo. A totalização de todas as coisas em um único saber (LÉVINAS,
loc. cit.), onde o homem “é” para o homem.
É
nesse aspecto que a filosofia ontológica se tornou uma “filosofia do poder”,
que ao empreender a realidade, conceitua-la, em termos absolutistas e
autônomos, neutraliza o ente, o Outro. “A neutralização do Outro, que se torna
tema ou objeto – que aparece, isto é, se coloca na claridade – é precisamente a
sua redução” (LÉVINAS, loc. cit.). A
definição é uma apropriação ou supressão do Outro, porém sua apropriação também
se classifica como uma negação da sua independência. Por fim, o filósofo Benjamin
Hutchens na obra Compreender Lévinas
apresenta ideias bem esclarecedoras a cerca da crítica levinasiana à filosofia
ocidental:
O Ocidente foge dos segredos
obliterados do passado, dos eventos imprevisíveis do futuro e de qualquer coisa
que não possa ser ordenada e manipulada racionalmente. É preciso que tudo seja
conhecido, compreendido, sintetizado, analisado, utilizado; se alguma coisa não
pode ser captada pela mente racionalista, ela é considerada irrelevante ou mau
presságio. A racionalidade ocidental busca racionalizar o ser de Deus para que
esse se torne apenas um ser entre seres. Ela despe os indivíduos de todas as
facetas de suas existências que são peculiares, reduzindo a uma multidão sem
faces, que vive lado a lado anonimamente. (HUTCHENS, 2009, p.29-30)
O “há” ontológico e as limitações do ser na filosofia
levinasiana
Se
a critica levinasiana à ontologia ocidental se reporta à sua racionalidade e
apreensão totalizante que uniformiza a realidade, imprimindo o Mesmo, ora
manipulando-o, ora excluindo o Outro, tal crítica apresenta uma nova orientação
na predominância do cunho ético ao ontológico. Como ele acentua na Ética e Infinito: “é necessário
compreender que a moralidade não surge, como uma camada secundária, por cima de
uma reflexão abstracta sobre a totalidade e seus perigos; a moralidade tem um
alcance independente e preliminar. A filosofia primeira é a ética” (LÉVINAS,
1982, p. 71). Trata-se, portanto, de processualmente abandonar a ontologia
ocidental para fazer um novo percurso existencial humano em que o sujeito e o
outro possam ser livres.
Esse
percurso passa pela superação da conceituação realizada pela ontologia
ocidental. Uma primeira luz para esse novo percurso está na novidade trazida
por Heidegger, pois, segundo Lévinas “um homem que, no século XX, começa a
filosofia não pode deixar de ter atravessado a filosofia de Heidegger, mesmo
para dela sair” (Ibid., p. 34). É
esse o processo que ele vai fazer na construção de seu pensamento.
Habitualmente, fala-se da palavra ser
como se fosse um substantivo, embora seja, por excelência um verbo. Em francês,
diz-se “l’être” (o ser), ou “um être” (um ser). Com Heidegger, na palavra ser
revelou-se a sua “verbalidade”, o que nele é acontecimento, o “passar-se”do
ser. Como se as coisas e tudo o que existe se “ocupassem em estar a ser”.
“fizessem uma profissão de ser”. Foi a esta sonoridade verbal que Heidegger nos
habituou.(Ibid., p. 30)
Lévinas ficou fascinado pela obra Seit und Zeit de Heidegger. Em tal obra
ele define a filosofia como ‘ontologia fundamental’: “É precisamente a
compreensão do verbo ‘ser’. A ontologia distingue-se de todas as disciplinas
que exploram o que existe, os seres, isto é, os ‘entes’, a sua natureza, as
suas relações – esquecendo-se de que, ao falar dos entes, elas já compreenderam
o sentido da palavra ser” (LÉVINAS, loc.
cit.). A compreensão do ser, a
dinâmica da própria existência é a ontologia. Tal ser é definido por Heidegger
como ‘es gibt’ que denota abundância e generosidade. É uma ontologia que trata
do nada. Apesar de Heidegger tentar salva a filosofia ontológica ocidental sob
novas interpretações e conceituações, Lévinas difere do seu pensamento. Aqui
está o aspecto de sua “saída”, da tradição, isto é, o seu passar por Heidegger
para sair dele. Porque a ontologia deste que tenta salvar o ser com uma nova
formulação é limitada.
Na
compreensão profunda deste estado em que se encontra o ser, Lévinas utiliza uma
expressão distinta. O termo que Lévinas utiliza para falar da forma de
existência do ser é o “há”, ou “il y
a”. Para uma melhor definição Lévinas acentua:
[..] “há”, para mim, é o fenômeno do ser
impessoal: “il” (il y a). A minha reflexão este tema parte da lembrança da
infância. Dorme-se sozinho, as pessoas adultas continuam a vida; a criança
sente o silêncio do seu quarto de dormir como “sussurrante”. [...] Algo que se
aparece com aquilo que se ouve ao aproximarmos do ouvido uma concha vazia, como
se o vazio estivesse cheio, como se o silêncio fosse um barulho. Algo que se
pode experimentar também quando se pensa que, ainda se nada existisse, o facto
de que “há” não se poderia negar. Não que haja isto ou aquilo; mas a própria
cena do ser estava aberta: há. (Ibid., p. 39-40)
É
um ser anônimo, impessoal. É o estado mais complexo e problemático do que
aquele apresentado por Heidegger. É além do ser e o nada de Heidegger. Trata-se
de um estado que se recusa a toda especificação pretendida pela tradição
filosófica ocidental. É um ser que se separa da estabilidade e fixação de ontológica,
de sua referencia ou existência cosmológica. “Para Lévinas, ao contrário, o há
(il y a) não possui ‘generosidade alguma’. É o silêncio durante a noite, um
silencio murmurante, que se escuta como presença surda e invisível de um ser
indefinido, de um ser que exclui a humanidade, que desafia a existência”
(POIRIÉ, 2007, p. 17):
De fato, insisto na impessoalidade do
“há”; “há”, como “chove” ou “é de noite”. E não há nem alegria nem abundância:
é um ruído que volta depois de toda negação de ruído. Nem nada, nem ser.
Emprego, por vezes, a expressão: o terceiro excluído. Não pode dizer-se deste
“há” que persiste, que é um acontecimento do ser. Não se pode também dizer que
é o nada, ainda que não exista nada. (LÉVINAS, 1982, p. 39)
Porém, neste estado existencial,
impessoal, anônimo, de caos e abismo, é preciso se libertar do ser, da
ontologia. Porque o estado do “há” indica uma necessidade de saída do ser que
chegou ao seu fracasso, a sua extrema angustia interior. A “saída do ser indica,
ao mesmo tempo, uma subjetividade com recusa, como esforço para deixar uma
situação que se tornou insuportável” (FABRI, 1997, p.33). A falta de relação
com a alteridade, o Rosto do Outro, gera um ser solitário, limitado a si,
estanque no universo introspectivo, na nudez de si mesmo, uma situação-limite.
Tais situações impõe a necessidade da evasão, diante de um ser instabilizado e
sufocado, diante de um mal estar. O
tempo marca a possibilidade de interação com o Outro para libertação do Eu do
seu egoísmo. Segundo Lévinas comenta sobre sua obra O Tempo e o Outro:
A sociabilidade será uma maneira de
sair do ser, sem ser pelo conhecimento. A demonstração não é levada, neste
livro, até o fim, mas é o tempo que então me aparecia como um alargamento da
existência. O livro mostra, em primeiro lugar, na relação com o outro,
estruturas que não se reduzem à intencionalidade. Põe em dúvida a ideia
husserliana de que a intencionalidade representa a própria espiritualidade do
espírito. E o livro procura compreender o papel do tempo nesta relação: o tempo
não é uma simples experiência de duração, mas um dinamismo que nos leva para
outro lado diferente das coisas que possuímos. (LÉVINAS, 1982, p. 53)
Por fim, em relação ao aspecto
ontológico do “há”, o filósofo sustenta que “ para sair do ‘há’ não é
necessário pôr-se, mas depor-se; fazer um acto de deposição, no sentido em que
se fala de reis depostos. A deposição da soberania pelo eu é a relação social
com outrem, a relação des-inter-essada” (Ibid.,
p.43). A partir dessa dinâmica existencial do sujeito em relação com o outro é
que Lévinas faz a transição da ontologia para a ética como a filosofia
primeira.
A importância da ética da alteridade e responsabilidade
O
ponto fundamental da ética levinasiana se assenta na relação do Eu com o Outro.
Todo o esforço de Lévinas consiste em expor no discurso uma relação não
alérgica do Eu com a alteridade, descobrir nele o Desejo que possibilita, no
face a face, a consideração do Outro, uma comunidade do Eu com o Outro
(LÉVINAS, 2011, p. 34). Somente nessa relação é que o ser sai de si. Tal
relação significa o predomino do ético em detrimento do ontológico para que o
sujeito existente possa se libertar das amarras do anonimato e da
impessoalidade. E para que o Outro possa assumir o seu espaço na relação, dando
sentido ao sem sentido do Eu, e ampliar a dinâmica da realidade na sua
multiplicidade e criatividade.
Foi
na proposta do “ser – para – o – outro” que Lévinas percebeu a saída do rumor
anônimo e insignificante do ser, do desespero da solidão, ou isolamento do
existir, para a liberdade. Esse caminho se realiza primeiramente por duas
etapas:
Examino, em primeiro lugar, uma
“saída” para o mundo, no conhecimento. O meu esforço consiste em demonstrar que
o saber é, na realidade, uma imanência, e que não há ruptura do isolamento do
ser no saber; que, por outro lado, na comunicação do saber nos encontramos ao
lado de outrem, e não confrontados com ele, não na verticalidade do frente a
frente. (Ibid., p.49)
Além
desses dois elementos, a transcedentalidade do sujeito se faz pela disposição
do Eu em acolher o Outro sem tentar tomá-lo, apreendê-lo na sua conceituação ou
objetividade. Assim, quanto mais o Eu se deixa tocar e afetar pelo Outro, mais
ainda ele chagará a sua autenticidade assim como alcançará real liberdade. Segundo
Hutches, o Outro transcende a racionalidade ontológica:
[...] embora Lévinas “refira-se ao
Outro como totalmente e infinitamente outro”, ele “não nega que o Outro é
compreendido em termos de ser”. A outra pessoa, então, é um alter ego (como
Lévinas às vezes escreve) mas é “sempre mais do que isso”. Até certo ponto, o
“Outro” é como uma pessoa, mas essa semelhança não ultrapassa esse ponto de
forma alguma; ele é mais que meramente uma pessoa [...]. (HUTCHENS, 2009, p.
38)
O
outro em Lévinas não é um objeto formal, não é o inverso da identidade, nem o
produto de uma resistência ao Mesmo, mas uma alteridade anterior a toda
iniciativa. Não limita o Mesmo e nem aniquila o Eu, mas promove a liberdade do
sujeito. Nesses aspectos é que se constitui a ética da alteridade.
Todavia,
outra característica constitui essencialmente a ética levinasiana: a
responsabilidade pelo outro. É “responsabilidade por aquilo que não fui eu que
fiz, ou não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito [...], diremos
que, desde que o outro me olha, sou por ele responsável, sem mesmo ter que
assumir responsabilidade a seu respeito”
(LÉVINAS, 1982, p. 87-88). Ora, a
responsabilidade só se realiza mediante a relação:
O laço com outrem só se apresenta como
responsabilidade, quer esta seja, aliás, aceite ou rejeitada, se saiba ou não
como assumi-la, possamos ou não fazer qualquer coisa de concreto por outrem.
Dizer: eis-me aqui. Fazer alguma coisa por outrem. Dar. Ser espírito humano é
isso. A encarnação da subjetividade humana garante a sua espiritualidade [...].
Dia-conia antes de todo o diálogo: analiso a relação inter-humana como se, na
proximidade com outrem – para além da imagem que faço de outro homem –, o seu
rosto, o expressivo no outro (e todo o corpo humano é, neste sentido mais ou
menos, rosto), fosse aquilo que me manda servi-lo. (Ibid., p. 89)
Por fim, a proposta ética da
responsabilidade implica a vida existencial do ser em relação com a Infinitude.
Pois tal horizonte ético encontra sua forma perfeita de atuação e atualização
no eterno “desdizer o ser”, ou “ser diversamente”, “o outro modo que ser” na
transcedentalidade. A ideia de Infinito tem influência a de Descarte e Husserl.
Tal ideia não pode ser apreendida, tematizada ou conceituada, pois transcende
qualquer tentativa de determinação e objetivação. Essa relação é uma alteridade
total.
Na
obra Ética e Infinito Lévinas apresenta
o Infinito como sendo o Rosto do Outro. Na relação com a mística judaica ele
discorre:
O rosto significa o Infinito. Este
nunca aparece como tema, mas na própria significação ética: isto é, no fato de
que quanto mais justo eu for mais responsável sou; nunca nos livramos de
outrem. [...] é exigência de santidade. Ninguém pode dizer em momento algum:
cumpri todo o meu dever. Excepto o hipócrita... É neste sentido que há uma
abertura para além do que se delimita: tal é a manifestação do Infinito. Não é
uma “manifestação” no sentido de “desvelamento”, que seria adequação a um dado.
[...] Quando, na presença de outrem, digo “Eis-me aqui!” é o espaço por onde o
Infinito entra na linguagem, mas sem se deixar ver. Por não ser tematizado, não
aparece, em todo caso, originalmente. (Ibid.,
p.97-98)
Algumas luzes da ética de Emmanuel Lévinas para
conjuntura social e política no Brasil
Depois de fazermos um trajeto da
crítica levinasiana à ontologia ocidental até a sua proposta ética da
responsabilidade, podemos formular alguns caminhos iluminadores para a conjuntura
social e política no Brasil. A primeira orientação diz respeito em considera o
estatuto de uma ética da responsabilidade na política brasileira. É sabido que
a história do Brasil é marcada por um descompasso entre medidas políticas e o
bem comum. A década de 60 foi a marca forte da ditadura militar em que as
imposições governamentais e o poder armado foi totalmente contra o bem comum,
portanto, antiético. Na contemporaneidade vemos cada vez presente a carência da
ética na nossa conjuntura social e política. Neste sentido o destaque levinasiano da ética sobre a ontologia serve como sinal para a necessidade da
relevância da ética na política.
A
segunda orientação se reporta ao aspecto relacional da ética. Trata-se da
dinâmica do Eu com o Outro. É um perceber-se e identificar-se enquanto sujeito
e razão existencial e funcional a partir do Outro. Na atual conjuntura
brasileira o Outro é percebido, porém é visto como o Mesmo. Isto é, ele é
objetivado a partir da dinâmica do Eu. Se predominantemente a mentalidade e o
sistema econômico é capitalista, as relações sociais são delineadas e definidas
pela objetivação do Outro, isto é, como máquina da produção, ou numa
interpretação marxista, como uma força de trabalho que se tornou mercadoria,
portanto, perdeu a sua identidade pessoal e particular: de outro que ser. Daí o caminho de
luz é uma relação autentica em que o Outro seja
acolhido e se torne o espaço de partida das medidas e ações políticas e
econômicas. Isso quer dizer que o Eu político teria que assentar sua razão de
ser e seu modo de atuar a partir do espaço da situação e perspectiva do Outro.
Um exemplo prático dessa dinâmica do Eu para o Outro seria a necessidade das lideranças políticas de pensar e atuar a partir
daqueles que são os excluídos da sociedade: os pobres. Estes podem ser compreendidos como sendo o rosto do Outro que ora é esquecido, ora é definido e tratado discriminadamente.
A
terceira orientação é a necessidade de uma práxis política em que o Eu é
responsável pelo Outro. Isso implica reconhecer na alteridade a sua
responsabilidade a mais. Perceber que a fraqueza, decadência e fragilidades do
Outro se dá porque o Eu político age egoisticamente. Seria a consideração e
constatação de que a estrutura política, econômica e social brasileira é
desigual e injusta por conta da insensibilidade, fechamento e
irresponsabilidade do Eu político, e da falta de eticidade na política. Um
exemplo dessa irresponsabilidade é a escandalosa carência de bens fundamentais
que passam a maioria do povo brasileiro em contraste com a corrupção política
que temos visto nos últimos anos.
Mais
duas orientações inter-relacionais podemos tirar da ética levinasiana: a busca
por justiça e equidade econômica. Segundo Hutchens comenta sobre a ética da
responsabilidade de Lévinas: “a igualdade econômica também é uma meta ideal que
aqueles comprometidos com a justiça devem lutar para levar a cabo” (2009,
p.139). Quando se realiza uma relação
face a face do Eu com o Outro a responsabilidade se torna o princípio
fundamental ético. O compromisso orientador da responsabilidade é a justiça e esta
se torna o elemento anterior e posterior da responsabilidade. Porém não de pode
falar de justiça, de direito sem uma aproximação de igualdade econômica. Essas
duas orientações - justiça e igualdade econômica - precisam cada vez mais fazer parte da eticidade política
contemporânea. Como estamos em um sistema
político-democrático-presidencial-representativo a sociedade civil precisamos cada
vez mais lutar por justiça comum e por uma economia em que todos usufruam dos
seus bens de direito.
Conclusão
A presente pesquisa apresentou em linhas gerais a ética
da responsabilidade de Emmanuel Lévinas. Em tal proposta a crítica à ontologia
racional ocidental foi demostrada como problemática para a relação do Eu com o
Outro, pois em tal ontologia o Eu convertia o Outro ao Mesmo, objetivando-o.
Devido
a insuficiência de tal ontologia Lévinas apresenta um novo caminho que supera
as limitações ontologia tradicional. Trata-se de partir do aspecto do “há” (il
y a) como novo espaço angustiante e aterrador, como o silencia da noite, em que
o sujeito precisa transcender para sair do ser solitário e egocêntrico.
A
libertação de tal estado se dá pela ética da alteridade: o caminho de abertura
e relação do Eu para com o Outro. Essa dinâmica tanto dignifica e autentifica o
Eu como confirma e acolhe a presença e importância do Outro. É nessa dinâmica
que acontece a criatividade e pluralidade do sujeito e da subjetividade. Em
poucas palavras: é a passagem da ontologia para ética da alteridade.
Na
luz de tal ética podemos deslumbrar caminhos novos para conjuntura política no
Brasil. Quatro palavras delineariam a necessidade e predomínio da ética na política do Brasil: a abertura ao Outro, a
responsabilidade, a justiça, e a equidade econômica. A abertura para o Outro dá espaço em que os excluídos tenham voz e vez, a responsabilidade compromete
a práxis humana em vista dedicação ao Outro, a justiça viabilidade a consciência
ética e a equidade econômica potencializa o bem comum.
Referências bibliográficas
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e sentido ético em Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.
HUTCHENS, B. Compreender Lévinas. Petrópolis: Vozes,
2009.
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito: ensaio sobre a
exterioridade. Lisboa: Edições 70, 2011.
______.Ética e infinito. Lisboa: Edições 70,
1988.
POIRIÉ, François. Emmanuel Lévinas: ensaios e entrevistas.
São Paulo: Perspectiva, 2007.
SANTOS, Sergio Reis. O rosto do outro como apelo à
responsabilidade em Lévinas. 2012. 51 p. (Monografia em Filosofia) – Faculdade
São Bento, Salvador, 2012.
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