O Grito dos Excluídos nasceu a partir das pastorais sociais da Igreja Católica com o apoio da CNBB. É uma mobilização popular com o objetivo: a) de denunciar o modelo político e econômico que concentra riquezas e condena milhões de pessoas à exclusão social; b) tornar público, nas ruas e praças, o rosto desfigurado dos diversos grupos excluídos, vítimas do desemprego, da miséria, da fome e do preconceito; c) propor caminhos alternativos ao modelo econômico neoliberal, de forma a desenvolver uma política de inclusão social, com a participação ampla de todos os cidadãos. Em diversas regiões do Brasil a desigualdade social é gritante. É o resultado de políticas públicas, esvaziadas de qualquer princípio de moralidade e ética, principalmente em relação aos mais pobres da nossa sociedade. Quem se cala, consente. Por isso que, no dia 07 de setembro deste ano, nós – Os Missionários Redentoristas da Vice Província de Fortaleza, da Província do Rio e da Província da Bahia, dentre outras províncias e unidades – participamos do “23º Grito dos Excluídos”. O lema foi “Por direitos e democracia, a luta é todo dia” e o tema: “A Vida em Primeiro Lugar”. Em Minas Gerais estivemos no grito e lutamos pela causa dos excluídos de Belo Horizonte, aqueles que também fazem parte do nosso carisma fundacional: 1) levantamos a voz diante da situação política, economia e social difícil que está passando a maior parte do povo brasileiro, 2) gritamos contra as medidas políticas que viabilizam a posse e extração dos bens preciosos da Amazônia, 3) dizemos basta: ao o atual governo que quer implantar o reajuste fiscal e concessões, prejudicando a maioria do povo brasileiro, 4) denunciamos os políticos (Geddel) que fez e fazem lavagem de dinheiro e estão roubando o dinheiro público, 5) gritamos pelo descaso, preconceito, descriminação e exclusão que sofrem os moradores de rua e a mulheres em situação de prostituição. Tais ações do status quo estão tirando o direito e a liberdade democrática do povo brasileiro, principalmente dos mais pobres e excluídos. Em vista da justiça do Reino lutamos contra tais situações de opressão e exclusão: a luta continua, todo dia!
sexta-feira, 3 de novembro de 2017
quarta-feira, 1 de novembro de 2017
EMMANUEL LÉVINAS: DE UMA ONTOLOGIA PARA UMA ÉTICA DA ALTERIDADE INFINITA
Isaias Mendes Barbosa
Graduado em Filosofia
pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), discente do curso de Teologia na
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Estudante da Instituição Congregação do
Santíssimo Redentor.
(Comunicação apresentada no III Seminário Internacional Emmanuel Lévinas no dia 28 de outubro)
(Comunicação apresentada no III Seminário Internacional Emmanuel Lévinas no dia 28 de outubro)
RESUMO: A
proposta filosófico-ética de Emmanuel Lévinas (1906-1995), além de uma crítica
ao pensamento ontológico ocidental, é a articulação de uma ontologia da
existência ao existente, na relação entre o ente e o ser, com a necessidade de
uma superação da absolutização, violência e fracasso a que a ontologia tradicional estava
fadada. A reflexão ontológica levinasiana não se fixa num “ser” totalizado,
estanque em si, mas parte da forma de existência do ser: o “há”, impessoal e sempre existente,
inclusive quando tudo está reduzido ao nada. Porém, tal ontologia fadada à
solidão, fora do mundo e da relação com a alteridade, precisa sair de tal fim
solitário e impessoal para um além ético, um “ser-para-o-outro” que transcende
o estado de prisão que se situou a humanidade. Isso só se realiza pela ética,
que efetiva o “diversamente ser” e a “transcendência” para o Infinito, numa
responsabilidade humana para com o outro ou outrem. Tal responsabilidade para
com o outro – razão de humanização cotidiana – é o modo de realização e
concretude da justiça e do amor na proposta ética levinasiana. Partindo dessas
pontuações, a presente comunicação objetiva descrever o percurso da proposta
ética levinasiana que passa de uma ontologia para uma ética da alteridade. A
entrevista que Lévinas concebeu a Phelippe Nemo, posteriormente editada e
intituladas como Ética e Infinito (1982),
e a obra Totalidade e infinito (1961),
dentre outros materiais literários, são as fontes principais da pesquisa. A
metodologia a seguir é uma exposição filosófica argumentativa acerca das linhas
gerais do filósofo que corroboram a temática tratada. Nesta exposição se segue
categoricamente as seguintes pontuações: i) a crítica levinasiana à ontologia
da tradição ocidental, ii) o “há” ontológico
e as limitações do ser na filosofia levinasiana, iii) a importância da ética da
responsabilidade e alteridade, como saída do ser, na filosofia levinasiana e,
por fim, vi) algumas luzes da ética de Emmanuel Lévinas para conjuntura social
e política no Brasil. A crítica levinasiana à filosofia ocidental se reporta à
concepção absolutista, finita, totalizante e homogenia que se formou na ontologia
e seu esquecimento da alteridade e da ética como fundamento de realização
humana. O “há” levinasiano é o
fenômeno do ser impessoal, é como se o vazio estivesse cheio, ou o que ele
chama de um terceiro excluído, que precisa se libertar, depor-se, numa relação
social com o outrem, o ser-para-o-outro que supera o anônimo, insignificante e
solitário ser, o sem sentido. O aspecto da ética da socialização,
responsabilidade e alteridade é a maneira pela qual acontece a saída do ser sem
sentido. No filósofo a ética, e não a ontologia, assume o estatuto de ciência
primeira e fundamental para o sujeito que deve assumir a alteridade como
condição da existência e essência humana. Pois a vida do outro está sob a
responsabilidade do sujeito sem que este espere uma reciprocidade. É nessa
responsabilidade desinteressada que se fundamenta a justiça e o amor no face a
face e na responsabilidade pelo outro. Neste sentido a humanização é o ser que se
desfaz da sua condição negativa e totalizante para um eu subjetivo na relação e
responsabilidade com o outro. Ser humano significa: viver como se não fosse um
ser entre os seres, mas um outro modo que ser.
A ética da negação do ser solitário, descomprometido social e eticamente
com o outro, é o sinal que pode iluminar a conjuntura social e política
brasileira. Tal ética da alteridade e responsabilidade incondicional do outro é
um contributo para a política brasileira carente de pessoas comprometidas e a
serviço do bem comum, especialmente do outrem descartado e excluído na
contemporânea sociedade.
Palavras-chave:
Filosofia ocidental; Ontologia; Ética; Responsabilidade; Brasil.
Introdução
A
proposta filosófica do lituano Emmanuel Lévinas (1906-1995) não pode ser compreendida
sem dois momentos históricos processuais vivenciados por ele no século XX: as
duas grandes guerras mundiais, e o encontro com Husserl e Heidegger. O
acontecimento das duas guerras foi motivo de reflexão sobre a capacidade humana
de dominação e destruição de sua espécie, assim como foi um questionamento
sobre a validade da razão ilustrativa
como método de apreensão da realidade e de humanização do “ser” humano. O encontro
com os dois pensadores foi determinante para o despertar filosófico levinasiano
acerca da questão ontológica em sintonia com a fenomenologia transcendental.
Foram
esses dois momentos que despertou em Lévinas a possibilidade de uma nova
filosofia que superavam a ontologia até então vigente. Pois na perspectiva de
Lévinas estava cada vez mais patente que a filosofia da tradição era uma
ontologia que fazia violência à humanidade, porque totalizava, conceituava, objetivava,
prendia e uniformizava os seres. Eliminando a possibilidade do diverso, da
alteridade, da criatividade que existia na relação com o Outro. Em suma: o
problema da racionalidade ontológica ocidental foi converter o Outro ao Mesmo e
prender o Eu nas amarras do seu “ser”, presente na primeira pontuação.
A
partir da crítica ao pensamento ontológico ocidental, Lévinas articula uma nova
filosofia, da existência ao existente, na relação entre o ente e o ser, com a
necessidade de uma superação da absolutização, violência e fracasso a que a
ontologia ocidental estava fadada. Neste sentido a segunda pontuação apresenta
o novo percurso filosófico empreendido por Lévinas. Ele parte da forma de
existência do ser, o “há” (Il y a):
um ser impessoal e sempre existente,
inclusive quando tudo poderia estar reduzido ao nada. Porém, tal ontologia
fadada à solidão, fora do mundo e da relação com a alteridade, precisa sair de
tal fim solitário e impessoal para um além ético, um “ser-para-o-outro” que
transcende o estado de prisão que se situou a humanidade. Isso se faz pela
ética. O terceiro ponto mostra que é nessa dinâmica de saída, que se realiza a
ética levinasiana: uma ética da alteridade, uma ética da responsabilidade, que
efetiva o “diversamente ser” e a “transcendência” numa responsabilidade e
espaço de atuação para o outro. É a dinâmica para o Infinito, em que a Ética
assume o estatuto de filosofia primeira.
No
quarto ponto expomos que a partir da ética levinasiana é possível considerar
cinco orientações que iluminam a conjuntura social e política no Brasil:
trata-se de observar a ética na política, a relação entre o Eu político e o
Outro, a responsabilidade para com a alteridade, a busca pela justiça e a
equidade econômica. Essas são as luzes para percebermos a relevância do
pensamento levinasiano na contemporânea sociedade.
A crítica levinasiana à ontologia da tradição ocidental
O
século XX é marcado por grandes transformações e experiências existenciais que
promoveram uma mudança de paradigma, um novo olha sobre a realidade do mundo:
trata-se da primeira (1914) e segunda (1939) guerra mundial (1914 e 1939) e da
Revolução Russa (1917) que propiciou ao ser humano pensar sobre sua existencial
e o sentido fundamental da vida, poderia-se dizer, o sentido para o “ser”
humano e o valor da realidade que o configura. É sobre a força e luzes desse
contexto que o lituano – francês – judeu Emmanuel Lévinas (1906-1995)
desenvolve um pensamento filosófico original e inovador para a Modernidade até
a Contemporaneidade.
Essa
inovação filosófica levinaziana – que chamamos comumente de “ética da
alteridade” ou “ética da responsabilidade”, – se realizou, no referido contexto,
por uma percepção crítica de que a ontologia ocidental da tradição não
respondia as exigências do novo tempo, pós-guerra. Mas, pelo contrário, teria
sido o grande problema que a filosofia ocidental trouxe à Modernidade. Segundo Lévinas
afirma na obra Totalidade e Infinito:
“A filosofia ocidental foi, na maioria das vezes, uma ontologia” (LÉVINAS, 2011,
p.30). Tal ontologia seguiu uma racionalidade que amarrou o ser de sua
liberdade e de sua dinâmica essencial relacional: o Eu com o Outro. “A
ontologia tradicional reduziu o Outro ao Mesmo” (LÉVINAS, loc. cit.), e o “ser” se apresentou na guerra sobre as amarras de
uma ontologia totalizante:
A face do ser que se mostra na guerra
fixa-se no conceito de totalidade que domina a filosofia ocidental. Os
indivíduos reduzem-se aí a portadores de formas que os comandam sem eles
saberem. Os indivíduos vão buscar a essa totalidade o seu sentido objetivo
(invisível fora dela). A unicidade de cada presente sacrifica-se
incessantemente a um futuro chamado a desvendar o seu sentido objetivo. (Ibid., p. 8)
Segundo
comenta o pesquisador Sergio Reis Santos na sua monografia O rosto do outro como apelo à responsabilidade em Lévinas (2012,
p.7): “crítico da filosofia ocidental, Lévinas é contrário à ontologia que
segundo ele, conduz a totalização de tudo incluindo a pessoa humana”. Tal
crítica se reporta aos seus pressupostos fundamentais e essenciais de onde
surge a filosofia grega: a busca pelos princípios das coisas, pelo ser das
coisas que são.
A
preocupação ontológica grega teve seu grande destaque no filósofo Sócrates: a
proposta fundamental era definir as coisas na sua essencialidade. Tal busca
tinha a pretensão de apreender a totalidade da realidade. Em Parmênides a busca
do ser era feita pela libertação do mundo da opinião, mundo este em que se tentava sustentar que o ser e o
não-ser fazia parte da dinâmica da realidade. A proposta de Parmênides é que o
“ser é” e o “não-ser” não é. Isto quer dizer que só havia a predominância do
ser e não qualquer coisa que viesse a negar a sua existência.
Porém
a maior expressão dessa ontologia metafísica está na maiêutica socrática: na
busca pelo ser, da verdade, das coisas a partir do questionamento: o que é?!. A
verdade se expressa da interioridade do Eu e o Outro não tem relevância
construtiva para a compreensão do ser. Tal ser é observado como estático,
imutável, uniforme e permanente. Na busca ontologia o Eu neutraliza o Outro,
pois não há espaço para pensar o diversamente ser, enquanto alteridade. Em
Sócrates o ser é neutralizado e o Mesmo é uma constante imposta ao Outro:
O primado do Mesmo foi a lição de
Sócrates: nada receber de Outrem a não ser o que já está em mim, como se desde
toda a eternidade, eu já possuísse o que vem de fora. Nada receber ou ser
livre. A liberdade não se assemelha à caprichosa espontaneidade do
livre-arbítrio. O seu sentido último tem a ver com a permanência do Mesmo, que
é Razão. [...] A neutralização do Outro, que se torna tema ou objecto – que
aparece, isto é, se coloca na claridade – é precisamente a sua redução ao
Mesmo. (Ibid., p. 30)
Na
obra Ética e Infinito Lévinas comenta
o limite que a filosofia apresentou na ontologia totalizante. A história da
filosofia tradicional se gestou “como uma tentativa de síntese universal, uma
redução de toda a experiência, de tudo aquilo que é significativo, uma
totalização em que a consciência abrange o mundo, não deixa nada fora dela,
tornando-se assim pensamento absoluto” (LÉVINAS, 1982, p. 67). “O saber
absoluto, tal como foi procurado, prometido ou recomendado pela filosofia, é um
pensamento do Igual. [...] ela consiste em fazer que o Outro se torne o Mesmo” (LÉVINAS,
loc. cit.). A absolutização da filosofia ontológica não deixou espaço para
alteridade, implantou a consciência de si ao mesmo tempo com a consciência do
todo, onde não há distinção, diferença e nem o outrem, mas uma apropriação e
redução ao Mesmo. A totalização de todas as coisas em um único saber (LÉVINAS,
loc. cit.), onde o homem “é” para o homem.
É
nesse aspecto que a filosofia ontológica se tornou uma “filosofia do poder”,
que ao empreender a realidade, conceitua-la, em termos absolutistas e
autônomos, neutraliza o ente, o Outro. “A neutralização do Outro, que se torna
tema ou objeto – que aparece, isto é, se coloca na claridade – é precisamente a
sua redução” (LÉVINAS, loc. cit.). A
definição é uma apropriação ou supressão do Outro, porém sua apropriação também
se classifica como uma negação da sua independência. Por fim, o filósofo Benjamin
Hutchens na obra Compreender Lévinas
apresenta ideias bem esclarecedoras a cerca da crítica levinasiana à filosofia
ocidental:
O Ocidente foge dos segredos
obliterados do passado, dos eventos imprevisíveis do futuro e de qualquer coisa
que não possa ser ordenada e manipulada racionalmente. É preciso que tudo seja
conhecido, compreendido, sintetizado, analisado, utilizado; se alguma coisa não
pode ser captada pela mente racionalista, ela é considerada irrelevante ou mau
presságio. A racionalidade ocidental busca racionalizar o ser de Deus para que
esse se torne apenas um ser entre seres. Ela despe os indivíduos de todas as
facetas de suas existências que são peculiares, reduzindo a uma multidão sem
faces, que vive lado a lado anonimamente. (HUTCHENS, 2009, p.29-30)
O “há” ontológico e as limitações do ser na filosofia
levinasiana
Se
a critica levinasiana à ontologia ocidental se reporta à sua racionalidade e
apreensão totalizante que uniformiza a realidade, imprimindo o Mesmo, ora
manipulando-o, ora excluindo o Outro, tal crítica apresenta uma nova orientação
na predominância do cunho ético ao ontológico. Como ele acentua na Ética e Infinito: “é necessário
compreender que a moralidade não surge, como uma camada secundária, por cima de
uma reflexão abstracta sobre a totalidade e seus perigos; a moralidade tem um
alcance independente e preliminar. A filosofia primeira é a ética” (LÉVINAS,
1982, p. 71). Trata-se, portanto, de processualmente abandonar a ontologia
ocidental para fazer um novo percurso existencial humano em que o sujeito e o
outro possam ser livres.
Esse
percurso passa pela superação da conceituação realizada pela ontologia
ocidental. Uma primeira luz para esse novo percurso está na novidade trazida
por Heidegger, pois, segundo Lévinas “um homem que, no século XX, começa a
filosofia não pode deixar de ter atravessado a filosofia de Heidegger, mesmo
para dela sair” (Ibid., p. 34). É
esse o processo que ele vai fazer na construção de seu pensamento.
Habitualmente, fala-se da palavra ser
como se fosse um substantivo, embora seja, por excelência um verbo. Em francês,
diz-se “l’être” (o ser), ou “um être” (um ser). Com Heidegger, na palavra ser
revelou-se a sua “verbalidade”, o que nele é acontecimento, o “passar-se”do
ser. Como se as coisas e tudo o que existe se “ocupassem em estar a ser”.
“fizessem uma profissão de ser”. Foi a esta sonoridade verbal que Heidegger nos
habituou.(Ibid., p. 30)
Lévinas ficou fascinado pela obra Seit und Zeit de Heidegger. Em tal obra
ele define a filosofia como ‘ontologia fundamental’: “É precisamente a
compreensão do verbo ‘ser’. A ontologia distingue-se de todas as disciplinas
que exploram o que existe, os seres, isto é, os ‘entes’, a sua natureza, as
suas relações – esquecendo-se de que, ao falar dos entes, elas já compreenderam
o sentido da palavra ser” (LÉVINAS, loc.
cit.). A compreensão do ser, a
dinâmica da própria existência é a ontologia. Tal ser é definido por Heidegger
como ‘es gibt’ que denota abundância e generosidade. É uma ontologia que trata
do nada. Apesar de Heidegger tentar salva a filosofia ontológica ocidental sob
novas interpretações e conceituações, Lévinas difere do seu pensamento. Aqui
está o aspecto de sua “saída”, da tradição, isto é, o seu passar por Heidegger
para sair dele. Porque a ontologia deste que tenta salvar o ser com uma nova
formulação é limitada.
Na
compreensão profunda deste estado em que se encontra o ser, Lévinas utiliza uma
expressão distinta. O termo que Lévinas utiliza para falar da forma de
existência do ser é o “há”, ou “il y
a”. Para uma melhor definição Lévinas acentua:
[..] “há”, para mim, é o fenômeno do ser
impessoal: “il” (il y a). A minha reflexão este tema parte da lembrança da
infância. Dorme-se sozinho, as pessoas adultas continuam a vida; a criança
sente o silêncio do seu quarto de dormir como “sussurrante”. [...] Algo que se
aparece com aquilo que se ouve ao aproximarmos do ouvido uma concha vazia, como
se o vazio estivesse cheio, como se o silêncio fosse um barulho. Algo que se
pode experimentar também quando se pensa que, ainda se nada existisse, o facto
de que “há” não se poderia negar. Não que haja isto ou aquilo; mas a própria
cena do ser estava aberta: há. (Ibid., p. 39-40)
É
um ser anônimo, impessoal. É o estado mais complexo e problemático do que
aquele apresentado por Heidegger. É além do ser e o nada de Heidegger. Trata-se
de um estado que se recusa a toda especificação pretendida pela tradição
filosófica ocidental. É um ser que se separa da estabilidade e fixação de ontológica,
de sua referencia ou existência cosmológica. “Para Lévinas, ao contrário, o há
(il y a) não possui ‘generosidade alguma’. É o silêncio durante a noite, um
silencio murmurante, que se escuta como presença surda e invisível de um ser
indefinido, de um ser que exclui a humanidade, que desafia a existência”
(POIRIÉ, 2007, p. 17):
De fato, insisto na impessoalidade do
“há”; “há”, como “chove” ou “é de noite”. E não há nem alegria nem abundância:
é um ruído que volta depois de toda negação de ruído. Nem nada, nem ser.
Emprego, por vezes, a expressão: o terceiro excluído. Não pode dizer-se deste
“há” que persiste, que é um acontecimento do ser. Não se pode também dizer que
é o nada, ainda que não exista nada. (LÉVINAS, 1982, p. 39)
Porém, neste estado existencial,
impessoal, anônimo, de caos e abismo, é preciso se libertar do ser, da
ontologia. Porque o estado do “há” indica uma necessidade de saída do ser que
chegou ao seu fracasso, a sua extrema angustia interior. A “saída do ser indica,
ao mesmo tempo, uma subjetividade com recusa, como esforço para deixar uma
situação que se tornou insuportável” (FABRI, 1997, p.33). A falta de relação
com a alteridade, o Rosto do Outro, gera um ser solitário, limitado a si,
estanque no universo introspectivo, na nudez de si mesmo, uma situação-limite.
Tais situações impõe a necessidade da evasão, diante de um ser instabilizado e
sufocado, diante de um mal estar. O
tempo marca a possibilidade de interação com o Outro para libertação do Eu do
seu egoísmo. Segundo Lévinas comenta sobre sua obra O Tempo e o Outro:
A sociabilidade será uma maneira de
sair do ser, sem ser pelo conhecimento. A demonstração não é levada, neste
livro, até o fim, mas é o tempo que então me aparecia como um alargamento da
existência. O livro mostra, em primeiro lugar, na relação com o outro,
estruturas que não se reduzem à intencionalidade. Põe em dúvida a ideia
husserliana de que a intencionalidade representa a própria espiritualidade do
espírito. E o livro procura compreender o papel do tempo nesta relação: o tempo
não é uma simples experiência de duração, mas um dinamismo que nos leva para
outro lado diferente das coisas que possuímos. (LÉVINAS, 1982, p. 53)
Por fim, em relação ao aspecto
ontológico do “há”, o filósofo sustenta que “ para sair do ‘há’ não é
necessário pôr-se, mas depor-se; fazer um acto de deposição, no sentido em que
se fala de reis depostos. A deposição da soberania pelo eu é a relação social
com outrem, a relação des-inter-essada” (Ibid.,
p.43). A partir dessa dinâmica existencial do sujeito em relação com o outro é
que Lévinas faz a transição da ontologia para a ética como a filosofia
primeira.
A importância da ética da alteridade e responsabilidade
O
ponto fundamental da ética levinasiana se assenta na relação do Eu com o Outro.
Todo o esforço de Lévinas consiste em expor no discurso uma relação não
alérgica do Eu com a alteridade, descobrir nele o Desejo que possibilita, no
face a face, a consideração do Outro, uma comunidade do Eu com o Outro
(LÉVINAS, 2011, p. 34). Somente nessa relação é que o ser sai de si. Tal
relação significa o predomino do ético em detrimento do ontológico para que o
sujeito existente possa se libertar das amarras do anonimato e da
impessoalidade. E para que o Outro possa assumir o seu espaço na relação, dando
sentido ao sem sentido do Eu, e ampliar a dinâmica da realidade na sua
multiplicidade e criatividade.
Foi
na proposta do “ser – para – o – outro” que Lévinas percebeu a saída do rumor
anônimo e insignificante do ser, do desespero da solidão, ou isolamento do
existir, para a liberdade. Esse caminho se realiza primeiramente por duas
etapas:
Examino, em primeiro lugar, uma
“saída” para o mundo, no conhecimento. O meu esforço consiste em demonstrar que
o saber é, na realidade, uma imanência, e que não há ruptura do isolamento do
ser no saber; que, por outro lado, na comunicação do saber nos encontramos ao
lado de outrem, e não confrontados com ele, não na verticalidade do frente a
frente. (Ibid., p.49)
Além
desses dois elementos, a transcedentalidade do sujeito se faz pela disposição
do Eu em acolher o Outro sem tentar tomá-lo, apreendê-lo na sua conceituação ou
objetividade. Assim, quanto mais o Eu se deixa tocar e afetar pelo Outro, mais
ainda ele chagará a sua autenticidade assim como alcançará real liberdade. Segundo
Hutches, o Outro transcende a racionalidade ontológica:
[...] embora Lévinas “refira-se ao
Outro como totalmente e infinitamente outro”, ele “não nega que o Outro é
compreendido em termos de ser”. A outra pessoa, então, é um alter ego (como
Lévinas às vezes escreve) mas é “sempre mais do que isso”. Até certo ponto, o
“Outro” é como uma pessoa, mas essa semelhança não ultrapassa esse ponto de
forma alguma; ele é mais que meramente uma pessoa [...]. (HUTCHENS, 2009, p.
38)
O
outro em Lévinas não é um objeto formal, não é o inverso da identidade, nem o
produto de uma resistência ao Mesmo, mas uma alteridade anterior a toda
iniciativa. Não limita o Mesmo e nem aniquila o Eu, mas promove a liberdade do
sujeito. Nesses aspectos é que se constitui a ética da alteridade.
Todavia,
outra característica constitui essencialmente a ética levinasiana: a
responsabilidade pelo outro. É “responsabilidade por aquilo que não fui eu que
fiz, ou não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito [...], diremos
que, desde que o outro me olha, sou por ele responsável, sem mesmo ter que
assumir responsabilidade a seu respeito”
(LÉVINAS, 1982, p. 87-88). Ora, a
responsabilidade só se realiza mediante a relação:
O laço com outrem só se apresenta como
responsabilidade, quer esta seja, aliás, aceite ou rejeitada, se saiba ou não
como assumi-la, possamos ou não fazer qualquer coisa de concreto por outrem.
Dizer: eis-me aqui. Fazer alguma coisa por outrem. Dar. Ser espírito humano é
isso. A encarnação da subjetividade humana garante a sua espiritualidade [...].
Dia-conia antes de todo o diálogo: analiso a relação inter-humana como se, na
proximidade com outrem – para além da imagem que faço de outro homem –, o seu
rosto, o expressivo no outro (e todo o corpo humano é, neste sentido mais ou
menos, rosto), fosse aquilo que me manda servi-lo. (Ibid., p. 89)
Por fim, a proposta ética da
responsabilidade implica a vida existencial do ser em relação com a Infinitude.
Pois tal horizonte ético encontra sua forma perfeita de atuação e atualização
no eterno “desdizer o ser”, ou “ser diversamente”, “o outro modo que ser” na
transcedentalidade. A ideia de Infinito tem influência a de Descarte e Husserl.
Tal ideia não pode ser apreendida, tematizada ou conceituada, pois transcende
qualquer tentativa de determinação e objetivação. Essa relação é uma alteridade
total.
Na
obra Ética e Infinito Lévinas apresenta
o Infinito como sendo o Rosto do Outro. Na relação com a mística judaica ele
discorre:
O rosto significa o Infinito. Este
nunca aparece como tema, mas na própria significação ética: isto é, no fato de
que quanto mais justo eu for mais responsável sou; nunca nos livramos de
outrem. [...] é exigência de santidade. Ninguém pode dizer em momento algum:
cumpri todo o meu dever. Excepto o hipócrita... É neste sentido que há uma
abertura para além do que se delimita: tal é a manifestação do Infinito. Não é
uma “manifestação” no sentido de “desvelamento”, que seria adequação a um dado.
[...] Quando, na presença de outrem, digo “Eis-me aqui!” é o espaço por onde o
Infinito entra na linguagem, mas sem se deixar ver. Por não ser tematizado, não
aparece, em todo caso, originalmente. (Ibid.,
p.97-98)
Algumas luzes da ética de Emmanuel Lévinas para
conjuntura social e política no Brasil
Depois de fazermos um trajeto da
crítica levinasiana à ontologia ocidental até a sua proposta ética da
responsabilidade, podemos formular alguns caminhos iluminadores para a conjuntura
social e política no Brasil. A primeira orientação diz respeito em considera o
estatuto de uma ética da responsabilidade na política brasileira. É sabido que
a história do Brasil é marcada por um descompasso entre medidas políticas e o
bem comum. A década de 60 foi a marca forte da ditadura militar em que as
imposições governamentais e o poder armado foi totalmente contra o bem comum,
portanto, antiético. Na contemporaneidade vemos cada vez presente a carência da
ética na nossa conjuntura social e política. Neste sentido o destaque levinasiano da ética sobre a ontologia serve como sinal para a necessidade da
relevância da ética na política.
A
segunda orientação se reporta ao aspecto relacional da ética. Trata-se da
dinâmica do Eu com o Outro. É um perceber-se e identificar-se enquanto sujeito
e razão existencial e funcional a partir do Outro. Na atual conjuntura
brasileira o Outro é percebido, porém é visto como o Mesmo. Isto é, ele é
objetivado a partir da dinâmica do Eu. Se predominantemente a mentalidade e o
sistema econômico é capitalista, as relações sociais são delineadas e definidas
pela objetivação do Outro, isto é, como máquina da produção, ou numa
interpretação marxista, como uma força de trabalho que se tornou mercadoria,
portanto, perdeu a sua identidade pessoal e particular: de outro que ser. Daí o caminho de
luz é uma relação autentica em que o Outro seja
acolhido e se torne o espaço de partida das medidas e ações políticas e
econômicas. Isso quer dizer que o Eu político teria que assentar sua razão de
ser e seu modo de atuar a partir do espaço da situação e perspectiva do Outro.
Um exemplo prático dessa dinâmica do Eu para o Outro seria a necessidade das lideranças políticas de pensar e atuar a partir
daqueles que são os excluídos da sociedade: os pobres. Estes podem ser compreendidos como sendo o rosto do Outro que ora é esquecido, ora é definido e tratado discriminadamente.
A
terceira orientação é a necessidade de uma práxis política em que o Eu é
responsável pelo Outro. Isso implica reconhecer na alteridade a sua
responsabilidade a mais. Perceber que a fraqueza, decadência e fragilidades do
Outro se dá porque o Eu político age egoisticamente. Seria a consideração e
constatação de que a estrutura política, econômica e social brasileira é
desigual e injusta por conta da insensibilidade, fechamento e
irresponsabilidade do Eu político, e da falta de eticidade na política. Um
exemplo dessa irresponsabilidade é a escandalosa carência de bens fundamentais
que passam a maioria do povo brasileiro em contraste com a corrupção política
que temos visto nos últimos anos.
Mais
duas orientações inter-relacionais podemos tirar da ética levinasiana: a busca
por justiça e equidade econômica. Segundo Hutchens comenta sobre a ética da
responsabilidade de Lévinas: “a igualdade econômica também é uma meta ideal que
aqueles comprometidos com a justiça devem lutar para levar a cabo” (2009,
p.139). Quando se realiza uma relação
face a face do Eu com o Outro a responsabilidade se torna o princípio
fundamental ético. O compromisso orientador da responsabilidade é a justiça e esta
se torna o elemento anterior e posterior da responsabilidade. Porém não de pode
falar de justiça, de direito sem uma aproximação de igualdade econômica. Essas
duas orientações - justiça e igualdade econômica - precisam cada vez mais fazer parte da eticidade política
contemporânea. Como estamos em um sistema
político-democrático-presidencial-representativo a sociedade civil precisamos cada
vez mais lutar por justiça comum e por uma economia em que todos usufruam dos
seus bens de direito.
Conclusão
A presente pesquisa apresentou em linhas gerais a ética
da responsabilidade de Emmanuel Lévinas. Em tal proposta a crítica à ontologia
racional ocidental foi demostrada como problemática para a relação do Eu com o
Outro, pois em tal ontologia o Eu convertia o Outro ao Mesmo, objetivando-o.
Devido
a insuficiência de tal ontologia Lévinas apresenta um novo caminho que supera
as limitações ontologia tradicional. Trata-se de partir do aspecto do “há” (il
y a) como novo espaço angustiante e aterrador, como o silencia da noite, em que
o sujeito precisa transcender para sair do ser solitário e egocêntrico.
A
libertação de tal estado se dá pela ética da alteridade: o caminho de abertura
e relação do Eu para com o Outro. Essa dinâmica tanto dignifica e autentifica o
Eu como confirma e acolhe a presença e importância do Outro. É nessa dinâmica
que acontece a criatividade e pluralidade do sujeito e da subjetividade. Em
poucas palavras: é a passagem da ontologia para ética da alteridade.
Na
luz de tal ética podemos deslumbrar caminhos novos para conjuntura política no
Brasil. Quatro palavras delineariam a necessidade e predomínio da ética na política do Brasil: a abertura ao Outro, a
responsabilidade, a justiça, e a equidade econômica. A abertura para o Outro dá espaço em que os excluídos tenham voz e vez, a responsabilidade compromete
a práxis humana em vista dedicação ao Outro, a justiça viabilidade a consciência
ética e a equidade econômica potencializa o bem comum.
Referências bibliográficas
FABRI, Marcelo. Desencantando a ontologia: subjetividade
e sentido ético em Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.
HUTCHENS, B. Compreender Lévinas. Petrópolis: Vozes,
2009.
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito: ensaio sobre a
exterioridade. Lisboa: Edições 70, 2011.
______.Ética e infinito. Lisboa: Edições 70,
1988.
POIRIÉ, François. Emmanuel Lévinas: ensaios e entrevistas.
São Paulo: Perspectiva, 2007.
SANTOS, Sergio Reis. O rosto do outro como apelo à
responsabilidade em Lévinas. 2012. 51 p. (Monografia em Filosofia) – Faculdade
São Bento, Salvador, 2012.
domingo, 29 de outubro de 2017
A ÉTICA NA ECONOMIA E POLÍTICA EM MARCIANO VIDAL: DOS EVANGELHOS A PROPOSTA ÉTICA CRISTÃ NO SÉCULO XX
Comunicação apresentada no dia 06 do 10 de 2017, no XIII Simpósio Internacional Filosófico-Teológico “Em Busca do Bem Comum: Política e Economia nas Sociedades Contemporâneas” (Em processo de publicação)
Isaias Mendes Barbosa[1]
De
modo prático o termo “Ética” nunca esteve dissociado dos termos “Economia” e “Política”,
na origem e itinerário da vida cristã, assim como na sua relação com a
sociedade em seus diversos períodos históricos. É por essa relação prática que
a presente comunicação trata da Ética cristã no seu aspecto econômico e
político a partir da perspectiva do teólogo moralista Marciano Vidal
(1937-). Se nos escritos evangélicos a Ética cristã se apresenta na perspectiva econômica e política voltada para a
predominância da vontade de Deus e da salvação humana, nos diversos períodos da
história tais perspectivas ganham sua especificidade, conforme as diversas situações
e contextos históricos: ora orientando, motivando e integrando a civilidade e
bem comum humano, ora se distanciando dos percursos históricos e até sendo
desconsiderada pela sociedade. Porém tais situações não tornam menos relevante
a contribuição que a Ética cristã, na perspectiva da economia e política, pode
conceder á sociedade contemporânea. A partir da análise e reflexão da obra Moral de Actitude-III de Marciano Vidal,
adjunto a obras e artigos complementares, presentamos aqui as seguintes
pontuações: i) A Ética na Economia e Política: pontuações evangélicas; ii) A Ética
na Economia e Política: dos primeiros cristãos ao século XX; iii) Orientações
éticas sobre a Economia e a Política na Doutrina Social da Igreja; iv) Orientações
éticas de Marciano Vidal para a Economia e Política do século XX. A
comunicação conclui que a proposta ética cristã não pode estar separada do seu
aspecto econômico e político social. No aspecto econômico a ética precisa de
atitudes utópicas esperançosas e um compromisso real, enquanto no aspecto
política tal ética precisa estar voltada para a convivência social e o bem
comum.
Palavras-chave:
Vidal; Ética; Política; Economia.
INTRODUÇÃO
A moral social cristã constitui desde sua origem um
vínculo temático com as questões que perpassam a vida, a história, a cultura e
as relações humanas. Nesse universo existencial e civilizatório a Ética aos
poucos se viu desafiada a responder, processualmente e construtivamente, as
questões apresentadas pela sociedade nos seus diversos períodos históricos.
Assim, a Ética cristã foi se fundamentando, constituindo e amadurecendo sobre
duas dimensões fundamentais: a econômica
e a política. Todavia, no início do
cristianismo tais dimensões não eram experimentadas de modo estruturado,
teorético e sistemático como contemporaneamente vêm acontecendo. Essa falta de
sistematicidade orgânica e teorética justificam-se pela exclusiva pretensão do
cristianismo na sua fundação histórica: anunciar Jesus Nazareno, vivente entre
nós, morto e ressuscitado.
Apesar disso, observamos – na primeira pontuação –
os elementos pertencentes às duas dimensões referidas que estão presentes nos
Evangelhos sinópticos. O ponto de partida cristológico, a dinâmica bondosa da
criação, as relações humanas fraternas espirituais e o imperativo da caridade
perpassam a Ética cristã no início do cristianismo. Por conseguinte, de modo
geral – na segunda pontuação – delineamos o percurso histórico da Ética em quatros
períodos, a saber: no período greco-helenista, no patrístico, no medieval e
moderno. A Ética cristã, nas duas dimensões, apresenta uma retomada dos seus
princípios – base (como a caridade, a justiça, o bem e o bem comum) para
responder, com discernimento, a cada período histórico. É importante considerar
que cada período é caracterizado por questões gerais pelas quais a Ética se ver
desafiada a refletir, sob a luz da palavra de Deus e da tradição cristã, para
pode assumir uma postura ora sobre a dimensão econômica, ora sobre a dimensão
política.
Na terceira pontuação apresentamos as orientações
éticas da Doutrina Social da Igreja nas duas dimensões. Trata-se de orientações
apresentadas pelos papas (Leão XIII, Pio XI e Pio XII, João XXIII e João Paulo
VI) sobre as questões pertinentes às dimensões referidas. Neste sentido
questões sobre a distribuição dos bens econômicos, do direito aos bens
matérias, sobre a autoridade do Estado e a participação política cívica perpassam
tal pontuação. Por fim – na quinta pontuação – destacamos as orientações éticas
de Marciano Vidal diante da situação contextual do século XX. Trata-se de um olha crítico e maduro sobre a
necessidade do agir cristão na sociedade moderna. Em alguns pontos Vidal
diverge daquilo que é apresentado até então pela Igreja, em outros pontos ele
sintetiza aquilo que de relevante fez parte da tradição. A orientação ética
apresentada por ele contempla a proposta de atitudes utópicas esperançosas, um
compromisso real, a convivência social e o bem comum.
Tivemos como base central a obra Moral de Actitude-III, edição espanhola, de Marciano Vidal, adjunto a obras e
artigos complementares. Por esse motivo todas as citações referentes à obra
central serão traduzidas para o português pelo autor desta comunicação. As
demais obras e artigos serão complementares para sustentar e corroborar a
presente comunicação. A Ética na Economia e Política, isto é, na dimensão
econômica e política, precisa cada vez mais de espaços de atuação e atualização
para as novas questões contemporâneas, principalmente na realidade da América
Latina.
Para facilita didaticamente as duas dimensões pelas
quais decorreremos sobre a Ética cristã, dividimos as pontuações refletidas em
duas subdivisões, dando primeiro destaque a dimensão econômica e seguindo a
reflexão na dimensão política.
1.
A ÉTICA NA ECONOMIA E POLÍTICA: PONTUAÇÕES
EVANGÉLICAS
1.1
A Ética na Economia: nos Evangelhos
A Ética cristã tem como um dos seus fundamentos teológicos
os Evangelhos (VIDAL, 2003, p.279). Neles podemos encontrar uma Ética que
atribui um significado teológico e transcendental aos bens temporais dentro do
conjunto dos valores humanos. Assim, na perspectiva de Vidal, podemos trata da
postura ética cristã sobre a economia, ou originalmente dizendo, sobre os bens
temporais, em três aspectos: dentro do plano da salvação, na união entre os
homens e no perigo das riquezas.
O sentido evangélico situa os bens temporais no
plano da salvação, pois esta foi a dinâmica ética fundamental que moveu o
cristianismo (Ibid., p.297). Neste
sentido há uma continuidade da dinâmica apresentada no Antigo Testamento com o
Novo. O caráter transcendental do amor de Deus se relaciona com os bens
temporais como uma ação complementar da salvação:
Os bens
criados têm de ser considerados como dons do amor de Deus. São ‘sinais’ da
liberdade de Deus. Enquanto tais sinais: 1) manifesta a amorosa solicitude
paterna de Deus para com os homens (cfr. Mt 5,45; 6,25-33; Lc 12,22-31; At
14,17; 2 Cor 9,8-11; 1 Tm 6,17); 2) manifesta outra doação superior de Deus;
são sinais dos dons todavia maiores com que Deus abastece as necessidades da
sua alma, [...]. Os bens materiais são preciosa complementariedade que Deus faz
ao dom infinitamente do seu reino. (VIDAL, 1979, p.198)
No segundo aspecto encontramos os
bens temporais como meios para integrar, unir, criar e aprofundar a comum união
entre os cristãos, uma comunhão espiritual que uni a todos os homens e
mulheres. Há um valor específico aos bens temporais ou materiais que os
evangelhos descrevem (HIGUERA,
1988, p.40). Tal valor, embora de modo não tanto explícito, se define como a
caridade, expressa em João. A esmola, assim, se torna um dos meios pelos quais
a caridade se manifesta:
Os três
evangelhos, e de um modo particular Lucas, dão especial importância a esmola e
as obras de misericórdia corporal como um elemento importante no seguimento de
Cristo e para tomar parte no Reino de Deus: Mc 10,22; Mt 6,2-4; 21; 25,31-46;
Lc 3,11; [...]. No que se pode precisar o alcance da esmola segundo a doutrina
dos sinóticos: alguns textos falam simplesmente dessa obrigação; outros de uma
doação da metade dos bens (Lc 3,11; 19,8) [...] Em geral se deve afirmar que “sendo
a esmola uma forma de caridade, não tem mais medida, nem mais limite que a
mesma caridade”. (VIDAL, 1979, p. 200)
No
último aspecto Vidal sustenta que a Ética cristã apresenta uma atenção especial
para o perigo da riqueza. O Novo Testamento supõe que podem existir os ricos
bons, porém é preciso uma orientação do modo como eles devem se comportar para
agradar a Deus. Os três evangelhos sinóticos, e mais ainda Lucas, apresentam sobre
os perigos da riqueza: da cobiça ou avareza (Lc 12,13-21). Lucas condena a
avareza por se tratar de uma loucura, um ato inútil, já que não são os bens que
asseguram a vida, mas Deus que a pode pedir a qualquer momento. Marcos enumera
a cobiça entre os vícios (Mc 7,21-22). Em Lucas há uma recriminação para com os
ricos (Lc 16, 1-13).
1.2
A Ética na Política: nos Evangelhos.
A Ética cristã no âmbito político está presente, de
modo não tanto explícito, no Novo Testamento. Ela nasce do caráter prático
presente nos Evangelhos: “nasce do contraste da vida e se orienta imediatamente
a configuração do comportamento” (VIDAL, 1979, p. 469). Todavia, só podemos
delinear a Ética cristã, nas relações sociais – políticas inscritas nos
Evangelhos, a partir de Jesus de Nazaré, pois é nessa dinâmica evangélica cristológica
que se sustenta a ética cristã (VIDAL, 2003, p.109).
A postura política de Jesus se encontra diante da
situação do “judaísmo da época. A nação judia havia perdido sua independência;
possuía, entretanto, uma certa autonomia dentro do Estado romano. Persistia o
ideal teocrático, segundo o qual a comunidade religiosa era coincidente com a
comunidade política”(VIDAL, 1979, p.470).
Por outro lado tinha o movimento dos Zelotes, que
era subversivo ao Estado. Frente aos ocupantes romanos todo judeu teria que
tomar uma decisão a favor ou contrária ao Status
quo. Jesus se situa nesse contexto, porém há uma corrente que tenta
identifica-lo como Zelote. Sobre isso, Vidal acentua que se “tem dado razão
para a resposta positiva; a) a condenação de Jesus como zelote; b) a pregação:
‘O Reino de Deus está próximo’; c) sua postura crítica ante Herodes, a quem
chama ‘raposa’ (Lc 13,32)” (Ibid., p.470).
Porém, também há nas atitudes de Jesus uma postura contrária aos Zelotes: “a)
as palavras contra a violência (Mt 5,39ss); b) entre os Doze está um publicano
(Mc 2,15; Mt 9,10); c) a atitude ante o capitão de Cafarnaum” (Ibid., p.471).
De modo mais coerente com aquilo que nos apresenta
os Evangelhos, a atitude de Jesus se apresenta fora de uma revolução subversiva
e fora um apoio ao império romano. Sua atitude se demonstra complexa por ela
estar fundamentada em uma realidade superior da situação da época, a realidade
do Reino (SCHILLEBEECKX, 2008, p. 154). Segundo Vidal:
Jesus
tem uma atitude realista em seu ensinamento. Não é um exaltado desprovido de
sentido da realidade. Ver-se, em primeiro lugar, nas comparações tomadas da
vida real: da guerra (Lc 14,31ss); da administração (Lc 16,1-7); da justiça (Lc
18,1-5). Estas comparações [...] nos põe de manifesto seu sentido realista. (VIDAL,
1979, p.471-472)
As atitudes de Jesus não são de
caráter político, apesar de ter repercussão política; Jesus não é revolucionário,
apesar de suas críticas aos ricos; não é voltado ao comunismo, apesar de
apresentar o imperativo do amor como universal e comum; não é um pacifista,
apesar de ser contrário à violência; não é um inimigo da cultura e da ciência,
apesar de atacar os doutores legalistas judaicos. As referências de Jesus que
são tomadas nos Evangelhos em relação à vida política são sintetizadas em
quatro questões: a) as visões realistas que Jesus tinha da realidade: “‘sabeis
que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as
tiranizam” (Mc 10,42), b) a decisão política de Jesus a respeito do tributo a
César: Jesus não confere a César a auréola de uma autoridade pela graça de Deus,
c) a autonomia de Jesus diante de Pilatos, por reconhecer nele a vontade de
Deus: “‘Não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dado do alto” (Jo
19,11); d) a liberdade de Jesus diante de qualquer realidade política. A partir
dessas questões é possível observar a postura ética cristã básica e propedêutica
diante da política:
1.O
Estado é uma realidade dentro da existência atual. Mas não pode se absolutizar
(ou se totalizar). O discípulo de Cristo deve: dar ao Estado o que necessita
para sua realização como elemento da condição presente, mas deve se opor a ele
quando exigir o que é só de Deus. 2. Jesus está de acordo com os zelotes em
reconhecer que o principal é o Reino de Deus; mas está em desacordo com eles
quando afastam a existência do Estado como instituição profana [...]. 3. A
condenação de Jesus foi juridicamente pela sua presumida condição de zelote. Os
mártires cristãos serão condenados pela oposição a uma ideia totalitária do
Estado. (VIDAL, 1979, p.474-475)
2.
A ÉTICA NA ECONOMIA E POLÍTICA: DOS PRIMEIROS
CRISTÃOS AO SÉCULO XX
2.1. A Ética na Economia: dos primeiros
Cristãos ao Século XX.
Nos escritos do Novo Testamento a Ética crista, sob
o âmbito da economia, apresenta quatro princípios prévios que orientaram os
primeiros cristãos no período greco – helênico: 1) o princípio de ‘aceitação’ da
ordem econômica como bem e valor dentro de uma visão integral do homem; 2) o
princípio de ‘humanização’ dos bens econômicos para edificar a justa
convivência; 3) o princípio de ‘crítica’ ante toda situação de injustiça; e 4)
o princípio de ‘utopia escatológica’ ao proclamar o valor da pobreza voluntária
para realizar a comunhão plena. Esses princípios são uma síntese e núcleo ético
por onde parte a postura crista, desde sua origem e no decorrer da história.
No período patrístico a Ética se
orientara não com facilidade sobre o âmbito da economia. Porém, por “razões de
conteúdo a doutrina moral patrística acerca dos bens temporais pode ser
unificada em torno de um núcleo temático: o reto uso dos bens econômicos”
(VIDAL, 1979, p. 209). O apelo à distribuição dos bens como prática da
caridade, a crítica à avareza, à luxuria, à usura e ao mau uso, ao débito, aos juros
e a egoística privatização dos bens, constituem a posição ético-econômica que
perpassou o cristianismo no período da patrística. Por conseguinte, na Idade
Média temos a moral econômica voltada para o mercantilismo nascente: o problema
da licitude de lucros ou da ganância. A Ética cristã tratará sobre o corporativismo
mercantil e o individualismo comerciante. A justiça se debruça sobre as
fraudes, a usura, o furto, a rapina, as relações de troca, de contratos e
restituição de bens; sobre o direito da propriedade privada, sobre o trabalho,
o comércio e os problemas de preço e salários (VIDAL, loc. cit.).
Na Modernidade a Ética se situa
diante do capitalismo financeiro e comercial (HIGUERA, 1988, p. 92). Neste sentido a moral se volta para
o aspecto da justiça e do direito. João de Lugo e Domingo de Soto são
personagens desse período que ajudam a compreender a Ética económica: o
primeiro trata de uma justiça distributiva e comutativa, do domínio e restituição,
o segundo aborda o tema da usura e juros, os contratos de compra e venda, de
sociedade, de seguro e cambio. Alguns temas concretos como a valorização ética
do comércio, do preço justo, dos impostos, fazem parte desse tempo. Todavia, no
fim do século XVIII a ética casuística silenciará diante do mercantilismo e das
outras questões econômicas (VIDAL, 1979, p.259). Ela se restringirá a repetir
sobre os temas já apresentados na tradição.
2.2. A Ética na Política: dos primeiros
Cristãos ao Século XX.
No âmbito político a Ética foi se construindo pelos
primeiros discípulos, apóstolos e seguidores de Jesus. Os textos do Novo
Testamento marcam algumas posturas éticas frente a situação política social e a
importância do Estado na mesma. Segundo Vidal, há um dualismo dialético cristão
propedêutico que orienta a ética no universo político em relação com o Estado:
1.
Deve dar lealmente ao Estado tudo o que seja necessário para sua existência.
Deve combater o anarquismo e todo zelotismo dentro de suas filas. 2. Deve
cumpri ante o Estado a função vigilante. Isto é: permanecer, por princípio,
crítica ante todo Estado e preveni-lo das transgressões de seus limites. 3.
Deve negar ao Estado que ultrapassa seu limite o que este pede dela no terreno
da transgressão religioso-ideológica, e deve qualificar essa transgressão,
valorosamente, como contrária a Divindade. (Ibid.,
p. 478)
No período greco – helénico a Ética
cristã está se integrando com a filosofia grega e o direito romano. O idealismo
platônico assume uma função ética política pelo qual o Estado deve ser
construído e se reger pela exigência do Bem Ideal, que forme o homem para a
virtude, o conhecimento e a busca do Bem verdadeiro. Com o aristotelismo a ética
política se embasa na realidade. Na sua ética o Estado-cidade é a comunidade
que deve possibilidade o desenvolvimento dos cidadãos para o Bem Comum.
Na época patrística Santo Agostinho sustenta
um Estado que só tem razão de agir pela justiça que confessa o verdadeiro Deus.
A “preocupação de Agostinho é definir o Estado por sua finalidade religiosa:
promover oculto a Deus e cuidar dos bons costumes de modo que não ofenda a Deus
verdadeiro” (Ibid., p.501). Na idade
Média a Ética se destaca na figura de Santo Tomás de Aquino com a proposta de
uma comunidade política que se baseia na realização do bem comum. Este é
politicamente norma tanto para o estado como para o indivíduo. Há uma ligação com
a ética cristã e a ação humana no Estado. “O homem encontra as regras do seu
agir moral como indivíduos, como membros de uma família e como cidadão de um
Estado (enquanto ser social) na sua natureza racional” (VEREECKE, 1997, p.571).
Na Modernidade a Ética cristã se
divide em dois horizontes: o protestante e o católico. Neste horizonte o
Filósofo Cristão Suárez situa o Estado dentro de seus limites temporais: “O
Estado é, pois, por razão de sua origem e de seu fim, uma realidade natural e
temporal” (VIDAL, 1979, p.508). O “direito das gentes” demarca a motivação da
eticidade política. No protestantismo a Ética política está voltada para o
poder civil e a liberdade cristã.
Calvino é seu referencial (VIDAL, 2003, p.391) que relaciona a ética com
diversos problemas da dimensão política como o sentido da autoridade, o modo de
exercer a autoridade com justiça e as formas de governos (VIDAL, 1979, p.513).
Da Modernidade em diante temos um certo distanciamento da Ética cristã com o
mundo político que, com a ilustração se tornou aos poucos secular.
3.
ORIENTAÇÕES ÉTICAS SOBRE A ECONOMIA E A POLÍTICA NA
DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
3.1. Orientações éticas sobre a
Economia na Doutrina Social da Igreja.
Além de todo o aparato teológico-filosófico e
histórico sobre a Ética no âmbito econômico, com atenção especial, destacamos
as orientações éticas na Doutrina Social da Igreja. Nesta a Ética apresenta um
esboço eclesiológico sobre os problemas do mundo econômico social entre o
século XIX e XX. O que se destaca na
moral econômica das encíclicas sociais é a preocupação dos Papas pela “situação
sócio – econômica criada pelo capitalismo na qual as distâncias entre ‘ricos’ e
‘pobres’ se tornam mais profundas; nasce o ‘proletariado’ como classe cada vez
maior e menos favorecida; as condições de trabalho se desumanizam” (Ibid., p.269).
Segundo a Encíclica Marter et Magistra (1961) apresenta sobre a situação dos trabalhadores:
Assim,
enquanto uns poucos acumulavam imensas riquezas, grandes multidões de
trabalhadores padeciam, dia a dia, maiores privações. Os salários eram,
efetivamente, insuficientes para cobrir as necessidades vitais, e, por vezes,
não bastavam nem para matar a fome. As péssimas condições de trabalho punham em
perigo a saúde, a moral e a fé religiosa dos trabalhadores; sobretudo as
crianças e as mulheres eram submetidas a desumanas condições de trabalho;
sempre ameaçador o espectro do desemprego; a família, sujeita a contínuo
processo de desintegração. (MM, n.13)
Pio XI na Quadragesimo
Anno (1931) e João XXIII na Mater et
Magistra (1961) retomarão a Rerum
Novarum tanto para descrever a situação econômica marcada pelo capitalismo
como para apontar princípios de solução. Segundo Vidal, Pio XI acentua que o valor
do trabalho deveria estar em função da dignidade humana, segundo a equidade e
justiça; o Estado deveria intervir em função do bem comum e melhoria das
condições de vida do operário; na relação entre proletariado e capitalistas: o
princípio da solidariedade e fraternidade é o fio condutor para resolução. Já Paulo VI, na Populorum Progressio (1967), orienta a questão econômica para um
desenvolvimento integral do ser humano e a todo ser humano (n.14).
Por fim o Concílio Vaticano II apresenta na Gaudium et Spes (1965) sobre as
exigências de um desenvolvimento econômico integral humanitário (n.63), para
diminuição da desigualdade social. Isso impõe mudanças em todos os âmbitos da
vida humana. O documento insiste numa maior liberdade e democratização
econômica, sob o princípio da justiça e equidade.
3.2. Orientações éticas sobre a
Política na Doutrina Social da Igreja.
Do mesmo modo, na Doutrina Social da Igreja a Ética
política concede suas orientações, tendo como referênciais os Papas Leão XIII,
Pio XII e João XXIII. Este último, na Pacem in Terris (1963) apresenta a
exigência das autoridades políticas estarem submissa à moral (n.47), ao bem
comum, com responsabilidade; e à livre escolha democrática dos cidadãos para
escolher seus governantes, a forma de governo, os procedimentos e limites da
atuação da autoridade (n.52). Com Pio XII o tema da democracia é desenvolvido
amplamente. Na Octogesima Adveniens
(1971) Paulo VI afirma que a participação dos cidadãos na vida política está
embasada na aspiração da igualdade e participação (n.24). A temática da
democracia com o bem comum também se encontra na Gaudium et Spes (n.74) do Concílio Vaticano II.
Ainda na Gaudium
et Spes a ética política apresenta a necessidade do pluralismo político –
com a criação de partidos em função do bem comum – contra a injustiça, a
opressão, o absolutismo e a intolerância (n.75). Entre os números 57 e 77 da Gaudium et Spes há a justificação de uma
comunidade política como necessária para a comunidade civil. Todavia quando a
comunidade política abusa do poder que foi-lhe concedida, a população tem o
direito e dever de resistência (n.79). O Estado é assumido com uma forma
histórica temporária. A postura cristã se demonstra contrária ao Estado
totalitário. Este deve agir para o bem comum, a subsidiariedade humana.
4.
ORIENTAÇÕES ÉTICAS DE MARCIANO VIDAL PARA A ECONOMIA
E POLÍTICA DO SÉCULO XX.
4.1 Orientações éticas para a
Economia no século XX
Segundo Vidal acentua, a Ética no âmbito econômico
pode oferecer algumas orientações gerais do ethos
cristão na Economia. Porém as exigências iniciais não estão fundamentadas no
interesse contemplativo, mas na urgência de ação que transforme a realidade. Neste
norte dois espaços interconectados e de transição são expostos: o da utopia e o
do realismo. Por eles deve passa a Ética-econômica para a humanização social.
No primeiro espaço Vidal apresenta cinco postulados que devem seguir a Ética
cristã:
A força
ética dos cristãos, a nível de reflexão e a nível de vida testemunhal, deve
exercer sua influência dentro da linha
alternativa à sociedade capitalista e à sociedade coletivista, [...] – Pelo
que respeita as relações com o
capitalismo, os cristãos – enquanto grupo humano e religioso – têm de
romper até a aparência de conivência e justificação em respeito a um sistema
econômico que, em expressão várias vezes citada por Paulo VI, “não traz a paz,
não traz a justiça” e “continua dividindo os homens em classes irredutivelmente
inimigas”. [...] Nós cristãos temos que repudiar o capitalismo como sistema
válido para o futuro. [...] – Concretizando um pouco mais a orientação, temos
que pedir ao ethos cristão que rechace a propriedade privada capitalista,
colocando-se deste modo no programa de luta proclamado por Paulo VI contra a “unilateralidade
da posse dos meios de produção”. [...] – Uma economia humana tem que ser, na atualidade,
uma economia planificada. Porém, o que os cristãos têm de pedir e realizar é
uma planificação democrática. Para
que realmente seja “democrática”, a planificação “exige a presença de todos os
grupos sociais na elaboração, exercício e controle”. [...] – Em coerência com
algo essencial de sua cosmovisão, os cristãos têm que situar-se sempre e em
toda situação do lado dos oprimidos.
Esta opção transforma os critérios, os objetivos, os meios e a estrutura da
atividade econômica. (VIDAL, 1979, p.385-387)
Tais atitudes ideais configuram a
forma não ingênua e revolucionária para teleologia ética da economia: a
humanização da atividade humana. Tais postulados concordam com uma visão global
sobre o ethos cristão. Porém para completar tais imperativos socais é
preciso algumas atitudes realistas para atender as situações existenciais,
dinâmicas a problemáticas da realidade. São quatro os aspectos que devem ser
vistos na sua praticidade:
– Testemunho de uma vida marcada pela justiça.
O cristão tem que fazer com frequência um exame de consciência e valorizar seu
comportamento no âmbito da atividade econômica. [...] Tudo isso é importante,
mas há um perigo em que podemos ver a justiça essencialmente como algo para que
pratiquem outros e não nós. [...] Porém, a justiça começa comigo e nas minhas
relações com o outros. Justiça tem haver com meu trabalho, meu negócio, minhas
relações comerciais, minha profissão, meu tipo de vida. [...] – Revisão continua do estatuto jurídico da
propriedade, do benefício, da imposição fiscal e demais instituições econômicas.
O cristão tem que pedir para si e para os demais uma permanente revisão dos
ordenamentos jurídicos em relação com a realidade econômica. [...] – A igualdade e a participação, “formas
ambas da dignidade do homem e de sua liberdade” no momento atual, tem de
considerar-se como os grandes objetivos a conseguir nas realizações concretas
da economia. [...] – Ao distanciar-se do modelo capitalista e do sistema
coletivista, o ethos cristão se sente
atraído por uma economia de sinal
socialista. Esta atração tem experimentado muitos cristãos durante este
século. (Ibid., 1979, p.387-388)
Os cinco postulados e os aspectos da
praticidade englobam o vínculo estreito que se deve ter entre o norte ideal
pelo qual a Ética cristã pode se fundamentar e discernir os princípios de
praticidades. Os aspectos práticos possibilita um contato mais coerente e
realista com as realidades complexas da Modernidade, no âmbito econômico. Neste
sentido é que a orientação teológica ética de Vidal oferece passos que se
apresentam como luzes necessárias e claramente urgentes para as questões éticas
na Contemporaneidade.
4.2 Orientações éticas para a Política
no século XX
No âmbito Econômico a Ética apontada por Vidal
apresenta alguns percursos de atuação. De antemão podemos dizer que os quatros
aspectos práticos da ética-econômica são úteis para o âmbito da Política.
Porém, além destes é preciso, de modo prévio, explanar quatros pontuações que
deve orientar a política na sua eticidade do bem comum, na dimensão universal
da convivência sócio-política.
A primeira é as relações sociais jurídicas
internacionais que fazem parte da realidade global, porque os problemas humanos
estão em última instância em escala internacional e não somente setorial. Essa
pontuação tira o risco do reducionismo da práxis ético – política. Para tal
efetivação na dinâmica político – social, o caráter universal e imperativo do
amor cristão passa a ter relevância decisiva nas relações humanas.
Nessa dinâmica imperativa se acentua a segunda
pontuação: a afirmação de uma consciência universal da humanidade pela qual
apoia a esperança da mensagem cristã. Não se trata de uma imposição dos
aspectos éticos da mensagem cristã para os diversos perfis e modos de vida
humanos, mas da prévia, porém confiante, convicção de que a consciência humana
pode chegar a um nível comum de verdade e caminho ético. Isso é possível tanto
pela racionalidade humana que tende para a verdade, como pela própria luz
divina que ilumina a consciência humana para o mesmo caminho do bem comum.
O terceiro ponto está no âmbito valioso das relações
políticas e sociais de caráter ético: a convivência universal. Tal posição faz
parte da necessidade e identidade do próprio ser humano, o relacionar-se e
conviver. A Ética cristã, assim, possui um norte pelo qual os seres humanos
utilizam a dimensão política como meio e não como fim em si memo. Nesse aspecto
o quarto ponto se reporta para a efetiva unidade gênero humano pela associação
desinteressada entre as diversas nações, isto é, uma aproximação global da
moral internacional.
Por fim, no aspecto que interage a Ética cristã, no
âmbito da Política, está à transformação social para sua humanização. Neste
percurso fica a questão se na esfera da atividade social e política, a
revolução seria o ideal para tal mudança, ou então a evolução. Na análise
teológica Vidal sintetiza:
[...] acreditamos
que o ethos social cristão está
essencialmente aberto à mudança social e o propicia como uma exigência ética
fundamental. Por outra parte, a ética cristã não “absolutiza” nenhuma forma de
mudança social; admite as mudanças evolutivas e as mudanças revolucionárias,
introduzindo nelas sua carga crítica-utópica. O crente tem que viver sua
coerência ética tanto dentro da evolução com da revolução; o apoiar uma ou
outra depende de opções que têm de ser pensadas segundo as possibilidades de
justiça que oferecem as situações histórico-concretas. Sem embargo, no momento atual, a estimativa
ética cristã tem posto de relevo o flanco revolucionário do cristianismo. (Ibid., p.641)
CONCLUSÃO
Em linhas gerais apresentamos as características e
percursos que a Ética cristã realizou ao longo da história, sob duas dimensões,
a saber: a econômica e a política. É importante explicitar que ao longo desse
processo a Ética vai se transformando e conseguindo, conforme as suas
possibilidades e princípios fundamentais, oferecer um caminho ou orientações
tanto para os cristãos como para os que são de outra opção religiosa ou nenhuma.
Essa abertura processual da Ética é observada e classificada como positiva.
Porém, podemos dizer que a pesquisa nos direciona para cinco conclusões que
podem iluminar a Contemporaneidade.
A primeira está na origem e fundamentação da Ética
cristã. O Evangelho, ou melhor dizendo, as Sagradas Escrituras continuam sendo
uma luz que inspira a Ética cristã na sua relação com as outras Éticas que se
apresentam atualmente. Não se trata de um fundamentalismo, mas de um ponto de
partida de onde emanam as decisões mais complexas e difíceis hoje. Todavia, o
diálogo com a tradição e com as questões contemporâneas são outros dois
veículos pelos quais a Ética cristã não pode ignorar na sua postura, nas duas
dimensões referidas.
Atualmente a Ética cristã não pode ignorar as
questões, no âmbito econômico e político, que atentam contra as linhas fundamentais
do cristianismo, isto é, contra o bem comum, a dignidade humana, a justiça, o
amor e a paz. Tais elementos não podem ser ignorados quando nos relacionamos,
falamos e agimos, na contemporaneidade, com os diversos setores e expressões de
poder no mundo civil.
No terceiro ponto consideramos a proposta Ética de
Vidal como inspiradora para a práxis na América Latina. A Ética precisa de
atitudes utópicas esperançosas e um compromisso real com a sociedade. Ela
também precisa estar voltada para a convivência social, uma evolução continua e
uma revolução profética que possibilite aos cristãos agir conforme o espírito
de sua fé, pois de outro modo a Ética cristã estaria fadada ao fracasso ou a
uma mera ação revolucionária social.
O quarto ponto seria a necessária abertura para o
diálogo transparente e construtivo com as outras Éticas civis, e
multifacetárias, que temos contemporaneamente. Não se trata para a Ética cristã
de uma mescla ou submissão às outras Éticas, mas de uma busca constante por
crescimento e amadurecimento que se faz pelo diálogo sensato e transparente
para o Bem Comum.
O quinto ponto é o desafio que a Ética cristã estar
passando pelas motivações e práxis profética do Papa Francisco. Se Vidal
apreende um norte ético cristão para o século XX. Tal norte está em
concordância com o que Francisco apresenta nos seus documentos. Isso significa
que as intuições de Vidal precisa ter uma força maior e maior amadurecimento
pelas renovadas linhas de ação éticas nos documentos de Francisco. Atualmente a
Ética cristã carece de um maior desenvolvimento e maturidade nas duas dimensões
tratadas. Mas tal desenvolvimento não pode estar fadado ao universo acadêmico e
muito menos aos livros e obras teológicas, mas precisa cada vez mais estar
encarnado na própria experiência cristã ética.
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comentários atualizados com a Pacem in Terris. Primeiro Volume. Rio de Janeiro:
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comentários atualizados com a Pacem in Terris. Segundo Volume. Rio de Janeiro:
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MARCIANO. Nova Moral Fundamental: o lar teológico da Ética. São Paulo:
Paulinas, 2003.
[1] Graduado em Filosofia pela
Universidade Estadual do Ceará (UECE), discente do curso de Teologia na
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Estudante da Instituição Congregação do
Santíssimo Redentor. E-mail: isaiasredentorista@hotmail.com.
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