sábado, 16 de setembro de 2017

A CONFERÊNCIA DE MEDELLÍN E PAPA FRANCISCO: SINAIS E DESENVOLVIMENTO DE UMA TEOLOGIA MORAL OU ÉTICA CRISTÃ PÓS-CONCILIAR.



Comunicação apresentada no Simpósio Internacional: "Diálogos Cruzados: Teologia e História" no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA), no dia 25 de setembro de 2017.

Simpósio Temático-06: A Conferência de Medellín (50 anos) e a Teologia da Libertação – caminhos, perspectivas e problemas.

Autor: Isaias Mendes Barbosa[1]
Co-autor: Edinardo Paz de Sousa[2]
O Concílio Ecumênico Vaticano II foi para a Igreja, assim como para a sociedade moderna, um sinal renovador tanto no âmbito da vida cristã como da sua prática de fé. A relevância de tal Concílio está na recuperação do estatuto de uma Teologia Moral ou, vale dizer, Ética teológica cristã. Daí, podemos encontrar, na perspectiva ética, os mais significativos passos pós-concílio na Conferência de Medellín, assim como em alguns documentos do Papa Francisco. Partindo de uma hermenêutica dos documentos de Medellín, do Papa Francisco e das obras complementares, a presente comunicação trata sobre a contribuição que o Concílio Vaticano II trouxe, no âmbito da ética teológica, à moderna e contemporânea América Latina, a partir dos seguintes pontos: i) a questão marcante da Teologia Moral tratada nos documentos do Concílio Vaticano II, ii) os conteúdos de caráter ético cristão nos documentos de Medellín, e iii) a continuidade e amadurecimento dos conteúdos éticos teológicos nos documentos do Papa Francisco. Se o Concílio teve uma abertura e norte para a ética teológica cristã, o mesmo motivou e viu os sinais desse desenvolvimento ético nas Conclusões de Medellín. Nela a Ética teológica, voltada para o aspecto pastoral, soube integrar seus elementos fundamentais – como as Sagradas Escrituras e as orientações da Igreja – com a experiência humana e a situação de injustiça, opressão e miséria que, ainda hoje, passam os pobres no continente latino-americano. Numa ligação com esse evento conciliar e de Medellín, o Papa Francisco apresenta uma continuidade dessa abertura e desenvolvimento ético teológico como luz e esperança para a Igreja e sociedade contemporânea.        
Palavras-chave: Concílio Vaticano II; Ética; Medellín; Papa Francisco.

Introdução

Tanto a Conferência de Medellín como os documentos apresentados pelo Papa Francisco, no seu pontificado, não podem ser compreendidos sem a luz do Concílio Vaticano II. Porém o destaque de tal influência conciliar, que a presente pesquisa expõe, está no âmbito de uma nova ética. Ética que se destaca pela ruptura de um modo tradicional, tomasiano-aristotélico-escolástico, de pensar e atuar na sociedade para um novo modo de fazê-lo.
A força iluminadora do Concílio impulsionou alguns imperativos e orientações pelos quais tal ética deveria se fundamentar e atuar num âmbito mais amplo da existência humana. É por essa dinâmica que no primeiro tópico descrevemos tais conteúdos conciliares que influenciaram e motivaram o percurso, desenvolvimento e maturidade da ética na América Latina. No segundo tópico expomos tais conteúdos éticos extraídos da Conferência de Medellín que podem ser compreendidos como uma continuação e maturidade da inspiração ética conciliar.
Para prosseguirmos no entendimento e demonstração da ética como abertura, continuidade e atualização da realidade, apresentamos, no terceiro tópico, tais elementos éticos contidos nos documentos do Papa Francisco. Na pesquisa concluímos que o caráter de abertura, desenvolvimento e continuidade da ética cristã não chegou ao seu ponto final, mas que é preciso um eterno aggiornamento em sintonia com as novas questões patentes na América Latina. 

A questão marcante da Teologia Moral tratada nos documentos do Concílio Vaticano II

Na metade do século XX o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) se constituiu como o evento histórico revolucionário e de singular importância tanto para a Igreja como para a sociedade Modernidade. Duas colocações orientadoras são fundamentais neste evento para o advento de uma nova ética teológica: 1) O Concílio motivou toda a Igreja ao aggiornamento da mensagem cristã a partir de uma profundidade e inspiração evangélica reveladora e querigmática; 2) O Concílio foi uma abertura dialogal para o mundo moderno que dava seus passos autônomos[3].
A partir desses dois movimentos decisivos, intra-eclesial e extra-eclesial, podemos expor os pontos significativos do Concílio para o estatuto de uma nova ética que foi se construindo e amadurecendo ao longo da história até a Contemporaneidade. Com o evento conciliar nos deparamos com as novas orientações, as exigências de adaptações e mudanças, referentes à normatividade (regra) e estilo de vida, dos diversos setores da Igreja. Tais imperativos norteadores gerou crise de identidade e sentido de vida para muitos cristãos, e foi o ponto inicial da ruptura: a) de uma teologia moral de caráter tomista-aristotélica-escolástica para uma nova forma de pensar ético teológico; b) do abandono de um rigorismo perfeccionista, ou moral laxista, para a abertura ao aspecto mais equitativo, probabilista e moderador da ética cristã; c) uma transição da heteronomia da consciência e práxis humana para a autonomia das mesmas; d) a troca dos silogismos dedutivos e abstratos como fundamento da teologia moral, pelos escritos bíblicos, ou especificadamente, pela Palavra revelada (Jesus Cristo) como base inspiradora para ética cristã. Nessa perspectiva de ruptura podemos falar que a ética cristã se renovou para atender evangelicamente às exigências do novo tempo e perceber os sinais de Deus na história[4].
Alguns documentos do Concílio acentuam as bases pelas quais a ética teológica deu os seus primeiros passos inovadores que tanto influenciou a caminha da Igreja no mundo todo como especificadamente na América Latina. O decreto Optatam Totius nos acentua tais primeiros passos de abertura. Ele apresenta inicialmente a necessidade de adaptação da Igreja “às circunstâncias de tempo e lugar”[5]. Sobre a Teologia Moral o documento acentua: “Merece especial atenção a Teologia Moral, cuja elaboração precisa manter maior contato com a Sagrada Escritura e ter a preocupação de manifestar melhor a grandeza da vocação cristã e a obrigação dos fiéis de se colocarem, ao amor, a serviço do mundo”. (OT, n.16, p.324 )
Três passos são explanados nessa citação. A conexão com as Sagradas Escrituras é o primeiro e fundamental passo que a ética teológica teve como contribuição de fundamentação. O segundo era manifestar o ser cristão, a vocação e identidade. O terceiro era pratico: a função da ética não era estar contra o mundo, como se apresentou antes do Concílio (anátema), mas estar a serviço do mundo.
Na Gaudium et Spes observamos sinteticamente o norte essencial de relevância para a ética teológica. Trata-se do seu proceder sob dois campos: “à luz do Evangelho e da experiência humana” (GS, n.46, p.507). É estando sob a luz de Cristo e imerso na história que a ética teológica poderia ajudar “tanto os cristãos como os não-cristãos  a encontrarem o caminho para sua solução” (GS, n.46, p.507). Negar um deles levaria a ética cristã ao fracasso.
No início da Gaudium et Spes observamos a postura da Igreja frente à sociedade num âmbito mais amplo e ecumênico. Essa postura de abertura e diálogo marca o itinerário diferenciado que a ética cristã estava começando a fazer: “o Concílio Vaticano II dirige-se à humanidade na sua totalidade, e não apenas aos filhos da Igreja e aos que invocam o nome de Cristo, desejamos dizer a todos como [a Igreja] entende sua presença e sua atividade no mundo de hoje” (GS, n.2, p.471). Percebemos aqui uma distinção de abordagem que se fez neste evento entre a moral cristã, que se reporta ao ethos normativo e cultural eclesiológico (“filhos da Igreja”), e a ética teológica cristã , aberta para o diálogo e na busca de soluções com a realidade existencial humana (“dirige-se à humanidade na sua totalidade”).  Nessa abertura é perceptível o vínculo com o segundo campo de abordagem apresentado sobre a ética: a realidade existencial humana. Porém, tal abordagem apresenta um grupo de especial atenção, a saber, os pobres: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angustias dos homens e mulheres de hoje sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angustias dos discípulos de Cristo” (GS, n.1, p.470 ).  
Na Gaudium et Spes a ética teológica ganha um novo impulso na concepção de “consciência” e “liberdade humana”. “A consciência é a intimidade secreta, o sacrário da pessoa, em que se encontra a sós com Deus e onde lhe ouve intimamente a voz. Na consciência revela-se, de modo admirável, a lei que consiste em amar a Deus e ao próximo” (GS, n.16, p.481). O termo “consciência” emerge de forma revolucionária porque supera a moral casuística tida até então, onde o cumprimento da Lei seria a realização e felicidade humana. Do mesmo modo o termo “liberdade” ganha o espaço fundamental na ética cristã. “Não é possível fazer o bem sem liberdade” (GS, n.17, p.481). A conexão entre os dois conceitos possuem uma relevância significativa: “Faz parte da dignidade da pessoa agir por opção consciente e livre, induzida e movida pessoalmente, livre de toda coação externa e de qualquer pressão interna” (GS, n.17, p.481). Na relação da consciência com a dignidade humana encontramos os elementos orientadores da ética cristã que perduram até hoje:
O ser humano tem direito a tudo de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: “alimento, roupa, moradia, liberdade na escolha do seu estado de vida e na constituição de sua família, educação, trabalho, reputação, respeito, informação objetiva, liberdade de agir segundo a norma de sua consciência reta, privacidade e gozo de uma justa liberdade, inclusive religiosa. (GS, n.26, p.489)
Mais três termos são de contributo para a ética teológica cristã: a “dignidade humana”, a “justiça social” e o “bem comum”.  Na Gaudium Spes vemos referencia á “dignidade humana” (GS, n.12, n.19, n.17). Ela está atreladas à vocação de sermos filhos de Deus, participar de sua comunhão, usufruir dos bens da terra e reder glória a Deus. Neste sentido a dignidade humana assume um valor e exigência de eticidade que está acima de qualquer coisa (objeto) e qualquer situação (opressão). No aspecto da justiça social o documento observa: o imperativo da “igualdade fundamental entre todos os humanos” (GS, n.29, p.491), contraria à “toda discriminação por causa do sexo, da raça, da cor, da condição social, da língua e da religião, que afeta os direitos fundamentais da pessoa, tanto pessoais como sociais” (GS, n.29, p.491). A justiça social também se classifica contrária à desigualdade econômica e social. No aspecto do bem comum a orientação ética se reporta à crescente interdependência entre os seres humanos, abrangendo direito e deveres de todos equitativamente.
Um termo que está estreitamente ligado ao bem comum é a “política”. O Concílio apresenta esse vínculo pelo qual se insere a preocupação da Igreja e da sociedade civil. Os dois termos são de relevância para a ética cristã: “Os membros da comunidade política são numerosos e uns diferentes dos outros, [....] mas para que a comunidade política não se desfaça, [...] é necessária uma autoridade que oriente os cidadãos para o bem comum, não de maneira despótica, mas pela força moral, [...]” (GS, n.74, p.533). Neste sentido a ética cristã tem grande relevância para o bem comum, a justiça social e a dignidade humana. Quanto à participação cidadã no universo político o Concílio sustentou: “A Igreja considera dignas de louvor e consideração as pessoas que se colocam a serviço dos outros, consagrando-se ao bem das coisas públicas e assumindo os encargos destas funções” (GS, n.74, p.533).
Todas essas orientações e termos constituem alguns conteúdos basilares pelo qual a ética teológica cristã foi se renovando. As suas fundamentações foram revistas e a proposta ética foi se abrindo para dialogar com as novas ciências que emergiam socialmente. Os elementos que caracterizaram o novo percurso e desafio da ética, assim como os termos tratados, foram de grande importância orientadora para o progresso e desenvolvimento da ética pós-conciliar. Deste modo, podemos considera que tais conteúdos também se apresentam, ora com mais força, ora com menos precisão, nos documentos da Conferência de Medellín, na realidade do continente latino-americano.  

Os conteúdos de caráter ético cristão nos documentos de Medellin

Na América Latina a segunda Conferência latino-americana celebrada em Medellín teve como objetivo eclesial compreender a missão da Igreja em um continente particular e de uma realidade específica. Apesar de que o objetivo da Conferência foi compreender e atuar evangelicamente na América Latina, é possível observar os aspectos éticos de tal Conferência que demonstram uma continuidade e realização das orientações e fundamentações éticas tratadas no Concílio Vaticano II[6].
Os termos e conteúdos éticos presentes nas Conclusões da Conferência de Medellín[7] (CCM) estão entrelaçados no documento. Isso se justifica por tratar de um documento pastoral, mais próximo da dinâmica da realidade e sem o intento de ser um documento teórico estrutural argumentativo sobre a ética. Todavia, apesar disso, podemos delinear alguns elementos que corroboram a continuidade ética da luz inicial apresentada no Concílio.  As palavras introdutórias da Conferência tem relevância efetiva e pastoral no caráter de orientação e praticidade da teologia, no campo da ética cristã: “Não basta, certamente, refletir, conseguir mais clarividência e falar. É necessário agir. A hora atual não deixou de ser a hora da palavra, mas já se tornou, com dramática urgência, a hora da ação” (CCM, n.3, p.38).
Na Gaudium et Spes (n.11) se acentua o discernimento sobre os acontecimentos, as exigências e as aspirações do nosso tempo, assim como a leitura dos sinais dos tempos (n.4) . A Conferência levou a cabo tal orientação ao descrever a situação a que se encontrava a maioria do povo latino-americano: “o momento histórico atual de nossos povos se caracteriza [...] por uma situação de subdesenvolvimento, revelada por fenômenos maciços de marginalidade, alienação e pobreza, e condicionada, em última instância, por estrutura de dependência econômica, política e cultural” (CCM, n.2, p.147). Tal conjuntura social é a base se onde se situa a experiência humana latino-americana que faz parte da abertura dialogal do Concílio e da sua consideração ética. A “consciência” cristã se amplifica ao nível ético social e pastoral: “a tarefa de conscientizar e educar socialmente deverá ser parte integrante dos planos de Pastoral de Conjunto, em seus diversos níveis” (CCM, n.17, p.56).  
No aspecto da “justiça” o documento apresenta que “O Episcopado latino-americano não pode ficar indiferente ante as tremendas injustiças sociais existentes na América Latina, que mantêm a maioria de nossos povos numa situação dolorosa de pobreza, que muitos casos chegam a ser miséria desumana” (CMM, n.1, p.195). Segundo o documento explana a sintonia da justiça social com a Revelação: “A busca cristã da justiça é uma exigência do ensinamento bíblico. [...] Cremos que o amor a Cristo e aos nossos irmãos será não só a grande força libertadora da injustiça e da opressão, mas também e principalmente a inspiradora da justiça social” (CMM, n.5, p.48).
Em relação ao aspecto da “dignidade humana” a Conferência apresenta o profetismo da denúncia contra o “sistema liberal capitalista” (CMM, n.10, p.51), porque tal sistema atenta “contra a dignidade da pessoa humana”, pois tem como pressuposto “a primazia do capital, seu poder e sua utilização discriminatória em função do lucro” (CMM, n.10, p.51). Tal sistema cria “tremendas injustiças sociais existentes na América latina, que mantêm a maioria de nossos povos numa dolorosa pobreza, que em muitos casos chega a ser miséria desumana” (CMM, n.1, p. 195).
Na perspectiva dos “direitos humanos” acentua-se que a Igreja se compromete em “defender segundo o mandato evangélico o direito dos pobres e oprimidos, urgindo nossos governos e classes dirigentes a que eliminem tudo quanto destrói a paz social: injustiça, inércia, venalidade, insensibilidade” (CMM, n.22, p.71). Tal luta se dá pela sensibilidade e comunhão com a causa e situação existencial dos povos mais necessitados como se apresentou na Gaudium et Spes (GS, n.1).
A perspectiva ética da Conferência pode ser observada sobre duas temáticas que perpassaram o concílio: “a política” e “o bem comum”. Quanto ao viés político a “ação pastoral da Igreja estimula todas as categorias de cidadãos a colaborarem nos planos construtivos dos governos e a construírem também por meio de uma crítica sadia, numa oposição responsável, para o progresso do bem comum” (CMM, n.21, p. 123). Diante da situação de injustiça, opressão, miséria e exploração a que passam a maioria do povo latino-americano, a saber, os pobres, a Igreja considera a participação dos cristãos “na vida política da nação como um dever de consciência e como exercício de caridade em seu sentido mais nobre e eficaz para a vida da comunidade” (CMM, n.17, p.55).  

A continuidade e amadurecimento dos conteúdos éticos teológicos nos documentos do Papa Francisco

Se na Conferência de Medellín encontramos os elementos que constituem o conteúdo da ética cristã pós-conciliar, as demais Conferências (de Puebla, de Santo Domingo e de Aparecida) dão continuidade a tais aspectos éticos iluminados pelo Concílio. Todavia, pela objetividade da proposta temática em questão, vamos nos deter nos documentos do Papa Francisco no seu pontificado, a fim de demonstrar em tais documentos alguns dos conteúdos e orientações que permeiam e renovam a ética cristã na América Latina. 
Na Carta Circular aos Consagrados e às Consagradas do Magistério do Papa Francisco (2014)[8] três elementos têm relevância fundamental para a ética cristã. A primeira é a base de onde deve se inspirar a ética: o “Evangelho”. Fala-se de “assumir o Evangelho como forma de vida” (ALE, n.1, p.6). Porém, se o fundamento é o Evangelho, outro espaço deve interagir no agir humano: a “vida”. “Esta Carta encontra as suas razões nesse convite e pretende iniciar uma reflexão compartilhada, enquanto oferece como simples meio para um ideal confronto entre Evangelho e Vida” (ALE, n.1, p.7). Outro elemento que marca essa experiência espiritual ética é “a alegria do encontro com o Senhor” (ALE, n.8, p.33). Tal alegria se relaciona com o princípio imperativo da moral cristã: o amor. O Evangelho, a alegria e o amor são os três elementos que perpassam a ética cristã.
Na Misericordiae Vutus[9] Francisco acentual o valor da “misericórdia”: “Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com os olhos sinceros o irmão que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre” (MV, n.2, p.5-6). Esse tema é uma das grandes inovações da Francisco de relevância para a ética cristã: “Em suma somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada misericórdia para conosco” (MV, n.9, p.12). Outro elemento é a” justiça”, pois “Deus não rejeita a justiça. Ele a engloba e a supera em um evento superior em que se experimenta o amor, que está na base de uma verdadeira justiça” (MV, n.21, p.25). “A justiça de Deus torna-se agora a libertação para quantos estão oprimidos [...]” (MV, n.20, p. 24).
Na Evangelii Gaudium[10] também encontramos elementos que expressam essa continuidade revolucionária ética. A moral cristã se apresenta pelo discernimento dos “sinais dos tempos”: “Isto implica não só reconhecer e interpretar as moções do espírito bom e do espírito mau, mas também – e aqui está o ponto decisivo – escolher as do espírito bom e rejeitar as do espírito mau” (EG, n.51, p.46). Nessa dinâmica o aspecto da denúncia contra as injustiças, expressadas no Concílio de Medellín (CMM, n.10, p.51), assume uma continuidade em Francisco:
[...] não podemos esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos países ricos. A alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem a falta de respeito e a violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes com pouca dignidade. Esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no progresso científico, nas rápidas aplicações em diversos âmbitos da natureza. (EG, n.52, p.47)
Os elementos éticos tratados nesses documentos apresenta uma sintonia com o Concílio e a Conferências.  Na alegria do evangelho a perspectiva ética se apresenta no ãmbito da “economia”: “Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’” (EG, n.53, p.48); da “cultura”: “Reconhecemos que, numa cultura onde cada um pretende ser portador de uma verdade subjetiva própria, torna-se difícil que os cidadãos queiram inserir-se num projeto comum que vai além dos benefícios pessoais” (EG, n.61, p. 54); da “política”: “A política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum. Temos de nos convencer que a caridade ‘é o princípio não só das microrrelações estabelecida entre amigos, na família, [...] mas também das macrorrelações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos” (EG, n.205, p. 160). Na dinâmica social a ética civil precisa estar integrada com todos esses âmbitos da experiência humana.  E neste aspecto, também a ética cristã se relaciona, nos seus conteúdos, com tais elementos.
 O aspecto dialogal, presente no Concílio, se apresenta na Evangelii Gaudium numa práxis pastoral. Tal motivação tem relevância ética para uma Igreja “em saída”: “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG, n. 20). O imperativo transcendental do amor é retomado: “Aqui o que conta é, antes de mais nada, ‘a fé que atua pelo amor’” (EG, n.37, p.33). A postura cristã é motivada para uma continuidade profética do “não” à economia da exclusão, à idolatria do dinheiro e à desigualdade social que gera violência (EG, n. 53-60). Em todo o capítulo IV da exortação encontramos elementos pertinentes a ética cristã que foram tratados na Conferência de Medellín, como a) a preferência pelos pobres, e sua inclusão (EG, n.178-216), b) o bem comum, e a paz social (EG, n.217-237). O aspecto da eticidade cristã nesse escrito se apresenta sob o signo da praticidade profético-libertadora e dignificadora da humanidade.
Na Laudato Si[11] é possível encontrar no âmbito da ética cristã três nortes fundamentais pelos quais a encíclica discorre. O primeiro faz parte da base de fundamentação ética (o Evangelho da criação) e do espaço onde se está construindo tal ética (a realidade social), o segundo está nas relações sociais, políticas e económicas, dentre outras. O terceiro norte está acentuado na relação entre a humanidade e o ecossistema.    Por último há alguns eixos de relação ética que atravessam a encíclica inteira, como “a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta”, “a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia”, “o convite a procurar outras maneiras de entender a economia e o progresso”, “o valor próprio de cada criatura”, “o sentido do humano da ecologia” e assim segue. Todos esses elementos possuem referência nas questões pertencentes à ética cristã.

Conclusão

A presente pesquisa sustentou a tese da renovação, desenvolvimento e continuidade da ética cristã a partir do Concílio Vaticano II. Essa força renovadora repercutiu na Conferência de Medellín e nos documentos do Papa Francisco. Tal processo de desenvolvimento da teologia ética cristã não chegou a termo. Por isso se faz cada vez mais urgente uma inspiração das fontes éticas em diálogo com os novos tempos.

Referências bibliográficas

BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
CARTA ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
CELAM. Conclusões da Conferência de Medellín -1968. Trinta anos depois, Medellín é ainda atual? 3.ed., São Paulo: Paulinas, 2010.
CONCÍLIO VATICANO (2.: 1962-1965).Vaticano II: mensagem, discursos e documentos. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2007.
CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Alegrai-vos: carta circular aos consagrados e às consagradas do magistério do papa Francisco. São Paulo: Paulinas, 2014.
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii Gaudium: do Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.
MIFSUD, Tony.Una construccion ética de la utopia cristana. Edições paulinas: Florida, Chile, 1988.
VARIOS, Autores.Vida, Clamor y Esperança: aportes desde América Latina. edições paulinas: Buenos Aires, 1992.




[1] Licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e graduando no curso de Teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE).
[2] Licenciatura em Filosofia pelo Instituto Católico de Estudos Superiores do Piauí (ICESPI) e graduando no curso de Teologia no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA).
[3] Essas duas orientação desenvolvidas foram sintetizada pelo teólogo Roberto Oliveros na obra Clamor y Esperança:aportes desde América Latina (1992, p.105): “Juan XXIII convoco al concílio, a fin de ‘aggiornar’ criticamente la acción eclesial en las nuevas circunstancias mundiales”. Cf. VARIOS, Autores.Vida, Clamor y Esperança:aportes desde América Latina.edições paulinas: Buenos Aires, 1992.
[4] CONSTITUIÇÃO pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje. In CONCÍLIO VATICANO (2.: 1962-1965).Vaticano II: mensagem, discursos e documentos. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2007. ( n.11, p.477)
[5] DECRETO Optatam Totius sobre a formação sacerdotal. In In CONCÍLIO VATICANO (2.: 1962-1965).Vaticano II: mensagem, discursos e documentos. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2007. ( n.1, p.315)
[6] A influência determinante do Concílio Vaticano II na Conferência de Medellín é confirmada pelo teólogo Tony Mifsud na obra Una construccion ética de la utopia Cristiana ( 1988, p.181): “Los documentos de Medellín llevan el título de La Iglesia em la actual transformación de América Latina a la luz del Concilio. Medellín es la concreción o la aplicación latino-americana del Vaticano II, es decir, se introduce em este processo comenzado por el Vaticano II y lo aplica a la situación del continente”.
[7] As citações referente a esta Conferência está na seguinte obra: “CELAM. Conclusões da Conferência de Medellín -1968. Trinta anos depois, Medellín é ainda atual? 3.ed., São Paulo: Paulinas, 2010.
[8] CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Alegrai-vos: carta circular aos consagrados e às consagradas do magistério do papa Francisco. São Paulo: Paulinas, 2014.
[9] BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
[10] EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii Gaudium: do Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.
[11] CARTA ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A perspectiva da Ética cristã sobre o Conflito social e a Luta de classes: a busca do Bem Comum.

O conflito social é um “fato” histórico que não podemos negar. A vida humana é marcada por esse aspecto que de um modo ou de outro, direta ou indiretamente, perpassa os momentos mais fortes e determinantes de nossa história.  A Igreja reconhece tal fato, apesar de não ter uma explicação sistemática e elaborada para tal causa conflitiva. Porém, assim como a conflitividade marca o mundo hermenêutico da estrutura social, a mesma faz parte da configuração moral da sociedade. Pois todos os aspectos das relações sociais, que, em caso extremo, estão nas linhas de tensões, nas fronteiras decisórias e conflitivas da existência, reivindicam do ser humano um juízo de valor e uma praticidade social.
Santo Afonso é um exemplo dessa necessidade de juízo de valor e praticidade social na sua famosa Teologia Moral. Ela surge do impasse entre a lei e a liberdade, ou mais concretamente dizendo: do conflito entre a normatividade casuística de dois grupos religiosos antagônicos (laxistas e rigoristas) e um povo periférico (cabreiros) que vivia em outras condições sociais, com uma mentalidade e costume diferente das duas potencias religiosas. É a partir desse conflito entre duas posições contrárias e a realidade particular de um povo simples que Afonso constrói uma Teologia Moral da Benignidade, uma Teologia em que a “consciência” possuiu as faculdades e luzes divinas necessárias para julgar e decidir sobre sua própria vida, em vista do Bem Comum. Ainda hoje, inevitavelmente, é a partir dessas espécies de conflitos sociais contemporâneas que se exige da ética cristã uma resposta á altura de sua promessa salvífica redentora.
Para falar de conflito social necessariamente vamos passar pela temática da luta de classe. Porém, antes de tudo, é preciso distinguir que: o que caracteriza um conflito como social é o seu aspecto de oposição coletiva, isto é, oposição entre certas camadas sociais ou no interior de uma mesma camada. Um conflito que na maioria das vezes se realiza em vista da tomada do poder. Portanto, o conflito social não se trata de desacordos ou conflitos entre dois indivíduos, mas entre dois grupos, ou certa coletividade, ou categorias sociais em vista de um poder. É possível encontrar tais conflitos no campo cultural, político, econômico, religioso e etc. Mas vamos nos ater ao aspecto conflitivo social em relação com a ética cristã. Segundo o alemão e sociólogo Ralf Gustav Dahrendorf (1929-2009) o conflito social pode ser definido em dois pontos: 1) por “volume de unidade social”, isto é, entre representantes, dentro de grupos sociais, agrupamentos ou unidades maiores. Ou 2) por categorias de grupos como entre empresários e sindicatos, entre setores políticos e etc. Já o filósofo Ildefonso Murillo trata de dois tipos de conflitos: a) o ideológico (quando há oposição de valores e ideais de mundo entre dois grupos) e b) os conflitos por escassez de bens e valores (quando os bens de alguns grupos excluem outros grupos dos mesmos direitos de bens). O Brasil é um exemplo visível desta última categoria de conflito. Tais conflitos demarcam de modo geral a experiência humana social, nas suas relações econômicas, políticas e religiosas.
A partir disso podemos agora sustentar que a realidade social do conflito parte sob duas posições: uma negativa e outra positiva. A negativa sustenta o conflito como doença patológica, algo anormal, ação irracional do sujeito ou grupo social. A posição positiva observa o conflito como dinâmica que transforma a sociedade. Assim, seguimos a orientação moral do teólogo Marciano Vidal em que:
o conflito social não se deve ser interpretado unicamente em relação com a situação presente dos sistemas sociais, mas também e, sobretudo, em referência as mudanças da estrutura social. ‘Minha tese é que a missão constante, o sentido e o efeito dos conflitos sociais se concretizam em manter e fomentar a evolução da sociedade em suas partes e em seu conjunto [...] (VIDAL, 1979, p. 568).
Tal visão positiva é concordante com uma proposta ética social e está de acordo com a ética social cristã. Entre as causas dos conflitos há uma postura que não pode deixar de ser vista e refletida pela ética cristã. Trata-se da observação do conflito social determinado pela base econômica, pela injusta desigualdade do sistema de produção. É o conflito que numa visão marxista está relacionado com a luta de classes. Ora, a Igreja não tem uma resposta pronta ou fechada sobre a causa de tal conflito, apenas ela constata que cada dia está mais claro que existe uma guerra entre as classes, mas que não se sabe suas causas. Sobre o fenômeno específico do âmbito da conflitualidade – a luta de classes – é possível considerar que ela pode ser vista como fato e como método: “‘A luta de classes é ao mesmo tempo um fato e um método. É um fato: isto é, a divisão da sociedade em classes, irredutivelmente antagonistas entre elas, em seus interesses [...]. Este fato é além disso considerado como uma lei histórica” (Ibidem, p.571).“A luta de classes é [...] um método que se impõe às classes oprimidas para se livrarem, no sentido de que a transformação da sociedade passa por uma iniciativa solidária, sistemática, de luta de classes oprimidas contra as classes dominantes” (Ibidem.).
Após esses esclarecimentos podemos fazer algumas considerações acerca da postura e posição da Igreja sobre a questão da luta de classes. Pois quando se fala em tal conceito, ele está implicado como fator social, da conflitividade, que exige uma análise cristã. Ao primeiro momento é importante esclarecer que tal temática não é tranquila de ser debatida, pois “é um tema que preocupa visivelmente a consciência cristã, mas a respeito dele não existe uma elaboração teórica suficiente” (Ibidem, p.555). Na Encíclica Rerum Novarum de 15 de Maio de 1891 a posição da Igreja se demostra contrária à visão da história como luta de classes: “Não luta, mas concórdia das classes” (nº 8). Na numeração oitava o documento continua: “O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas inatas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado”. Na Mater et Magistra (nº 23) João XXIII chega a afirmar que “tanto a concorrência de tipo liberal, como a luta de classes no sentido marxista, são contrárias à natureza e à concepção cristã da vida”. Pio XII na sua obra Pio XII e os problemas do mundo moderno, de 1959, no tópico sobre a luta de classes sustenta a postura de “concórdia social para o progresso e a utilidade comuns” (p.189) contrárias da luta de classes.
Nesse sentido poderíamos até pensar equivocamente que a posição da Igreja é totalmente contrária à luta de classes. Todavia, há posições que se sustentam ora favoráveis e de aceitação (total ou gradual), ora de repulsa em relação á luta de classesa. Porém, como sustenta Vidal: “De nossa parte cremos que a ética cristã tem na atualidade uma dupla missão em relação com a luta de classes. Por uma parte, compete-lhe submeter à revisão crítica a posição vigente na doutrina social católica; por outra parte, compete-lhe fazer um discernimento sobre a coerência cristã dentro da luta de classes” (VIDAL, 1979, p. 556). A primeira revisão que se poderia fazer é que a “doutrina social católica não teve em conta o caráter histórico-social das classes sociais e de sua luta; considera-as como algo ‘natural’ confundindo assim classes sociais com ‘funções’ sociais” (Ibidem). “A oposição e o medo ao marxismo introduziram um ‘prejuízo’ inicial na análise e na valoração da luta de classes” (Ibidem). “A visão interclassista da sociedade que os Papas propocionaram, desde Leão XIII até Pio XII, é ideológica e carente de realismo” (Ibidem). Tais posturas denotaram uma visão reduzida, artificial, ideológica e ingênua da Igreja acerca da luta de classes.
Porém, no decorrer da histórica a questão da luta de classes foi sendo revista com mais propriedade e analisada como hermenêutica da realidade econômica e política social. A teologia desenvolvida na América Latina promoveu uma nova reflexão acerca dos elementos significativos que compunham a questão da luta de classes. O decorrer do tempo foi suficiente para que em 1991 o Papa João Paulo II apresenta-se uma visão menos ingênua e mais esclarecida acerca da contribuição que a concepção de luta de classes poderia oferecer para o anúncio da salvação integral do ser humano e o resgate de sua dignidade. Essa postura é vista na Encíclica Centesimus Annus (nº14) do Papa João Paulo II, quando, na relação entre conflito social e luta de classes, ele mesmo acentua que:
não pretende condenar toda e qualquer forma de conflitualidade social. A Igreja sabe bem que, ao longo da história, os conflitos de interesses entre diversos grupos sociais surgem inevitavelmente, e que, perante eles, o cristão deve muitas vezes tomar posição decidida e coerentemente. A Encíclica Laborem exercens, aliás, reconheceu claramente o papel positivo do conflito, quando ele se configura como luta pela justiça social; e na Quadragesimo anno escrevia-se: «com efeito, a luta de classes, quando se abstém dos actos de violência e do ódio mútuo, transforma-se pouco a pouco numa honesta discussão, fundada na busca da justiça.
Nesse sentido, a nova proposta ética cristã pós-conciliar atuou com uma nova postura de diálogo e abertura, sem reduzir a história humana à luta de classes, mas de fazer dela a chave de leitura e o instrumento metodológico de transformação social no seu aspecto positivo. Neste aspecto foi que houve uma aproximação da proposta cristã com o comunismo, da luta de classes pela e para a busca e plenificação do Reino. O economista Paul Lehmann, os teólogos jesuítas (Gonzalo Arroyo, Jean-Yves Calvez e Henrique Cláudio de Lima Vaz), além do teólogo Leonardo Boff, foram algumas personalidade referênciais que contribuíram para aproximação e relação metodológica entre a ética cristã e a ética marxista. Esses pontos de relação entre ética cristã e marxismo auxiliam a relevância da ética cristã com a luta de classes nos seus pontos de acordo e congruência. Nesse aspecto seguimos a proposta ética teológica de Marciano Vidal onde ele apresenta quatro aspectos fundamentais que é preciso perceber com clareza sobre a luta de classes para, por conseguinte, explanar um juízo crítico em coerência com a ética cristã:
– [1] A luta de classes é primordialmente a situação objetiva de opressão e antagonismo que dinama da existência das classes. Essa situação é injusta, e, portanto, anticristã. A luta de classes, em sentido estrutural, deve ser condenada sem reservas. [...] Como a estrutura classista da sociedade impede a colaboração e harmonia entre as pessoas de umas e outras classes, as classes devem ser supressas. – [2] A luta de classes é o esforço dos grupos sociais oprimidos por uma estrutura clássica da sociedade, para superar essa situação e alcançar sua libertação sócio-política. Esse esforço é legítimo e a ele devem se somar todos os cristãos. Ninguém pode opor-se, em nome da fé, à defesa legítima, diante de uma situação de injustiça estrutural. [...] – [3] A luta de classes é aplicação de certas estratégias ou táticas, para conseguir a supressão da sociedade classista. A luta de classes, assim entendida, nem sempre é lícita para um cristão. Existe meios morais e meios imorais, inclusive para combater situações de injustiça. O cristão não aceita o uso indiscriminado da violência [...]. – [4]A luta de classes pode significar, finalmente, a repressão exercida pelos beneficiários da estrutura classista da sociedade, contra os que se defendem legitimamente. (VIDAL, 1979, p. 559)    
            Vamos expor cada ponto para esclarecer melhor sobre a coerência ética cristã dentro da luta de classe. Tomamos a América Latina como modelo exemplar para delinear os aspectos positivos da luta de classes e de sua instrumentalização na ética teológica cristã. A luta de classes na ética cristã teológica deve passar pelo crivo ético do Bem Comum. Isso implica que razão de ser e existir na história da luta de classes é contraria ao essencial do cristianismo. Pois o Reino de Deus não é para que uma classe domine e submeta a outra, mas para que todos tenham iguais direitos e condições dignas de vida. Neste sentido é que a luta de classes, como luta antagônica e submissão de um grupo ao outro, deve ser suprimida, pois gera injustiça e opressão quando segue a dinâmica da desigualdade social, a opressão e exploração dos mais fracos. Assim a situação histórica, de grupos antagônicos, de luta de classes, de exploração e injustiça é a problemática que precisa ser superada. Na América Latina tal realidade histórica se faz patente como foi apresentado no concílio de Medellín e Puebla. Diante dessa situação a ética dos cristãos tenta sanar tal situação injusta, tal dinâmica que privilegia poucos e explora muitos.
Se no primeiro ponto se observou o aspecto negativo e basilar da luta de classes que são considerados pela ética cristã, no segundo ponto se sustenta que a luta de classes é assumida no seu aspecto positivo: ela se constitui como a luta da classe oprimida por libertação sócio-política. Se há um antagonismo estrutural então a dinâmica a que se apoia a ética cristã é a luta do oprimido por libertação, por justiça, por paz, por dignidade. É nesse aspecto que a classe oprimida se esforça por amenizar ou sanar o antagonismo existente. Isto ela faz lutando por direitos e condições igualitárias. A teologia da libertação segue tal orientação ética. Ela parte da realidade dos oprimidos, os pobres, para libertá-los do pecado estrutural e social. É um esforço de libertação: “esse esforço é legítimo e a ele devem se somar todos os cristãos. Ninguém pode opor-se, em nome da fé, à defesa legítima, diante de uma situação de injustiça estrutural”.
O terceiro ponto se remete à práxis. Ao caminho, ou ação realizada para alcança a libertação, a supressão do sistema classicista. Este ponto nos orienta para termos uma moralidade e legitimidade que seja realizada em concordância com a possibilidade cristã de realizar a dinâmica do Reino. Neste sentido a luta exercida pela classe oprimida não pode ser aquela da classe opressora. Neste campo a situação se torna delicadíssima, pois envolve as possibilidades e condições de libertação. Todavia, tal luta não pode agir de má fé, mas para a plena realização da justiça, do Bem Comum. Tal dinâmica pode ter como norte a ação evangélica do “fazer aos outros aquilo que queremos para nós”. Se a práxis da libertação for uma imitação da perversão do opressor, então ela estará fora da ética cristã. Pois a libertação autêntica engloba aquilo que nos é de direito e justo de acordo com a variabilidade das condições nas suas problemáticas nuanças.
O quarto ponto se reporta à medida que se volta contra aquele que está na situação de oprimido. Essa situação de repressão se demonstra por uma coação e normalmente é exercida por aqueles que são beneficiados pela estrutura injusta. Trata-se das ações legalistas e jurídicas alheia à vontade cívica, que denigre e transgride o Bem Comum e a Dignidade Humana. Tal medida contrária à equidade social constitui um abuso injustificável que necessita de uma constante denúncia. A Reforma no Ensino, na Previdência Social e na Terceirização trabalhista foram medidas exercidas no Brasil que não passaram pela opinião pública, pelo voto popular. Tais medidas foram protocoladas de acordo com a legalidade, todavia, o sistema político representativo não consultou a opinião pública, mas decidiu pelos direitos que a lei governamental lhe concedia. Neste sentido tais questões tão pertinentes à sociedade como um todo não passaram por um amadurecimento e vigência pública, mas pelos interesses pertinentes às empresas particulares estatais e à economia de um específico setor empresarial capitalista: o setor primário. As consequências de tais medidas é a redução no sistema econômico público em prol de um crescimento dos bens privados. Portanto, a conta de tal desigualdade e desequilíbrio econômico será posta na grande massa populacional trabalhadora. Tais medidas estão passando pela legitimidade, mas não se pode dizer que assumem o caráter de eticidade cristã e do Bem Comum.