Comunicação apresentada no Simpósio Internacional: "Diálogos Cruzados: Teologia e História" no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA), no dia 25 de setembro de 2017.
Simpósio
Temático-06: A Conferência de
Medellín (50 anos) e a Teologia da Libertação – caminhos, perspectivas e
problemas.
Autor: Isaias Mendes
Barbosa[1]
Co-autor: Edinardo Paz de
Sousa[2]
O Concílio
Ecumênico Vaticano II foi para a Igreja, assim como para a sociedade moderna,
um sinal renovador tanto no âmbito da vida cristã como da sua prática de fé. A
relevância de tal Concílio está na recuperação do estatuto de uma Teologia
Moral ou, vale dizer, Ética teológica cristã. Daí, podemos encontrar, na
perspectiva ética, os mais significativos passos pós-concílio na Conferência de
Medellín, assim como em alguns documentos do Papa Francisco. Partindo de uma
hermenêutica dos documentos de Medellín, do Papa Francisco e das obras
complementares, a presente comunicação trata sobre a contribuição que o
Concílio Vaticano II trouxe, no âmbito da ética teológica, à moderna e
contemporânea América Latina, a partir dos seguintes pontos: i) a questão
marcante da Teologia Moral tratada nos documentos do Concílio Vaticano II, ii)
os conteúdos de caráter ético cristão nos documentos de Medellín, e iii) a
continuidade e amadurecimento dos conteúdos éticos teológicos nos documentos do
Papa Francisco. Se o Concílio teve uma abertura e norte para a ética teológica
cristã, o mesmo motivou e viu os sinais desse desenvolvimento ético nas
Conclusões de Medellín. Nela a Ética teológica, voltada para o aspecto pastoral,
soube integrar seus elementos fundamentais – como as Sagradas Escrituras e as
orientações da Igreja – com a experiência humana e a situação de injustiça,
opressão e miséria que, ainda hoje, passam os pobres no continente
latino-americano. Numa ligação com esse evento conciliar e de Medellín, o Papa
Francisco apresenta uma continuidade dessa abertura e desenvolvimento ético
teológico como luz e esperança para a Igreja e sociedade contemporânea.
Palavras-chave:
Concílio Vaticano II; Ética; Medellín; Papa Francisco.
Introdução
Tanto
a Conferência de Medellín como os documentos apresentados pelo Papa Francisco,
no seu pontificado, não podem ser compreendidos sem a luz do Concílio Vaticano
II. Porém o destaque de tal influência conciliar, que a presente pesquisa expõe,
está no âmbito de uma nova ética. Ética que se destaca pela ruptura de um modo
tradicional, tomasiano-aristotélico-escolástico, de pensar e atuar na sociedade
para um novo modo de fazê-lo.
A
força iluminadora do Concílio impulsionou alguns imperativos e orientações
pelos quais tal ética deveria se fundamentar e atuar num âmbito mais amplo da
existência humana. É por essa dinâmica que no primeiro tópico descrevemos tais
conteúdos conciliares que influenciaram e motivaram o percurso, desenvolvimento
e maturidade da ética na América Latina. No segundo tópico expomos tais
conteúdos éticos extraídos da Conferência de Medellín que podem ser
compreendidos como uma continuação e maturidade da inspiração ética conciliar.
Para
prosseguirmos no entendimento e demonstração da ética como abertura, continuidade
e atualização da realidade, apresentamos, no terceiro tópico, tais elementos
éticos contidos nos documentos do Papa Francisco. Na pesquisa concluímos que o
caráter de abertura, desenvolvimento e continuidade da ética cristã não chegou
ao seu ponto final, mas que é preciso um eterno aggiornamento em sintonia com as novas questões patentes na América
Latina.
A
questão marcante da Teologia Moral tratada nos documentos do Concílio Vaticano
II
Na
metade do século XX o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) se constituiu
como o evento histórico revolucionário e de singular importância tanto para a
Igreja como para a sociedade Modernidade. Duas colocações orientadoras são
fundamentais neste evento para o advento de uma nova ética teológica: 1) O
Concílio motivou toda a Igreja ao aggiornamento
da mensagem cristã a partir de uma profundidade e inspiração evangélica
reveladora e querigmática; 2) O Concílio foi uma abertura dialogal para o mundo
moderno que dava seus passos autônomos[3].
A
partir desses dois movimentos decisivos, intra-eclesial e extra-eclesial,
podemos expor os pontos significativos do Concílio para o estatuto de uma nova
ética que foi se construindo e amadurecendo ao longo da história até a
Contemporaneidade. Com o evento conciliar nos deparamos com as novas
orientações, as exigências de adaptações e mudanças, referentes à normatividade
(regra) e estilo de vida, dos diversos setores da Igreja. Tais imperativos
norteadores gerou crise de identidade e sentido de vida para muitos cristãos, e
foi o ponto inicial da ruptura: a) de
uma teologia moral de caráter tomista-aristotélica-escolástica para uma nova
forma de pensar ético teológico; b) do abandono de um rigorismo perfeccionista,
ou moral laxista, para a abertura ao aspecto mais equitativo, probabilista e
moderador da ética cristã; c) uma transição da heteronomia da consciência e práxis
humana para a autonomia das mesmas; d) a troca dos silogismos dedutivos e
abstratos como fundamento da teologia moral, pelos escritos bíblicos, ou
especificadamente, pela Palavra revelada (Jesus Cristo) como base inspiradora
para ética cristã. Nessa perspectiva de ruptura podemos falar que a ética
cristã se renovou para atender evangelicamente às exigências do novo tempo e
perceber os sinais de Deus na história[4].
Alguns
documentos do Concílio acentuam as bases pelas quais a ética teológica deu os
seus primeiros passos inovadores que tanto influenciou a caminha da Igreja no
mundo todo como especificadamente na América Latina. O decreto Optatam Totius nos acentua tais
primeiros passos de abertura. Ele apresenta inicialmente a necessidade de adaptação da Igreja “às circunstâncias
de tempo e lugar”[5]. Sobre a Teologia Moral o
documento acentua: “Merece especial atenção a Teologia
Moral, cuja elaboração precisa manter maior contato com a Sagrada Escritura e
ter a preocupação de manifestar melhor a grandeza da vocação cristã e a
obrigação dos fiéis de se colocarem, ao amor, a serviço do mundo”. (OT, n.16, p.324 )
Três
passos são explanados nessa citação. A conexão com as Sagradas Escrituras é o
primeiro e fundamental passo que a ética teológica teve como contribuição de
fundamentação. O segundo era manifestar o ser cristão, a vocação e identidade.
O terceiro era pratico: a função da ética não era estar contra o mundo, como se
apresentou antes do Concílio (anátema), mas estar a serviço do mundo.
Na
Gaudium et Spes observamos
sinteticamente o norte essencial de relevância para a ética teológica. Trata-se
do seu proceder sob dois campos: “à luz do Evangelho e da experiência humana” (GS,
n.46, p.507). É estando sob a luz de Cristo e imerso na história que a ética
teológica poderia ajudar “tanto os cristãos como os não-cristãos a encontrarem o caminho para sua solução”
(GS, n.46, p.507). Negar um deles
levaria a ética cristã ao fracasso.
No
início da Gaudium et Spes observamos
a postura da Igreja frente à sociedade num âmbito mais amplo e ecumênico. Essa
postura de abertura e diálogo marca o itinerário diferenciado que a ética
cristã estava começando a fazer: “o Concílio Vaticano II dirige-se à humanidade
na sua totalidade, e não apenas aos filhos da Igreja e aos que invocam o nome
de Cristo, desejamos dizer a todos como [a Igreja] entende sua presença e sua atividade
no mundo de hoje” (GS, n.2, p.471). Percebemos aqui uma distinção de abordagem
que se fez neste evento entre a moral cristã, que se reporta ao ethos normativo e cultural eclesiológico
(“filhos da Igreja”), e a ética teológica cristã , aberta para o diálogo e na busca
de soluções com a realidade existencial humana (“dirige-se à humanidade na sua
totalidade”). Nessa abertura é
perceptível o vínculo com o segundo campo de abordagem apresentado sobre a
ética: a realidade existencial humana. Porém, tal abordagem apresenta um grupo
de especial atenção, a saber, os pobres: “As alegrias e as esperanças, as
tristezas e as angustias dos homens e mulheres de hoje sobretudo dos pobres e
de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as
tristezas e as angustias dos discípulos de Cristo” (GS, n.1, p.470 ).
Na
Gaudium et Spes a ética teológica
ganha um novo impulso na concepção de “consciência” e “liberdade humana”. “A
consciência é a intimidade secreta, o sacrário da pessoa, em que se encontra a
sós com Deus e onde lhe ouve intimamente a voz. Na consciência revela-se, de
modo admirável, a lei que consiste em amar a Deus e ao próximo” (GS, n.16,
p.481). O termo “consciência” emerge de forma revolucionária porque supera a
moral casuística tida até então, onde o cumprimento da Lei seria a realização e
felicidade humana. Do mesmo modo o termo “liberdade” ganha o espaço fundamental
na ética cristã. “Não é possível fazer o bem sem liberdade” (GS, n.17, p.481).
A conexão entre os dois conceitos possuem uma relevância significativa: “Faz
parte da dignidade da pessoa agir por opção consciente e livre, induzida e
movida pessoalmente, livre de toda coação externa e de qualquer pressão
interna” (GS, n.17, p.481). Na relação da consciência com a dignidade humana
encontramos os elementos orientadores da ética cristã que perduram até hoje:
O ser humano tem direito a tudo
de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: “alimento, roupa,
moradia, liberdade na escolha do seu estado de vida e na constituição de sua
família, educação, trabalho, reputação, respeito, informação objetiva,
liberdade de agir segundo a norma de sua consciência reta, privacidade e gozo
de uma justa liberdade, inclusive religiosa. (GS, n.26, p.489)
Mais
três termos são de contributo para a ética teológica cristã: a “dignidade humana”,
a “justiça social” e o “bem comum”. Na Gaudium Spes vemos referencia á
“dignidade humana” (GS, n.12, n.19, n.17). Ela está atreladas à vocação de
sermos filhos de Deus, participar de sua comunhão, usufruir dos bens da terra e
reder glória a Deus. Neste sentido a dignidade humana assume um valor e exigência
de eticidade que está acima de qualquer coisa (objeto) e qualquer situação
(opressão). No aspecto da justiça social o documento observa: o imperativo da “igualdade
fundamental entre todos os humanos” (GS, n.29, p.491), contraria à “toda discriminação por causa do
sexo, da raça, da cor, da condição social, da língua e da religião, que afeta
os direitos fundamentais da pessoa, tanto pessoais como sociais” (GS, n.29,
p.491). A justiça social também
se classifica contrária à desigualdade econômica e social. No aspecto do bem comum
a orientação ética se reporta à crescente interdependência entre os seres
humanos, abrangendo direito e deveres de todos equitativamente.
Um
termo que está estreitamente ligado ao bem comum é a “política”. O Concílio
apresenta esse vínculo pelo qual se insere a preocupação da Igreja e da
sociedade civil. Os dois termos são de relevância para a ética cristã: “Os
membros da comunidade política são numerosos e uns diferentes dos outros,
[....] mas para que a comunidade política não se desfaça, [...] é necessária
uma autoridade que oriente os cidadãos para o bem comum, não de maneira
despótica, mas pela força moral, [...]” (GS, n.74, p.533). Neste sentido a
ética cristã tem grande relevância para o bem comum, a justiça social e a
dignidade humana. Quanto à participação cidadã no universo político o Concílio
sustentou: “A Igreja considera dignas de louvor e consideração as pessoas que
se colocam a serviço dos outros, consagrando-se ao bem das coisas públicas e
assumindo os encargos destas funções” (GS, n.74, p.533).
Todas
essas orientações e termos constituem alguns conteúdos basilares pelo qual a
ética teológica cristã foi se renovando. As suas fundamentações foram revistas
e a proposta ética foi se abrindo para dialogar com as novas ciências que
emergiam socialmente. Os elementos que caracterizaram o novo percurso e desafio
da ética, assim como os termos tratados, foram de grande importância
orientadora para o progresso e desenvolvimento da ética pós-conciliar. Deste
modo, podemos considera que tais conteúdos também se apresentam, ora com mais
força, ora com menos precisão, nos documentos da Conferência de Medellín, na
realidade do continente latino-americano.
Os
conteúdos de caráter ético cristão nos documentos de Medellin
Na
América Latina a segunda Conferência latino-americana celebrada em Medellín
teve como objetivo eclesial compreender a missão da Igreja em um continente particular
e de uma realidade específica. Apesar de que o objetivo da Conferência foi
compreender e atuar evangelicamente na América Latina, é possível observar os
aspectos éticos de tal Conferência que demonstram uma continuidade e realização
das orientações e fundamentações éticas tratadas no Concílio Vaticano II[6].
Os
termos e conteúdos éticos presentes nas Conclusões
da Conferência de Medellín[7] (CCM) estão
entrelaçados no documento. Isso se justifica por tratar de um documento
pastoral, mais próximo da dinâmica da realidade e sem o intento de ser um
documento teórico estrutural argumentativo sobre a ética. Todavia, apesar
disso, podemos delinear alguns elementos que corroboram a continuidade ética da
luz inicial apresentada no Concílio. As
palavras introdutórias da Conferência tem relevância efetiva e pastoral no
caráter de orientação e praticidade da teologia, no campo da ética cristã: “Não
basta, certamente, refletir, conseguir mais clarividência e falar. É necessário
agir. A hora atual não deixou de ser a hora da palavra, mas já se tornou, com
dramática urgência, a hora da ação” (CCM, n.3, p.38).
Na
Gaudium et Spes (n.11) se acentua o
discernimento sobre os acontecimentos, as exigências e as aspirações do nosso
tempo, assim como a leitura dos sinais dos tempos (n.4) . A Conferência levou a
cabo tal orientação ao descrever a situação a que se encontrava a maioria do
povo latino-americano: “o momento histórico atual de nossos povos se
caracteriza [...] por uma situação de subdesenvolvimento, revelada por
fenômenos maciços de marginalidade, alienação e pobreza, e condicionada, em
última instância, por estrutura de dependência econômica, política e cultural” (CCM,
n.2, p.147). Tal conjuntura social é a base se onde se situa a experiência humana
latino-americana que faz parte da abertura dialogal do Concílio e da sua
consideração ética. A “consciência” cristã se amplifica ao nível ético social e
pastoral: “a tarefa de conscientizar e educar socialmente deverá ser parte
integrante dos planos de Pastoral de Conjunto, em seus diversos níveis” (CCM,
n.17, p.56).
No
aspecto da “justiça” o documento apresenta que “O Episcopado latino-americano
não pode ficar indiferente ante as tremendas injustiças sociais existentes na
América Latina, que mantêm a maioria de nossos povos numa situação dolorosa de
pobreza, que muitos casos chegam a ser miséria desumana” (CMM, n.1, p.195). Segundo
o documento explana a sintonia da justiça social com a Revelação: “A busca
cristã da justiça é uma exigência do ensinamento bíblico. [...] Cremos que o
amor a Cristo e aos nossos irmãos será não só a grande força libertadora da
injustiça e da opressão, mas também e principalmente a inspiradora da justiça
social” (CMM, n.5, p.48).
Em
relação ao aspecto da “dignidade humana” a Conferência apresenta o profetismo da
denúncia contra o “sistema liberal capitalista” (CMM, n.10, p.51), porque tal
sistema atenta “contra a dignidade da pessoa humana”, pois tem como pressuposto
“a primazia do capital, seu poder e sua utilização discriminatória em função do
lucro” (CMM, n.10, p.51). Tal sistema cria “tremendas injustiças sociais
existentes na América latina, que mantêm a maioria de nossos povos numa
dolorosa pobreza, que em muitos casos chega a ser miséria desumana” (CMM, n.1,
p. 195).
Na
perspectiva dos “direitos humanos” acentua-se que a Igreja se compromete em
“defender segundo o mandato evangélico o direito dos pobres e oprimidos,
urgindo nossos governos e classes dirigentes a que eliminem tudo quanto destrói
a paz social: injustiça, inércia, venalidade, insensibilidade” (CMM, n.22,
p.71). Tal luta se dá pela sensibilidade e comunhão com a causa e situação
existencial dos povos mais necessitados como se apresentou na Gaudium et Spes (GS, n.1).
A
perspectiva ética da Conferência pode ser observada sobre duas temáticas que
perpassaram o concílio: “a política” e “o bem comum”. Quanto ao viés político a
“ação pastoral da Igreja estimula todas as categorias de cidadãos a colaborarem
nos planos construtivos dos governos e a construírem também por meio de uma
crítica sadia, numa oposição responsável, para o progresso do bem comum” (CMM,
n.21, p. 123). Diante da situação de injustiça, opressão, miséria e exploração
a que passam a maioria do povo latino-americano, a saber, os pobres, a Igreja
considera a participação dos cristãos “na vida política da nação como um dever
de consciência e como exercício de caridade em seu sentido mais nobre e eficaz
para a vida da comunidade” (CMM, n.17, p.55).
A continuidade e amadurecimento dos conteúdos éticos
teológicos nos documentos do Papa Francisco
Se
na Conferência de Medellín encontramos os elementos que constituem o conteúdo
da ética cristã pós-conciliar, as demais Conferências (de Puebla, de Santo
Domingo e de Aparecida) dão continuidade a tais aspectos éticos iluminados pelo
Concílio. Todavia, pela objetividade da proposta temática em questão, vamos nos
deter nos documentos do Papa Francisco no seu pontificado, a fim de demonstrar
em tais documentos alguns dos conteúdos e orientações que permeiam e renovam a
ética cristã na América Latina.
Na
Carta Circular aos Consagrados e às
Consagradas do Magistério do Papa Francisco (2014)[8] três
elementos têm relevância fundamental para a ética cristã. A primeira é a base
de onde deve se inspirar a ética: o “Evangelho”. Fala-se de “assumir o
Evangelho como forma de vida” (ALE, n.1, p.6). Porém, se o fundamento é o
Evangelho, outro espaço deve interagir no agir humano: a “vida”. “Esta Carta
encontra as suas razões nesse convite e pretende iniciar uma reflexão
compartilhada, enquanto oferece como simples meio para um ideal confronto entre
Evangelho e Vida” (ALE, n.1, p.7). Outro elemento que marca essa experiência
espiritual ética é “a alegria do encontro com o Senhor” (ALE, n.8, p.33). Tal
alegria se relaciona com o princípio imperativo da moral cristã: o amor. O
Evangelho, a alegria e o amor são os três elementos que perpassam a ética
cristã.
Na Misericordiae Vutus[9] Francisco acentual o valor da “misericórdia”:
“Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando
vê com os olhos sinceros o irmão que une Deus e o homem, porque nos abre o
coração à esperança de sermos amados para sempre” (MV, n.2, p.5-6). Esse tema é
uma das grandes inovações da Francisco de relevância para a ética cristã: “Em
suma somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada
misericórdia para conosco” (MV, n.9, p.12). Outro elemento é a” justiça”, pois
“Deus não rejeita a justiça. Ele a engloba e a supera em um evento superior em
que se experimenta o amor, que está na base de uma verdadeira justiça” (MV,
n.21, p.25). “A
justiça de Deus torna-se agora a libertação para quantos estão oprimidos [...]”
(MV, n.20, p. 24).
Na
Evangelii Gaudium[10] também encontramos
elementos que expressam essa continuidade revolucionária ética. A moral cristã
se apresenta pelo discernimento dos “sinais dos tempos”: “Isto implica não só
reconhecer e interpretar as moções do espírito bom e do espírito mau, mas
também – e aqui está o ponto decisivo – escolher as do espírito bom e rejeitar
as do espírito mau” (EG, n.51, p.46). Nessa dinâmica o aspecto da denúncia contra as injustiças,
expressadas no Concílio de Medellín (CMM, n.10, p.51), assume uma continuidade
em Francisco:
[...] não podemos esquecer que a
maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia a dia
precariamente, com funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O medo e o
desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos países ricos. A
alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem a falta de respeito e a
violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais patente. É preciso
lutar para viver, e muitas vezes com pouca dignidade. Esta mudança de época foi
causada pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes e acumulados
que se verificam no progresso científico, nas rápidas aplicações em diversos
âmbitos da natureza. (EG, n.52, p.47)
Os
elementos éticos tratados nesses documentos apresenta uma sintonia com o Concílio
e a Conferências. Na alegria do
evangelho a perspectiva ética se apresenta no ãmbito da “economia”: “Assim como o
mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para assegurar o valor da vida
humana, assim também hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da
desigualdade social’” (EG, n.53, p.48); da “cultura”: “Reconhecemos que, numa
cultura onde cada um pretende ser portador de uma verdade subjetiva própria,
torna-se difícil que os cidadãos queiram inserir-se num projeto comum que vai
além dos benefícios pessoais” (EG, n.61, p. 54); da “política”: “A política,
tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da
caridade, porque busca o bem comum. Temos de nos convencer que a caridade ‘é o
princípio não só das microrrelações estabelecida entre amigos, na família,
[...] mas também das macrorrelações como relacionamentos sociais, econômicos,
políticos” (EG, n.205, p. 160). Na dinâmica social a ética civil precisa estar
integrada com todos esses âmbitos da experiência humana. E neste aspecto, também a ética cristã se
relaciona, nos seus conteúdos, com tais elementos.
O aspecto dialogal, presente no Concílio, se
apresenta na Evangelii Gaudium numa
práxis pastoral. Tal motivação tem relevância ética para uma Igreja “em saída”:
“sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que
precisam da luz do Evangelho” (EG, n. 20).
O imperativo transcendental do amor é retomado: “Aqui o que conta é, antes
de mais nada, ‘a fé que atua pelo amor’” (EG, n.37, p.33). A postura cristã é
motivada para uma continuidade profética do “não” à economia da exclusão, à
idolatria do dinheiro e à desigualdade social que gera violência (EG, n.
53-60). Em todo o capítulo IV da exortação encontramos elementos pertinentes a
ética cristã que foram tratados na Conferência de Medellín, como a) a
preferência pelos pobres, e sua inclusão (EG, n.178-216), b) o bem comum, e a
paz social (EG, n.217-237). O aspecto da eticidade cristã nesse escrito se
apresenta sob o signo da praticidade profético-libertadora e dignificadora da
humanidade.
Na
Laudato Si[11]’ é possível
encontrar no âmbito da ética cristã três nortes fundamentais pelos quais a encíclica
discorre. O primeiro faz parte da base de fundamentação ética (o Evangelho da
criação) e do espaço onde se está construindo tal ética (a realidade social), o
segundo está nas relações sociais, políticas e económicas, dentre outras. O
terceiro norte está acentuado na relação entre a humanidade e o ecossistema. Por último há alguns eixos de relação ética que
atravessam a encíclica inteira, como “a relação íntima entre os pobres e a
fragilidade do planeta”, “a crítica do novo paradigma e das formas de poder que
derivam da tecnologia”, “o convite a procurar outras maneiras de entender a
economia e o progresso”, “o valor próprio de cada criatura”, “o sentido do
humano da ecologia” e assim segue. Todos esses elementos possuem referência nas
questões pertencentes à ética cristã.
Conclusão
A
presente pesquisa sustentou a tese da renovação, desenvolvimento e continuidade
da ética cristã a partir do Concílio Vaticano II. Essa força renovadora
repercutiu na Conferência de Medellín e nos documentos do Papa Francisco. Tal
processo de desenvolvimento da teologia ética cristã não chegou a termo. Por
isso se faz cada vez mais urgente uma inspiração das fontes éticas em diálogo
com os novos tempos.
Referências bibliográficas
BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA
MISERICÓRDIA. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
CARTA
ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o
cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
CELAM. Conclusões da Conferência de Medellín
-1968. Trinta anos depois, Medellín é ainda atual? 3.ed., São Paulo: Paulinas, 2010.
CONCÍLIO VATICANO (2.: 1962-1965).Vaticano II: mensagem, discursos e
documentos. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2007.
CONGREGAÇÃO PARA
OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Alegrai-vos: carta circular aos
consagrados e às consagradas do magistério do papa Francisco. São Paulo:
Paulinas, 2014.
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii Gaudium: do
Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.
MIFSUD,
Tony.Una construccion ética de la utopia
cristana. Edições paulinas: Florida, Chile, 1988.
VARIOS,
Autores.Vida, Clamor y Esperança: aportes
desde América Latina. edições paulinas: Buenos Aires, 1992.
[1] Licenciado em Filosofia pela
Universidade Estadual do Ceará (UECE) e graduando no curso de Teologia na
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE).
[2] Licenciatura em Filosofia pelo
Instituto Católico de Estudos Superiores do Piauí (ICESPI) e graduando no curso
de Teologia no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA).
[3] Essas duas orientação
desenvolvidas foram sintetizada pelo teólogo Roberto Oliveros na obra Clamor y Esperança:aportes desde América
Latina (1992, p.105): “Juan XXIII convoco al concílio, a fin de ‘aggiornar’
criticamente la acción eclesial en las nuevas circunstancias mundiales”. Cf.
VARIOS, Autores.Vida, Clamor y Esperança:aportes
desde América Latina.edições paulinas: Buenos Aires, 1992.
[4] CONSTITUIÇÃO
pastoral Gaudium et Spes sobre a
Igreja no mundo de hoje. In CONCÍLIO VATICANO (2.: 1962-1965).Vaticano II:
mensagem, discursos e documentos. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2007. ( n.11, p.477)
[5] DECRETO Optatam Totius sobre a formação sacerdotal. In In
CONCÍLIO VATICANO (2.: 1962-1965).Vaticano II: mensagem, discursos e
documentos. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2007. ( n.1, p.315)
[6] A influência determinante do
Concílio Vaticano II na Conferência de Medellín é confirmada pelo teólogo Tony
Mifsud na obra Una construccion ética de
la utopia Cristiana ( 1988, p.181): “Los documentos de Medellín llevan el
título de La Iglesia em la actual transformación de América Latina a la luz del
Concilio. Medellín es la concreción o la aplicación latino-americana del
Vaticano II, es decir, se introduce em este processo comenzado por el Vaticano
II y lo aplica a la situación del continente”.
[7] As citações referente a esta
Conferência está na seguinte obra: “CELAM. Conclusões
da Conferência de Medellín -1968. Trinta anos depois, Medellín é ainda
atual? 3.ed., São Paulo: Paulinas,
2010.
[8] CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS
DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Alegrai-vos: carta circular aos consagrados e às consagradas do
magistério do papa Francisco. São Paulo: Paulinas, 2014.
[9] BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU
EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA. Misericordiae
Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
[10] EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii Gaudium: do Papa Francisco
sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.
[11] CARTA ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa
comum. São Paulo: Paulinas, 2015.