O
conflito social é um “fato” histórico que não podemos negar. A vida humana é
marcada por esse aspecto que de um modo ou de outro, direta ou indiretamente,
perpassa os momentos mais fortes e determinantes de nossa história. A Igreja reconhece tal fato, apesar de não
ter uma explicação sistemática e elaborada para tal causa conflitiva. Porém,
assim como a conflitividade marca o mundo hermenêutico da estrutura social, a
mesma faz parte da configuração moral da sociedade. Pois todos os aspectos das
relações sociais, que, em caso extremo, estão nas linhas de tensões, nas
fronteiras decisórias e conflitivas da existência, reivindicam do ser humano um
juízo de valor e uma praticidade social.
Santo
Afonso é um exemplo dessa necessidade de juízo de valor e praticidade social na
sua famosa Teologia Moral. Ela surge do impasse entre a lei e a liberdade, ou
mais concretamente dizendo: do conflito entre a normatividade casuística de
dois grupos religiosos antagônicos (laxistas e rigoristas) e um povo periférico
(cabreiros) que vivia em outras condições sociais, com uma mentalidade e
costume diferente das duas potencias religiosas. É a partir desse conflito entre
duas posições contrárias e a realidade particular de um povo simples que Afonso
constrói uma Teologia Moral da Benignidade, uma Teologia em que a “consciência”
possuiu as faculdades e luzes divinas necessárias para julgar e decidir sobre
sua própria vida, em vista do Bem Comum. Ainda hoje, inevitavelmente, é a
partir dessas espécies de conflitos sociais contemporâneas que se exige da
ética cristã uma resposta á altura de sua promessa salvífica redentora.
Para
falar de conflito social necessariamente vamos passar pela temática da luta de
classe. Porém, antes de tudo, é preciso distinguir que: o que caracteriza um
conflito como social é o seu aspecto de oposição coletiva, isto é, oposição entre
certas camadas sociais ou no interior de uma mesma camada. Um conflito que na
maioria das vezes se realiza em vista da tomada do poder. Portanto, o conflito
social não se trata de desacordos ou conflitos entre dois indivíduos, mas entre
dois grupos, ou certa coletividade, ou categorias sociais em vista de um poder.
É possível encontrar tais conflitos no campo cultural, político, econômico,
religioso e etc. Mas vamos nos ater ao aspecto conflitivo social em relação com
a ética cristã. Segundo o alemão e sociólogo Ralf Gustav Dahrendorf (1929-2009)
o conflito social pode ser definido em dois pontos: 1) por “volume de unidade
social”, isto é, entre representantes, dentro de grupos sociais, agrupamentos
ou unidades maiores. Ou 2) por categorias de grupos como entre empresários e
sindicatos, entre setores políticos e etc. Já o filósofo Ildefonso Murillo
trata de dois tipos de conflitos: a) o ideológico (quando há oposição de
valores e ideais de mundo entre dois grupos) e b) os conflitos por escassez de
bens e valores (quando os bens de alguns grupos excluem outros grupos dos
mesmos direitos de bens). O Brasil é um exemplo visível desta última categoria
de conflito. Tais conflitos demarcam de modo geral a experiência humana social,
nas suas relações econômicas, políticas e religiosas.
A
partir disso podemos agora sustentar que a realidade social do conflito parte
sob duas posições: uma negativa e outra positiva. A negativa sustenta o
conflito como doença patológica, algo anormal, ação irracional do sujeito ou
grupo social. A posição positiva observa o conflito como dinâmica que
transforma a sociedade. Assim, seguimos a orientação moral do teólogo Marciano
Vidal em que:
o conflito social não se deve ser
interpretado unicamente em relação com a situação presente dos sistemas
sociais, mas também e, sobretudo, em referência as mudanças da estrutura
social. ‘Minha tese é que a missão constante, o sentido e o efeito dos conflitos
sociais se concretizam em manter e fomentar a evolução da sociedade em suas
partes e em seu conjunto [...] (VIDAL, 1979, p. 568).
Tal
visão positiva é concordante com uma proposta ética social e está de acordo com
a ética social cristã. Entre as causas dos conflitos há uma postura que não
pode deixar de ser vista e refletida pela ética cristã. Trata-se da observação
do conflito social determinado pela base econômica, pela injusta desigualdade
do sistema de produção. É o conflito que numa visão marxista está relacionado
com a luta de classes. Ora, a Igreja
não tem uma resposta pronta ou fechada sobre a causa de tal conflito, apenas
ela constata que cada dia está mais claro que existe uma guerra entre as classes, mas que não se sabe suas causas. Sobre o
fenômeno específico do âmbito da conflitualidade – a luta de classes – é possível
considerar que ela pode ser vista como fato
e como método: “‘A luta de classes é
ao mesmo tempo um fato e um método. É um fato: isto é, a divisão da sociedade
em classes, irredutivelmente antagonistas entre elas, em seus interesses [...].
Este fato é além disso considerado como uma lei histórica” (Ibidem, p.571).“A
luta de classes é [...] um método que se impõe às classes oprimidas para se livrarem,
no sentido de que a transformação da sociedade passa por uma iniciativa
solidária, sistemática, de luta de classes oprimidas contra as classes
dominantes” (Ibidem.).
Após
esses esclarecimentos podemos fazer algumas considerações acerca da postura e
posição da Igreja sobre a questão da luta de classes. Pois quando se fala em
tal conceito, ele está implicado como fator social, da conflitividade, que
exige uma análise cristã. Ao primeiro momento é importante esclarecer que tal
temática não é tranquila de ser debatida, pois “é um tema que preocupa
visivelmente a consciência cristã, mas a respeito dele não existe uma
elaboração teórica suficiente” (Ibidem, p.555). Na Encíclica Rerum Novarum de 15 de Maio de 1891 a
posição da Igreja se demostra contrária à visão da história como luta de
classes: “Não luta, mas concórdia das classes” (nº 8). Na numeração oitava o
documento continua: “O erro capital na questão presente é crer que as duas
classes são inimigas inatas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os
ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado”. Na Mater et Magistra (nº 23) João XXIII
chega a afirmar que “tanto a concorrência de tipo liberal, como a luta de
classes no sentido marxista, são contrárias à natureza e à concepção cristã da
vida”. Pio XII na sua obra Pio XII e os problemas
do mundo moderno, de 1959, no tópico sobre a luta de classes sustenta a postura de “concórdia social para o
progresso e a utilidade comuns” (p.189) contrárias da luta de classes.
Nesse
sentido poderíamos até pensar equivocamente que a posição da Igreja é
totalmente contrária à luta de classes. Todavia, há posições que se sustentam ora
favoráveis e de aceitação (total ou gradual), ora de repulsa em relação á luta
de classesa. Porém, como sustenta Vidal: “De nossa parte cremos que a ética
cristã tem na atualidade uma dupla missão em relação com a luta de classes. Por
uma parte, compete-lhe submeter à revisão crítica a posição vigente na doutrina
social católica; por outra parte, compete-lhe fazer um discernimento sobre a
coerência cristã dentro da luta de classes” (VIDAL, 1979, p. 556). A primeira
revisão que se poderia fazer é que a “doutrina social católica não teve em
conta o caráter histórico-social das classes sociais e de sua luta;
considera-as como algo ‘natural’ confundindo assim classes sociais com
‘funções’ sociais” (Ibidem). “A oposição e o medo ao marxismo introduziram um
‘prejuízo’ inicial na análise e na valoração da luta de classes” (Ibidem). “A
visão interclassista da sociedade que os Papas propocionaram, desde Leão XIII
até Pio XII, é ideológica e carente de realismo” (Ibidem). Tais posturas denotaram
uma visão reduzida, artificial, ideológica e ingênua da Igreja acerca da luta
de classes.
Porém,
no decorrer da histórica a questão da luta de classes foi sendo revista com
mais propriedade e analisada como hermenêutica da realidade econômica e
política social. A teologia desenvolvida na América Latina promoveu uma nova
reflexão acerca dos elementos significativos que compunham a questão da luta de
classes. O decorrer do tempo foi suficiente para que em 1991 o Papa João Paulo
II apresenta-se uma visão menos ingênua e mais esclarecida acerca da
contribuição que a concepção de luta de classes poderia oferecer para o anúncio
da salvação integral do ser humano e o resgate de sua dignidade. Essa postura é
vista na Encíclica Centesimus Annus (nº14)
do Papa João Paulo II, quando, na relação entre conflito social e luta de
classes, ele mesmo acentua que:
não pretende condenar toda e
qualquer forma de conflitualidade social.
A Igreja sabe bem que, ao longo da história, os conflitos de interesses entre
diversos grupos sociais surgem inevitavelmente, e que, perante eles, o cristão
deve muitas vezes tomar posição decidida e coerentemente. A Encíclica Laborem exercens, aliás,
reconheceu claramente o papel positivo do conflito, quando ele se configura
como luta pela justiça social; e na Quadragesimo anno escrevia-se: «com
efeito, a luta de classes, quando se abstém dos actos de violência e do ódio
mútuo, transforma-se pouco a pouco numa honesta discussão, fundada na busca da
justiça.
Nesse
sentido, a nova proposta ética cristã pós-conciliar atuou com uma nova postura
de diálogo e abertura, sem reduzir a história humana à luta de classes, mas de
fazer dela a chave de leitura e o instrumento metodológico de
transformação social no seu aspecto positivo. Neste aspecto foi que houve uma
aproximação da proposta cristã com o comunismo, da luta de classes pela e para
a busca e plenificação do Reino. O economista Paul Lehmann, os teólogos
jesuítas (Gonzalo Arroyo, Jean-Yves Calvez e Henrique Cláudio de Lima Vaz), além
do teólogo Leonardo Boff, foram algumas personalidade referênciais que
contribuíram para aproximação e relação metodológica entre a ética cristã e a
ética marxista. Esses pontos de relação entre ética cristã e marxismo auxiliam
a relevância da ética cristã com a luta de classes nos seus pontos de acordo e
congruência. Nesse aspecto seguimos a proposta ética teológica de Marciano
Vidal onde ele apresenta quatro aspectos fundamentais que é preciso perceber
com clareza sobre a luta de classes para, por conseguinte, explanar um juízo
crítico em coerência com a ética cristã:
– [1] A luta de classes é
primordialmente a situação objetiva de opressão e antagonismo que dinama da
existência das classes. Essa situação é injusta, e, portanto, anticristã. A
luta de classes, em sentido estrutural, deve ser condenada sem reservas. [...]
Como a estrutura classista da sociedade impede a colaboração e harmonia entre
as pessoas de umas e outras classes, as classes devem ser supressas. – [2] A
luta de classes é o esforço dos grupos sociais oprimidos por uma estrutura
clássica da sociedade, para superar essa situação e alcançar sua libertação
sócio-política. Esse esforço é legítimo e a ele devem se somar todos os
cristãos. Ninguém pode opor-se, em nome da fé, à defesa legítima, diante de uma
situação de injustiça estrutural. [...] – [3] A luta de classes é aplicação de
certas estratégias ou táticas, para conseguir a supressão da sociedade classista.
A luta de classes, assim entendida, nem sempre é lícita para um cristão. Existe
meios morais e meios imorais, inclusive para combater situações de injustiça. O
cristão não aceita o uso indiscriminado da violência [...]. – [4]A luta de
classes pode significar, finalmente, a repressão exercida pelos beneficiários
da estrutura classista da sociedade, contra os que se defendem legitimamente.
(VIDAL, 1979, p. 559)
Vamos
expor cada ponto para esclarecer melhor sobre a coerência ética cristã dentro da
luta de classe. Tomamos a América Latina como modelo exemplar para delinear os aspectos
positivos da luta de classes e de sua instrumentalização na ética teológica
cristã. A luta de classes na ética cristã teológica deve passar pelo crivo
ético do Bem Comum. Isso implica que razão de ser e existir na história da luta
de classes é contraria ao essencial do cristianismo. Pois o Reino de Deus não é
para que uma classe domine e submeta a outra, mas para que todos tenham iguais
direitos e condições dignas de vida. Neste sentido é que a luta de classes,
como luta antagônica e submissão de um grupo ao outro, deve ser suprimida, pois
gera injustiça e opressão quando segue a dinâmica da desigualdade social, a
opressão e exploração dos mais fracos. Assim a situação histórica, de grupos
antagônicos, de luta de classes, de exploração e injustiça é a problemática que
precisa ser superada. Na América Latina tal realidade histórica se faz patente
como foi apresentado no concílio de Medellín e Puebla. Diante dessa situação a
ética dos cristãos tenta sanar tal situação injusta, tal dinâmica que privilegia
poucos e explora muitos.
Se no primeiro ponto se
observou o aspecto negativo e basilar da luta de classes que são considerados
pela ética cristã, no segundo ponto se sustenta que a luta de classes é
assumida no seu aspecto positivo: ela se constitui como a luta da classe
oprimida por libertação sócio-política. Se há um antagonismo estrutural então a
dinâmica a que se apoia a ética cristã é a luta do oprimido por libertação, por
justiça, por paz, por dignidade. É nesse aspecto que a classe oprimida se
esforça por amenizar ou sanar o antagonismo existente. Isto ela faz lutando por
direitos e condições igualitárias. A teologia da libertação segue tal
orientação ética. Ela parte da realidade dos oprimidos, os pobres, para
libertá-los do pecado estrutural e social. É um esforço de libertação: “esse
esforço é legítimo e a ele devem se somar todos os cristãos. Ninguém pode
opor-se, em nome da fé, à defesa legítima, diante de uma situação de injustiça
estrutural”.
O terceiro ponto se
remete à práxis. Ao caminho, ou ação realizada para alcança a libertação, a
supressão do sistema classicista. Este ponto nos orienta para termos uma
moralidade e legitimidade que seja realizada em concordância com a
possibilidade cristã de realizar a dinâmica do Reino. Neste sentido a luta
exercida pela classe oprimida não pode ser aquela da classe opressora. Neste
campo a situação se torna delicadíssima, pois envolve as possibilidades e
condições de libertação. Todavia, tal luta não pode agir de má fé, mas para a
plena realização da justiça, do Bem Comum. Tal dinâmica pode ter como norte a
ação evangélica do “fazer aos outros aquilo que queremos para nós”. Se a práxis
da libertação for uma imitação da perversão do opressor, então ela estará fora
da ética cristã. Pois a libertação autêntica engloba aquilo que nos é de
direito e justo de acordo com a variabilidade das condições nas suas
problemáticas nuanças.
O quarto ponto se
reporta à medida que se volta contra aquele que está na situação de oprimido.
Essa situação de repressão se demonstra por uma coação e normalmente é exercida
por aqueles que são beneficiados pela estrutura injusta. Trata-se das ações
legalistas e jurídicas alheia à vontade cívica, que denigre e transgride o Bem
Comum e a Dignidade Humana. Tal medida contrária à equidade social constitui um
abuso injustificável que necessita de uma constante denúncia. A Reforma no
Ensino, na Previdência Social e na Terceirização trabalhista foram medidas
exercidas no Brasil que não passaram pela opinião pública, pelo voto popular. Tais
medidas foram protocoladas de acordo com a legalidade, todavia, o sistema
político representativo não consultou a opinião pública, mas decidiu pelos
direitos que a lei governamental lhe concedia. Neste sentido tais questões tão
pertinentes à sociedade como um todo não passaram por um amadurecimento e
vigência pública, mas pelos interesses pertinentes às empresas particulares
estatais e à economia de um específico setor empresarial capitalista: o setor
primário. As consequências de tais medidas é a redução no sistema econômico
público em prol de um crescimento dos bens privados. Portanto, a conta de tal
desigualdade e desequilíbrio econômico será posta na grande massa populacional
trabalhadora. Tais medidas estão passando pela legitimidade, mas não se pode
dizer que assumem o caráter de eticidade cristã e do Bem Comum.
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