A Filosofia e o
Sagrado: fundamentos e significativo sinal para os tempos atuais.[1]
Isaias Mendes Barbosa[2]
Na Tradição Filosófica Ocidental, contemplar
o nascimento e desabrochar da Filosofia, desde a Grécia Antiga, é uma tarefa de
sublime importância, ainda hoje. Principalmente para quem se compromete
apaixonadamente com a realidade atual e pretende trazer para a Contemporaneidade questões novas, inéditas, ou, na verdade, esquecidas e até certo ponto desprezadas,
porém tão necessárias, no nosso tempo. Por isso, retomo um elemento significativo da Tradição Filosófica Ocidental que perpassou boa parte, se não quase toda,
dessa referida trajetória filosófica. Falo da experiência filosófico-poética-mítica que tiveram os primeiros pensadores
naturalistas e que até certo ponto deram continuidade os demais, como Platão,
Aristóteles, Agostinho, Pico Della Miradola, Hegel e Giambattista Vico. Essa
experiência significativa tem sua expressão ainda hoje, apesar de precisar ser
revitalizada e disseminada.
O Sagrado é este elemento que constituiu a
trajetória originária da Filosofia e sem o qual não teríamos como entender com
riqueza e profundidade o valor da Filosofia. Não é que esse termo (Sagrado)
tenha sido descrito como categoria filosófico-temática propriamente dita,
porém, ele fez parte em suas propriedades e significados da Filosofia no seu
desabrochar e na sua mais elevada reflexão. Quem sabe tal elemento tem faltado
nas reflexões atuais cotidianas!?
A experiência filosófica não começa com
Aristóteles, apesar de atingir neste uma conceituação reflexiva profunda.
Porém, ela começa com os pré-socráticos, ou melhor dizendo, com as primeiras
comunidades periféricas, a saber, os religiosos, os míticos, os poetas e
políticos da Grécia Antiga. Todavia, basta, aqui, considerar essa experiência a
partir dos pré-socráticos.
Ela inicia na percepção de elementos da
naturezas apreendidos e valorizados, na reflexão filosófica, como Sagrados, ou originalmente dizendo Divinos. Tais elementos da Natureza são
apreendidos numa profundidade tão grande que chegam a ser definidos como arché da physis, isto é, como os princípios primeiros e fundamentais da realidade, da Natureza, isto é, de
todas as coisas. Tais princípios compreendem a essência das coisas que são,
e pelas quais não deixam o seu extrato, ou seja, não deixam de Ser, mas regem,
orientar, impulsionam e governam o ser
elementar de todas as coisas. Cada pensador compreendia essa essência
(apreendida por mim como Sagrada) de
uma forma original e particular.
Para Tales era a água, ou o elemento úmido,
aquilo que era fundamental em todas as coisas. A experiência com o Sagrado era
tão convincente para ele que o mesmo chegou a afirmar que “todas as coisas possuem deuses”, porque todas as coisas possuíam
esse elemento húmido, e que portanto poderia provir de um essencial fundante
metafísico-divino. Com Anaximandro esse elemento Sagrado é denominado de á-peiron, isto é, indeterminado, algo sem
limites, tal elemento, todavia, possuía o mesmo valor divino. Já para
Anaxímenes é o ar infinito, uma espécie
de sopro vital.
Se nos pré-socráticos esse vínculo da
reflexão filosófica com o Divino ou o Sagrado era algo intrínseco, com Platão
não é diferente. A experiência da regência do Cosmo e da Pólis grega, a
partir de uma realidade supra-sensível,
não descuida de uma ligação com o Divino. Pois se na ordem hierárquica dos seres ideiais tanto os deuses são proprietários de todo o saber
divino, como o UNO e a DIADE são elementos ideais essenciais e relacionais, de onde se originam
o igual e o diferente, o maior e o menor, o idêntico e o distinto, de todas as
coisas que são, em variados graus e por
participação com esses dois princípios ideais fundantes. Daí é que a enteléquia humana constituía a faculdade
que pode apreender o Ser originário
de todas as coisas, pois o homem (e não a mulher-visão preconceituosa da
época), entre os diversos seres, é a personalidade capaz de se relacionar com e
conhecer as coisas no seu substrato mais elevado.
Em Platão não podemos descuidar das
formas poéticas e analógicas divinizadas de compreender e descrever a realidade
na sua real origem. Esse é um elemento marcante do platonismo que advém até nossos tempos. Se em Platão temos tal
ligação como o Sagrado, compreendido ideal e supra-sensivelmente, em
Aristóteles não podemos deixar de constatar tamanha ligação com o Sagrado,
porém menos constante que a do seu mestre, Platão. Para Aristóteles o
conhecimento é dadiva dos deuses, portanto é algo divino e sacro que os homens
podem possuir. Isso faz o homem semelhante ao deus grego. Na ordem metafísica das coisas existe o motor imóvel que ele chega a chamar de deus, que move todas as coisas e
inclusive a outros motores auxiliares, as constelações esféricas e os demais
seres, sem sair de si e sem mover um dedo se quer. Abaixo desse princípio Sagrado,
em algum lugar da hierarquia metafísica estão os deuses. E assim se manifesta
esse vínculo com o Divino.
Em Santo Agostinho esse vínculo com o Sagrado
atinge uma orientação particular, isto é, Cristã. Deus como Sagrado é o
fundamento da existência, vivencia e vitalidade de todas as coisas. A pessoa
humana é o ser particular que possui características diferenciais na hierarquia
do criado: a razão, a inteligência e a fé.
Neste pensador a realidade é apreendida partir de uma essência sagrada una e trina, que de modo comunitário e por
vontade amorosa, cria todas as coisas e concede a todas as coisas a sua verdadeira
essência e felicidade, quando elas se voltar para o seu Criador, pela
contemplação e comunhão sagrada.
Em Pico Della Mirandola a experiência
com o Sagrado transcende as barreiras da instituição Igreja Católica e do tempo
histórico. É a força sagrada de Deus que ilumina e conduz até a felicidade ou paz teológica todas as pessoas, por diversos caminhos e diversos
estágios histórico-culturais e místicos da vida. Por meio dessa ação sagrada de
Deus, a humanidade até certo ponto não se contradiz ou se nega, mas entra em concordância com uma mesma Verdade,
Deus, o BELO de todos os seres belos.
Hegel não segue a dinâmica da harmonia
comum pela qual caminha a humanidade e as religiões, como sustentou Pico, porém
sua experiência com o Sagrado em um sentido filosófico vai além de uma
convergência para Deus. É o próprio Espírito
que se manifesta na História humana, onde ele expressa a consciência de si mesmo, por um processo
dialético de desvelamento e autosuperação. É a experiência do Espírito que
promove um eterno conhecimento e a exuberância de si, por meio da dinâmica da
Natureza, da família, da sociedade e do Estado, sendo que este último é o
estágio mais apurado do Espírito. Esse Espírito ganha expressividade em três
formas distintas e até certo ponto harmônicas da vida humana: na Religião, na
Filosofia e na Arte.
Se Hegel se pautou numa dinâmica
circular desenvolvimentista de Espírito, Giambattista Vico fez um percurso
diferente. A experiência com o Sagrado se tornou a parte de uma Nova Ciência da vida civil, isto é, de todos os povos e nações, desde seus primeiros
passos. Trata-se portanto de observar a
relação da Humanidade com o Sagrado a partir de uma experiência pré-reflexiva,
onde as faculdades do entendimento estão por se formar. A experiência do
Sagrado compreendida desde o estado de barbárie humana ganha seus traços nas
quatro religiões humanas em que a figura
da deidade é o meio para a humanidade bárbara, imersa nos sentidos (a fantasia,
a imaginação e o engenho) se tornar Humana. Tal percurso se faz mediado e
ordenado pela Providência divina, que
sempre ilumina o homem para ser pessoa humana e conservar a si e sua geração,
enquanto tal.
Depois desse rápido recorte histórico,
pode-se constatar que a Filosofia e o Sagrado, na sua expressão e propriedades
características variadas, não são ou estão dissociados, mas constituem uma
ligação fundamental sem a qual não é possível se refletir sobre a realidade e a
totalidade, sem cair no risco de perder a inspiração e experiência primeira, além de reduzir a Filosofia a pura reflexão materialista. A Filosofia não pode estar dissociada
das outras ciências humanas e exatas, pois essa completude totalitária era a
sua conjuntura fundamental.
Desde a crise humana promovida com os
males cometidos pela revolução tecnológica e industrial, e a ditadura militar,
pode-se constatar que as ciências diversas passaram a se fragmentar e se
dividir dramáticamente. Algumas ciências passaram a ter maior destaque em
detrimento de outras. Isso aconteceu pelos interesses dominantes de cada época.
Como desde o século XVIII a tecnologia e informática vem sendo o interesse
determinante da camada dominante de muitos países, é lógico percebermos como algumas
ciências foram relegada ao abandono ou até desprezo.
No Brasil o pouco valor que a Filosofia
tem é um exemplo disso. Nas escolas,
Faculdades ou Universidades públicas e particulares esta disciplina cursiva é a
menos valorizada. E a que infelizmente, para muitos, deveria ser a que menos exigisse
do aluno ou estudante universitário. Fica em questão por que tanto descaso para financiar e promover tal ensino filosófico?
A função que mais me toca na Filosofia é a criação de uma consciência esclarecida e que apreenda o máximo, que puder, a
realidade, nas suas contradições possíveis de serem mudadas. Essa função tem em
vista a dignidade humana. Porém, será que o Estado, as grandes Instituições
de educação estão querendo e promovendo isso, o suficiente? Porque será que a educação é muitas vezes a
menos valorizada? Quais forças estão determinando o descompasso e a hierarquização
das disciplinas?
Na Grécia a Filosofia era a mãe de todas
as ciências, hoje ela é promovida, por uma cultura persistente e ignorante,
como um saber para quem não quer nada na vida. Essa visão errônea foi e
continua sendo muitas vezes disseminada. Infelizmente a Filosofia ficou no
porão do ensino educativo. Daí é preciso conceber a tal Ciência divina a sua
vitalidade atual.
Se antes a Filosofia estava ligada
inseparavelmente com a Teologia hoje vemos a triste tentativa de separação e
desprezo das duas. O mercado tecnológico não promove a ligação e a valorização
das duas. Hoje perdemos muito nisso, pois se desvinculamos a Teologia da
Filosofia perdemos a fonte originária do conhecimento humano e do sentido mais
profundo da vida. A separação das duas é como andar sem uma das pernas. O corpo
não se sustenta.
Um grande exemplo que temos dessa
vitalidade da Filosofia com a Teologia está a Igreja Católica. O vínculo entre
essas duas Ciências é profético e sempre novo. Na Alegria do Evangelho e na Laudato
Si’, dentre outros documentos da Igreja, vemos o quanto de valor e
autenticidade existe no entrelaçamento entre esses dois saberes. Essa
originalidade faz com que a Humanidade reveja sua jornada e refaça os seus
caminhos para a plenificação do ser Humano e a sua abundante felicidade no
encontro com o Sagrado. Sem, mais delongas: o mundo precisa de questionar o
modo atual de vida que não dignifica o ser humano e encontrar novos caminhos
que não sejam apenas reflexão ou mudança aparente, mas um encontro com o sentido profundo da existência que se depara com
o Sagrado, o Absoluto, para a plenificação do Homem.
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