Dizer que Santo Afonso Maria de Ligório
(1696-1787), no percurso de sua vida, adquiriu todo um conhecimento elaborado
sobre a sexualidade humana, e que esse
tema, como contemporaneamente se observa nas diversas ciências (a psicologia e
psicanálise), foi tratado por ele com tanto esclarecimento e maturidade, seria
mentira e injustiça para com um santo homem, que viveu enraizado no seu tempo,
isto é, entre o século XVII e XVIII. Por outro lado, afirmar que o itinerário
da vida de Santo Afonso é totalmente desprovida de uma vivência sexual e noção
sobre isso, também seria um erro equivalente.
Entre as duas posturas, opostas e exageradas, soma-se um preconceito sobre o percurso de vida afonsiana com a temática da
sexualidade. Todavia, é possível termos uma compreensão plausível ou
equilibrada acerca da vida deste Santo com a questão da sexualidade. Isto é,
que Santo Afonso, no decorrer de sua vida, teve uma intuição e, mais
precisamente, uma vivência sexual que muitos desconhecem ou desprezam no tempo
atual, mas que foi significativa e fundamental para sua realização humana e
espiritual, assim como para o percurso inicial da Congregação do Santíssimo
Redentor.
Sem negar a visão tabuística, limitada e
repressiva que a sexualidade foi vivenciada, de modo geral, no seu tempo, observa-se
aqui alguns elementos que sinalizar uma
vivência dessa sexualidade em Santo
Afonso que contribuíram e enriqueceram a sua opção de vida religiosa,
celibatária e santa. Esses elementos estão integrados na sua vida e no modo
como experienciou a castidade. Porém, para chegarmos a este ponto faz-se
necessário duas observações iniciais.
A primeira observação preliminar que
podemos fazer é constatar que a sexualidade humana vai além da relação sexual
genital entre pessoas. Como bem sinalizou Martinez na nota de rodapé da obra Sexualidade e crescimento na vida sacerdotal
e religiosa (2005, p.16): “É importante ressaltar que a sexualidade é
diferente de genitalidade. A sexualidade é uma função do ser que está sempre
presente, do nascimento à morte, e que se expressa através do amor, da ternura,
dos afetos”. Um fator intrínseco da sexualidade é a questão do desejo, ou da vontade, que gera prazer, satisfação e realização
humana. A partir desse esclarecimento podemos encontrar os sinais dessa
vivência nos escritos e na vida de Ligório.
A segunda observação está no âmbito da
sexualidade em dois modos de vida cristã, a saber, na vida matrimonial e na
vida religiosa, virginal e celibatária. Se Marciano Vidal, na Sexualidade e Condição Homossexual na Moral
Cristã (2008, p.27) sustentou, que “tanto os casados como os celibatários
realizam o mistério de Cristo, que é, em unidade inseparável, mistério de amor
fecundo e de amor virginal”, podemos perceber que em Santo Afonso a vivência da sexualidade como amor virginal
ou celibatário é um testemunho profético até hoje, que não pode ser esquecido, mas
estimulado na radicalidade da vida religiosa redentorista.
O
primeiro e fundamental elemento que podemos detectar especificadamente na
vivência da sexualidade afonsiana é a sua Espiritualidade, pois foi a partir desta, discretamente, (isto é,
sem os olhos atentos do seu pai,) que ele norteou todas as suas escolhas,
prazeres, afetos e opção de vida. Desde jovem Santo Afonso desenvolveu esse
vínculo afetivo com Deus. As orações cotidianas, a piedade popular e a
frequência nos sacramentos sinalizam para este ponto crucial, sem o qual não é
possível perceber a orientação determinante da sexualidade afonsiana, a partir
de sua experiência Espiritual.
O
segundo elemento é o aspecto relacional de sua sexualidade. A relação de Santo Afonso com Deus, não é de
sujeito para objeto, mas de sujeito para com O Sujeito, O SAGRADO, Deus uno e
trino. Um Deus que fala ao coração e que caminha com ele. E no decorrer de sua
vida, lhe mostra que caminho fazer, para onde seguir. Nessa experiência Maria
tem sua importância, pois é visível, nos seus escritos, ele sempre recorrer
afetuosamente ao auxílio desta Senhora da Esperança (Cf. LIGÓRIO, 2014, p.38-39).
Só uma pessoa aberta e experimentada no Espírito é que consegue fazer essa
relação no âmbito da sexualidade. Quando Santo Afonso se tornou advogado os
ideais de sua conduta estavam inspirados dessa experiência relacional com Deus (Cf.
REY-MERMET, 1982, p.102-104). E isso podemos encontrar nas, aproximadamente, 9
horas que ele reservava durante o dia para fazer oração. A constante vida de
oração expressava em sua sexualidade essa intimidade com Deus. A disposição de
seu corpo e espírito, instrumentos e ornamentos oracionais interagia nessa
relação.
Se o aspecto anterior orientava sua
sexualidade numa comunhão com Deus, ela não se reduzia a um exclusivismo. Mas
ganhava sua expansão na relação com os familiares e, de modo particular, com os
pobres de Nápoles. Portanto, o terceiro
elemento que denota traços da vivencia dessa sexualidade estava no cuidado, na
compaixão, na caridade para com os mais necessitados. O auxílio no hospital dos incuráveis, a caridade para
com os mais necessitados e a constante oblação de amor nas missões da época,
tudo isso, era expressão ativa de sua
sexualidade que tinha como desejo e gosto profundo fazer a vontade de Deus e
encontrar-se com Cristo nos abandonados.
A
quarta forma de expressão de sua sexualidade pode ser encontrar na fundação de
sua Congregação. Trata-se por tanto da vida em comunidade. A aproximação evangélica e o trabalho comunitário
teve como fim a evangelização, porém não
tem como compreender tal trabalho sem um vínculo afetivo, como a amizade,
por menor que seja. Como é sabido, nosso pai, Afonso tinha escrúpulos para
consigo, pois em muitas situações era muito radical. Porém, podemos observar
que ele para com os outros era até mais brando, principalmente para com os mais
abandonados. Se a radicalidade da regra fazia parte da mentalidade da época,
por outro lado, a vivência com seus confrades apresenta esses resquícios de
fraternidade que é uma expressão da sexualidade humana. Isso se justifica no
fato de Santo Afonso, inspirado na experiência com Deus, querer uma Congregação
Apostólica-Missionária e não contemplativa, portanto, voltada para o cuidado e
redenção dos outros excluídos e abandonados.
O
quinto elemento é encontrado na sua criatividade evangélica. Como diz
Rey-Mermet: “Em desenho, pintura, arquitetura, Afonso teve um êxito
maravilhoso” (Ibidem, p.86). Além dessas artes, Ligório também era escritor, compositor
e pianista, dentre outros tralentos.
Em todas essas artes é possível encontrar sinais dessa sexualidade que atinge
seu prazer e satisfação enquanto relação intima com Deus e provedora frutífera
de evangelização. Em tais instrumentos artísticos encontramos uma riqueza de
valores, virtudes, desejos e sonhos que constituem aspectos da sexualidade
humana em Santo Afonso como a ternura, o zelo, a sensibilidade afetiva, a
meditação e sensibilidade a ação divina.
Tai coisas não só enriqueciam os outros que acolhiam esses talentos, mas
a sua própria pessoa humana e espiritual.
O
último elemento a destacar como elemento mais profundo de sua sexualidade é o
amor. Em boa parte de suas obras o amor para com
Deus e para a salvação da humanidade é uma constante. Não se trata portanto de
uma ideia e nem de um sentimento, mas da realidade essencial do amor na
experiência divina e humana: a entrega
oblativa. Deus é amor, Jesus é a real, humana e mais concreta realização e
expressão do amor do Pai. Este elemento é tão profundo e determinante em sua
vida que promoveu em Santo Afonso uma experiência nova e inigualável: a de um
Deus que é louco de amor pela humanidade a ponto de sair de Si, de sua condição
divina, adentrar na condição humana, assumir a nossa fraqueza e morte, dar-nos
a possibilidade da eternidade e estar sob o serviço da humanidade, na condição
de pão (Eucaristia). Essa experiência com O AMOR, e de Amor é expressa nas Visitas ao Santíssimo Sacramento e a Virgem
Maria (Cf. LIGÓRIO, 2014, p.38-39):
“Grave-me, como selo em seu coração,
como selo em seu braço; pois o amor é forte, é como a morte! Cruel como o
abismo é a paixão. Suas chamas são chamas de fogo, uma faísca de Javé! As águas
da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo. Quisera alguém
dar tudo o que tem para comprar o amor...seria tratado com desprezo’(Ct 8, 6-7)”.
Para Santo Afonso “Jesus na Eucaristia é esta chama de Deus que incendeia os
corações no amor. [...] O próprio Jesus, ao anunciar a hora de sua paixão e
morte, a descreve como um fogo que abrasa toda a terra [...]” (Ibidem.).
Essa experiência de Amor e com O AMOR o
levava a desejar profundamente Deus e a dizer à Jesus: “Senhor Jesus,
inflama-nos em teu amor e faz com que pensemos só em ti; que nada mais
ambicionemos além de ti. [...] Ó Verbo Divino, na encarnação (Fl 2, 6-7),
paixão e Eucaristia (Jo 13, 1) te aniquilaste e sacrificaste por amor a nós,
como nos consagramos totalmente a ti? Quanto a ti, Pai de bondade, aceita
nossos louvores, que brotam da entrega de nossas vidas e se unam à oferenda de
teu Filho Jesus (Hb 13, 15)” (Cf. Ibidem, p.72-73).
Portanto, apesar das limitações do tempo
e da mentalidade da época de Santo Afonso, é possível encontrar sinais que
expressam a sexualidade afonsina como a entendemos hoje. Neste sentido, essa
riqueza deve inspirar a vida religiosa na realização humana afetiva-sexual no
modo especial de viver, tão especial como a vida matrimonial e mais amplo do
que os preconceitos de tempos passados. Neste sentido podemos dizer que a
vivência afetivo-sexual-afonsiana é exemplar para nós, Religiosos
Redentoristas. Isso não nos inclui em elementos próprios da opção de vida
matrimonial: a relação sexual genital e a frutificação de tal relação (os
filhos), porém, tal impasse não deve ser considerado como lástima ou negação de
nossa sexualidade humana, e muito menos de nosso ser sexual, mas apenas alguns
elementos que são abdicados pela opção de vida religiosa como oblação em vista
do Reino, pelo chamado de Jesus e pelo seu exemplo de vida virginal e casta. A
experiência profunda do amor a quem nos amou e nos chamou por primeiro continua
sendo o elemento mais importante e motivador da nossa sexualidade e da opção de
vida respondida por nós. Neste modo especial de viver nossa sexualidade somos
desafiados a ampliar o nosso horizonte existencial, humano e sexual para a
plenificação da proposta redentora. Que Deus, em seu Filho Jesus continue sendo
nosso caminho, verdade e vida.
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