quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Santo Afonso e a Sexualidade: sinais de uma vida e espiritualidade redentora.



Dizer que Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1787), no percurso de sua vida, adquiriu todo um conhecimento elaborado sobre a sexualidade humana, e que esse tema, como contemporaneamente se observa nas diversas ciências (a psicologia e psicanálise), foi tratado por ele com tanto esclarecimento e maturidade, seria mentira e injustiça para com um santo homem, que viveu enraizado no seu tempo, isto é, entre o século XVII e XVIII. Por outro lado, afirmar que o itinerário da vida de Santo Afonso é totalmente desprovida de uma vivência sexual e noção sobre isso, também seria um erro equivalente.

Entre as duas posturas, opostas e exageradas, soma-se um preconceito sobre o percurso de vida afonsiana com a temática da sexualidade. Todavia, é possível termos uma compreensão plausível ou equilibrada acerca da vida deste Santo com a questão da sexualidade. Isto é, que Santo Afonso, no decorrer de sua vida, teve uma intuição e, mais precisamente, uma vivência sexual que muitos desconhecem ou desprezam no tempo atual, mas que foi significativa e fundamental para sua realização humana e espiritual, assim como para o percurso inicial da Congregação do Santíssimo Redentor.   

Sem negar a visão tabuística, limitada e repressiva que a sexualidade foi vivenciada, de modo geral, no seu tempo, observa-se aqui alguns elementos que sinalizar uma vivência dessa sexualidade em Santo Afonso que contribuíram e enriqueceram a sua opção de vida religiosa, celibatária e santa. Esses elementos estão integrados na sua vida e no modo como experienciou a castidade. Porém, para chegarmos a este ponto faz-se necessário duas observações iniciais.

A primeira observação preliminar que podemos fazer é constatar que a sexualidade humana vai além da relação sexual genital entre pessoas. Como bem sinalizou Martinez na nota de rodapé da obra Sexualidade e crescimento na vida sacerdotal e religiosa (2005, p.16): “É importante ressaltar que a sexualidade é diferente de genitalidade. A sexualidade é uma função do ser que está sempre presente, do nascimento à morte, e que se expressa através do amor, da ternura, dos afetos”. Um fator intrínseco da sexualidade é a questão do desejo, ou da vontade, que gera prazer, satisfação e realização humana. A partir desse esclarecimento podemos encontrar os sinais dessa vivência nos escritos e na vida de Ligório.

A segunda observação está no âmbito da sexualidade em dois modos de vida cristã, a saber, na vida matrimonial e na vida religiosa, virginal e celibatária. Se Marciano Vidal, na Sexualidade e Condição Homossexual na Moral Cristã (2008, p.27) sustentou, que “tanto os casados como os celibatários realizam o mistério de Cristo, que é, em unidade inseparável, mistério de amor fecundo e de amor virginal”, podemos perceber que em Santo Afonso a vivência da sexualidade como amor virginal ou celibatário é um testemunho profético até hoje, que não pode ser esquecido, mas estimulado na radicalidade da vida religiosa redentorista.

O primeiro e fundamental elemento que podemos detectar especificadamente na vivência da sexualidade afonsiana é a sua Espiritualidade, pois foi a partir desta, discretamente, (isto é, sem os olhos atentos do seu pai,) que ele norteou todas as suas escolhas, prazeres, afetos e opção de vida. Desde jovem Santo Afonso desenvolveu esse vínculo afetivo com Deus. As orações cotidianas, a piedade popular e a frequência nos sacramentos sinalizam para este ponto crucial, sem o qual não é possível perceber a orientação determinante da sexualidade afonsiana, a partir de sua experiência Espiritual.

O segundo elemento é o aspecto relacional de sua sexualidade. A relação de Santo Afonso com Deus, não é de sujeito para objeto, mas de sujeito para com O Sujeito, O SAGRADO, Deus uno e trino. Um Deus que fala ao coração e que caminha com ele. E no decorrer de sua vida, lhe mostra que caminho fazer, para onde seguir. Nessa experiência Maria tem sua importância, pois é visível, nos seus escritos, ele sempre recorrer afetuosamente ao auxílio desta Senhora da Esperança (Cf. LIGÓRIO, 2014, p.38-39). Só uma pessoa aberta e experimentada no Espírito é que consegue fazer essa relação no âmbito da sexualidade. Quando Santo Afonso se tornou advogado os ideais de sua conduta estavam inspirados dessa experiência relacional com Deus (Cf. REY-MERMET, 1982, p.102-104). E isso podemos encontrar nas, aproximadamente, 9 horas que ele reservava durante o dia para fazer oração. A constante vida de oração expressava em sua sexualidade essa intimidade com Deus. A disposição de seu corpo e espírito, instrumentos e ornamentos oracionais interagia nessa relação.

Se o aspecto anterior orientava sua sexualidade numa comunhão com Deus, ela não se reduzia a um exclusivismo. Mas ganhava sua expansão na relação com os familiares e, de modo particular, com os pobres de Nápoles. Portanto, o terceiro elemento que denota traços da vivencia dessa sexualidade estava no cuidado, na compaixão, na caridade para com os mais necessitados. O auxílio no hospital dos incuráveis, a caridade para com os mais necessitados e a constante oblação de amor nas missões da época, tudo isso, era expressão ativa de sua sexualidade que tinha como desejo e gosto profundo fazer a vontade de Deus e encontrar-se com Cristo nos abandonados.

A quarta forma de expressão de sua sexualidade pode ser encontrar na fundação de sua Congregação. Trata-se por tanto da vida em comunidade. A aproximação evangélica e o trabalho comunitário teve como fim a evangelização, porém não tem como compreender tal trabalho sem um vínculo afetivo, como a amizade, por menor que seja. Como é sabido, nosso pai, Afonso tinha escrúpulos para consigo, pois em muitas situações era muito radical. Porém, podemos observar que ele para com os outros era até mais brando, principalmente para com os mais abandonados. Se a radicalidade da regra fazia parte da mentalidade da época, por outro lado, a vivência com seus confrades apresenta esses resquícios de fraternidade que é uma expressão da sexualidade humana. Isso se justifica no fato de Santo Afonso, inspirado na experiência com Deus, querer uma Congregação Apostólica-Missionária e não contemplativa, portanto, voltada para o cuidado e redenção dos outros excluídos e abandonados.

O quinto elemento é encontrado na sua criatividade evangélica. Como diz Rey-Mermet: “Em desenho, pintura, arquitetura, Afonso teve um êxito maravilhoso” (Ibidem, p.86). Além dessas artes, Ligório também era escritor, compositor e pianista, dentre outros tralentos. Em todas essas artes é possível encontrar sinais dessa sexualidade que atinge seu prazer e satisfação enquanto relação intima com Deus e provedora frutífera de evangelização. Em tais instrumentos artísticos encontramos uma riqueza de valores, virtudes, desejos e sonhos que constituem aspectos da sexualidade humana em Santo Afonso como a ternura, o zelo, a sensibilidade afetiva, a meditação e sensibilidade a ação divina.  Tai coisas não só enriqueciam os outros que acolhiam esses talentos, mas a sua própria pessoa humana e espiritual.

O último elemento a destacar como elemento mais profundo de sua sexualidade é o amor.  Em boa parte de suas obras o amor para com Deus e para a salvação da humanidade é uma constante. Não se trata portanto de uma ideia e nem de um sentimento, mas da realidade essencial do amor na experiência divina e humana: a entrega oblativa. Deus é amor, Jesus é a real, humana e mais concreta realização e expressão do amor do Pai. Este elemento é tão profundo e determinante em sua vida que promoveu em Santo Afonso uma experiência nova e inigualável: a de um Deus que é louco de amor pela humanidade a ponto de sair de Si, de sua condição divina, adentrar na condição humana, assumir a nossa fraqueza e morte, dar-nos a possibilidade da eternidade e estar sob o serviço da humanidade, na condição de pão (Eucaristia). Essa experiência com O AMOR, e de Amor é expressa nas Visitas ao Santíssimo Sacramento e a Virgem Maria (Cf. LIGÓRIO, 2014, p.38-39):

“Grave-me, como selo em seu coração, como selo em seu braço; pois o amor é forte, é como a morte! Cruel como o abismo é a paixão. Suas chamas são chamas de fogo, uma faísca de Javé! As águas da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo. Quisera alguém dar tudo o que tem para comprar o amor...seria tratado com desprezo’(Ct 8, 6-7)”. Para Santo Afonso “Jesus na Eucaristia é esta chama de Deus que incendeia os corações no amor. [...] O próprio Jesus, ao anunciar a hora de sua paixão e morte, a descreve como um fogo que abrasa toda a terra [...]” (Ibidem.).

Essa experiência de Amor e com O AMOR o levava a desejar profundamente Deus e a dizer à Jesus: “Senhor Jesus, inflama-nos em teu amor e faz com que pensemos só em ti; que nada mais ambicionemos além de ti. [...] Ó Verbo Divino, na encarnação (Fl 2, 6-7), paixão e Eucaristia (Jo 13, 1) te aniquilaste e sacrificaste por amor a nós, como nos consagramos totalmente a ti? Quanto a ti, Pai de bondade, aceita nossos louvores, que brotam da entrega de nossas vidas e se unam à oferenda de teu Filho Jesus (Hb 13, 15)” (Cf. Ibidem, p.72-73).

Portanto, apesar das limitações do tempo e da mentalidade da época de Santo Afonso, é possível encontrar sinais que expressam a sexualidade afonsina como a entendemos hoje. Neste sentido, essa riqueza deve inspirar a vida religiosa na realização humana afetiva-sexual no modo especial de viver, tão especial como a vida matrimonial e mais amplo do que os preconceitos de tempos passados. Neste sentido podemos dizer que a vivência afetivo-sexual-afonsiana é exemplar para nós, Religiosos Redentoristas. Isso não nos inclui em elementos próprios da opção de vida matrimonial: a relação sexual genital e a frutificação de tal relação (os filhos), porém, tal impasse não deve ser considerado como lástima ou negação de nossa sexualidade humana, e muito menos de nosso ser sexual, mas apenas alguns elementos que são abdicados pela opção de vida religiosa como oblação em vista do Reino, pelo chamado de Jesus e pelo seu exemplo de vida virginal e casta. A experiência profunda do amor a quem nos amou e nos chamou por primeiro continua sendo o elemento mais importante e motivador da nossa sexualidade e da opção de vida respondida por nós. Neste modo especial de viver nossa sexualidade somos desafiados a ampliar o nosso horizonte existencial, humano e sexual para a plenificação da proposta redentora. Que Deus, em seu Filho Jesus continue sendo nosso caminho, verdade e vida.



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