No decorrer
da História da Igreja Católica, da década de 80 até a Contemporaneidade, o
profetismo ganhou novo dinamismo e novos desafios em vista das mudanças do
mundo moderno, mudanças estas como a evolução tecnológica-virtual e o
desenvolvimento científico. Nesse percurso o profetismo teve avanços e
retrocessos, ora com uma práxis político-social relegada ao ativismo, ora com
um espiritualismo sem historicidade. Essas duas correntes proféticas
extremistas ainda se apresentam até hoje, porém, para se ter uma maior
atualização e autenticidade profética, pode-se dizer que o caminho mais
plausível para o contemporâneo profetismo não seria o das duas correntes
citadas, mas um caminho intermediário, que não tivesse seus fundamentos e razão
de “ser” no materialismo, e muito menos em um espiritualismo abortado, isto é,
que estivesse a quem da vida, nas suas diversas manifestações.
Neste
sentido, salvo as exceções, o caminho mais significativo e marcante do
profetismo na Contemporaneidade passa por uma experiência espiritual
cristológica-pneumática autentica, isto é, evangélica, renovada, impelida pela
força divina do Espírito. Todavia, esse profetismo renovado precisa cotidianamente
estar integrado com uma concretude história, a partir da realidade (mundo?) atual, para que se tenha uma compreensão evangélica dos sinas dos tempos
e consiga responder profeticamente as novas exigências da Contemporaneidade. Dentre
outras pessoas características desse profetismo, considera-se o Papa Francisco
como personalidade marcante desse novo percurso.
De acordo
com a temática titular, com base nos escritos do Papa Francisco, traça-se
algumas linhas indicativas desse profetismo na Contemporaneidade, que caminha
no presente sem perder a sua
inspiração evangélica. Devido a amplitude da proposta, o artigo se divide em
nove temas na ordem alfabética, que não necessita necessariamente de seguir a
ordem de apresentação. Tais temas, a saber: a) Linha
Gerais de abordagem profética: Justiça e Misericórdia; b) Motivações
proféticas para a Vida Religiosa Consagrada; c) Motivação profética para os
leigos em comunhão com a Vida Religiosa; d) Profetismo: leitura dos sinais dos
tempos na Contemporaneidade; e) Redirecionamento profético: reencontro, conversão,
saída e superação continua; f) Anúncio profético: a Boa-Nova; g) Denúncia
profética: degradação humana e degradação ecológica; h) Sintomas e causas da
degradação humano-ecológica; e i) Linhas proféticas de ação, foram ordenados a partir
da pretensão temática, na tentativa de desenvolver linhas de reflexão e
caminhos para o profetismo na Contemporaneidade.
a)
Linha
Gerais de abordagem profética: Justiça e Misericórdia.
Em linhas
gerais pode-se afirmar que o profetismo é caracterizado por três conceitos
essenciais- anuncio, testemunho e denúncia- sem os quais corre-se o risco de
perder sua originalidade e essência. Em Francisco tais conceitos encontram-se como
realidade concreta, portanto, vivida. Todavia, a particularidade da abordagem
profética na figura de Francisco está em duas palavras que se complementam de
modo processual: a Justiça e a Misericórdia. Como ele apresenta na Misericordiae Vutus para abertura do Ano
da Misericórdia (2015, p. 23): “[...], não será inútil recordar a relação entre
justiça e misericórdia. Não são dois
aspectos em contraste entre si, mas duas dimensões duma única realidade que se
desenvolvem gradualmente até atingir o seu clímax na plenitude do amor”. Essas
duas palavras são significativas no atual itinerário profético porque elas
tratam do “[...] tempo de regresso ao essencial, para cuidar das fraquezas e
dificuldades dos nossos irmãos” (Ibidem, p. 13). Ora, conceituando processualmente tais
palavras, Francisco apresenta com clareza o que é possível entender
profeticamente por Misericórdia e Justiça. Por Misericórdia, se entende que:
[...] é a
palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o ato
último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei
fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o
irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia é o caminho que une Deus e
o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre,
apesar da limitação do nosso pecado. (Ibidem, p. 5-6)
Essa
concepção, marca da profecia, tem suas raízes evangélicas, que até certo ponto
ficaram esquecidas na História. Porém, Francisco retoma tal historicidade desde
o Concílio Vaticano, quando a Igreja sentiu a necessidade de dar os primeiros
passos renovados da sua caminhada evangélica. “Os padres, reunidos no Concílio,
tinham sentido forte, como um verdadeiro sopro do Espírito, a exigência de
falar de Deus aos homens do seu tempo de modo mais compreensível” (Ibidem, p. 7).
Ao contrário do que muitos pensam, na perspectiva profética, Francisco não fala
de uma ideia, ou uma palavra vazia de sentido, mas algo correto e vivido desde
o coração de Deus:
Em suma, a
misericórdia de Deus não é uma ideia abstrata mas uma realidade concreta, pela
qual Ele revela o seu amor como o de um pai e de uma mãe que se comovem pelo
próprio filho até o mais íntimo de suas vísceras. É verdadeiramente caso para
dizer que se trata de uma amor “visceral”. (Ibidem, p. 9)
Deste modo
a Misericórdia atinge sua plena e mais compreensível expressão em Jesus Cristo.
Pois ele é o rosto de Deus misericordioso. É na espiritualidade cristológica que
o profetismo se atualiza. Na observância de Jesus, a partir de suas palavras e
atos, na relação com as pessoas. Nessa relação Jesus “manifesta algo de único e
irrepetível. Os sinal que realiza, sobretudo para com os pecadores, as pessoas
pobres, marginalizadas, doentes e atribuladas, decorrem sob o signo da
misericórdia. Tudo n’Ele fala de Misericórdia. (Ibidem, 10-11). Assim, a
Misericórdia apresenta sua inspiração profética na pessoa de Jesus que em
Nazaré, no sábado, ler a passagem do profeta Isaias, para anunciar um tempo
novo, de graça:
“O espírito do Senhor está sobre
mim, porque o Senhor me ungiu; enviou-me para levar a boa nova aos que sofrem,
para curar os desesperados, para anunciar a libertação aos exilados e a
liberdade aos prisioneiros; para proclamar um ano de misericórdia do Senhor” (Is
61, 1-2). “Um ano de misericórdia”: isto é o que o Senhor anuncia e que nós
desejamos viver. (Ibidem, p. 19)
As
observações sobre a Misericórdia, característica da abordagem profética
franciscana, se justificam no tempo atual, tempo este em que “A palavra e o
conceito de misericórdia parece causar mal-estar ao homem” (Ibidem, p. 14). Ora
a “mentalidade contemporânea, talvez mais que a do homem do passado, parece
opor-se ao Deus de misericórdia e, além disso, entende a separar da vida e a
tirar do coração humano a própria ideia de misericórdia” (Ibidem, p. 14). Com a
evolução tecnológica da ciência a humanidade adquiriu uma potencialidade que a
desviou de sua responsabilidade e essência frente ao domínio ético e evangélico
da terra. Isso fez ela se afastar de suas natureza essencial: a misericórdia, a
compaixão. Desse modo é preciso resgatar essa essência humanitária e divina
para a humanidade não se perder no seu caminho.
Junto a
Misericórdia está a Justiça:
A Justiça é um
conceito fundamental para sociedade civil, normalmente quando se faz referência
a uma ordem jurídica através da qual se aplica a lei. Por justiça entende-se
também que a cada um deve ser dado o que lhe é devido. Na Bíblia, alude-se
muitas à justiça divina, e a Deus como juiz. Habitualmente é entendida como a
observância integral da Lei e o comportamento de todo bom judeu conforme os
mandamentos dados por Deus. (Ibidem, p. 23)
Porém
essa concepção perdeu a sua força profética porque não se atualizou as
exigências dos novos tempos e não alcançou o sentido de Justiça original. O
resultado do conceito de Justiça como cumprimento da Lei foi o legalismo, tão persistentemente motivado
pelos saduceus, fariseus e doutores da Lei, na época de Jesus, como por muitos
do poder político na Contemporaneidade. Ora a abordagem franciscana apresenta
um novo valor para a Justiça. Não mais uma justiça que é comprimento da Lei
pela Lei. Assim ele retoma a inspiração bíblica ao afirmar que “diante da visão
de uma justiça como mera observância da lei que julga dividindo as pessoas em
justo e pecadores, Jesus procura mostrar o grande dom da misericórdia” (Ibidem,
p. 23). Nesse sentido a justiça de Deus se identifica com a Misericórdia.
Porque é uma justiça que promove a dignidade humana. Neste sentido é que,
segundo Francsico, São Paulo modificou o seu conceito de Justiça como superação
da Lei pela Fé:
A sua
compreensão da justiça muda radicalmente: Paulo agora põe no primeiro lugar a
fé, e já não a lei. Não é a observância da lei que salva, mas a fé em Jesus
Cristo, que, pela sua morte e ressurreição, traz a salvação com a misericórdia
que justifica. A justiça de Deus torna-se agora a libertação para quantos estão
oprimidos pela escravidão do pecado e todas as suas consequências. A justiça de
Deus é o seu perdão [...]. (Ibidem, p.24)
Assim
é possível compreender que a justiça tem uma práxis revolucionária que culmina
no amor. “A misericórdia não é contrária a justiça” (Ibidem.), mas a
misericórdia é complemento e plenitude da justiça. Porque: “A justiça por si só
não é suficiente, e a experiência mostra que, limitando-se a apelar para ela,
corre-se o risco de destruí-la. Por isso, Deus com a misericórdia e o perdão,
passa além da justiça” (Ibidem, p.25). E isso não nega a justiça.
Antes pelo contrário!
Quem erra deve descontar a pena; só que isto não é o fim, mas o início da
conversão, porque se experimenta a ternura do perdão. Deus não rejeita a
justiça. Ele a engloba e a supera em um evento superior em que se experimenta o
amor, que está na base de uma verdadeira justiça. (Ibidem.)
Portanto,
essas duas abordagem não são contraditórias, mas complementares. A Justiça
precisa superar a lei e ser sinal de redenção para as pessoas. Na medida em que
a Justiça vai contra a dinâmica do evangelho, a vida e a dignidade humana, ela
perde o seu verdadeiro sentido. Isso não implica desconsiderar os erros
humanos, mas uma caminho de conversão humana que conduza a pessoa para a
experiência do amor. Neste sentido é que se chega na Misericórdia e que é
possível resgatar o sentido original do profetismo como uma busca pela
dignidade e sacralidade humana para que a pessoa se reconcilie consigo e com
Deus. Esses dois conceitos são marcas do profetismo contemporâneo.
b)
Motivações
proféticas para a Vida Religiosa Consagrada.
É de
conhecimento tradicional, na História da Igreja, que a Vida Religiosa
Consagrada surgem categoricamente após os período dos Grandes Mártires da
Igreja, isto é, nas proximidades do século III e IV, depois que a Igreja se
ligou aos Estado e poderio Constatinopolitano e tornou-se religião oficial de
Roma. Ora, com essas mudanças os cristãos não precisavam mais se esconder nas
cavernas, arriscar-se pela fé, e nem dar a vida como profeticamente aconteceu com
alguns apóstolos e mártires, pelo testemunho de Cristo. Assim o Cristianismo se
uniu fortemente ao Estado e a vida cristã assumiu a dinâmica da vida civil
comum, sem o radicalismo de antes.
Deste modo
os fundamentos do Cristianismo e o seu modo de vida não diferenciou-se muito da
vida social civil, com seus prestígios, suas festas, regalias, culturas e modo
de vida. É nesse contexto que desponta a Vida Religiosa Consagrada como uma
escolha radical por Jesus Cristo, distanciando-se do centro das cidades e da
vida comum. Eram os Padres e a Virgens que iam para o deserto, afim de fugir do
conformismo e dos apegos de uma vida “mundana”, isto é, marcada pelas
facilidades do ter, pelas vaidades do ser, e pela ganância do poder. Ora essa
fuga para o deserto foi uma forma de profetismo
que não concordava com o status quo e
buscava um novo modo de viver o batismo, na sua fidelidade. Daí é que surgem na
Igreja a Vida Religiosa Consagrada como sendo essencialmente profética. Essa é
sua essência e razão de ser, pois a profecia é uma radical opção por Jesus
Cristo e a concretização de seu Reino, de igualdade, liberdade, fraternidade,
amor, paz e justiça, dentre outros predicados que é possível encontrar.
Com o
decorrer do tempo a Vida Religiosa continuou manifestando seu testemunho
profético, ora com altos e baixos. Porém, ela está passando por um processo de
transformação, desde o Concílio Vaticano II. E seu desafio profético precisa
ser continuado e atualizado para a Contemporaneidade. Apesar de se ter muitas
pessoas que são sinais proféticos nos tempos atuais, não se pode desconsiderar
algumas indicações do Papa Francisco úteis para a Vida Religiosa no nosso
tempo. Pensando justamente nisso é que na Carta
Apostólica ele fala ÀS PESSOAS CONSAGRADAS (2014). Nessa Carta é possível
encontrar motivações proféticas para a Vida Religiosa Consagrada.
A primeira
orientação está em retomar as origens profético-históricas da Vida Religiosa.
Um “olhar com gratidão o passado. Cada Instituto provém de uma rica histórica
carismática. Nas suas origens, está presente a ação de Deus que, no seu
Espírito, chama algumas pessoas para seguirem de perto a Cristo” (FRANCISCO,
2014, p.7). O revisar as fontes não é para ficam num saudosismo dos tempos
antigos e nem para fazer arqueologia histórica,
[...]mas de
percorrer o caminho das gerações passadas para nele captar a centelha
inspiradora, os ideais, os projetos, os valores que as moveram, a começar dos
fundadores, das fundadoras e das primeiras comunidades. É uma forma também de
tomar consciência de como foi vivido o carisma ao longo da história, que
criatividade desencadeou, que dificuldades teve de enfrentar e como foram
superadas. (Ibidem, p. 8)
Deste modo
é possível ter sentido de pertença das raízes históricas da Vida Religiosa para
continuar essa profecia nos novos desafios que advém pela frente. Se a visa
religiosa teve suas regras como norte de evangelização e profetismo, não se
pode esquecer que para “os fundadores e fundadoras, a regra em absoluto foi o
Evangelho; qualquer regra pretendia apenas ser expressão do Evangelho e
instrumento para o viver em plenitude” (Ibidem, p. 9). Neste sentido a
motivação profética na Vida Religiosa precisa ser o Cristo, e toda a profecia
precisa estar inspirada na experiência com Ele, no hoje da vida.
A pergunta que
somos chamados a fazer neste Ano é se e como nos deixamos, também nós,
interpelar pelo Evangelho; se este é verdadeiramente o vade-mécum para a vida
de cada dia e para as opções que somos chamados a fazer. Isto é exigente e pede
para ser vivido com radicalidade e sinceridade. Não basta lê-lo (...), nem
basta meditá-lo (...); Jesus pede-nos para pô-lo em prática, para viver as suas
palavras. Jesus- devemos perguntar-nos
ainda- é verdadeiramente o nosso primeiro e único amor, como nos propusemos
quando professamos os nossos votos? (Ibidem, p.10)
A
revisão sobre a Missão Religiosa é uma constante para atualizar o seu
profetismo. A História dos profetas bíblicos mostra que cada realidade
apresentava a sua exigência, por isso que cada profeta apresenta um tipo de denúncia
e um tipo de resposta profética para cada situação. Deste modo na
Contemporaneidade, com a globalização e a revolução tecnológica, as realidades
se tornam mais complexas e se modificam com uma velocidade maior. Daí surge a
necessidade de atualização da Missão que nos foi confiada, da fidelidade
religiosa, e o renovado amor aqueles aquém Jesus nos envia por primeiro, a
saber, os que estão nas periferias
existenciais.
O Ano da Vida
Consagrada questiona-nos sobre a fidelidade à missão que nos foi confiada. Os
nossos serviços, as nossas obras, a nossa presença correspondem àquilo que o
Espírito pediu aos nossos fundadores, sendo adequados para alcançar as suas
finalidades na sociedade e na Igreja atual? Há algo que devemos mudar? Temos a
mesma paixão pelo nosso povo, solidarizamo-nos com ele até o ponto de partilhar
as suas alegrias e sofrimentos, a fim de podermos compreender verdadeiramente
as suas necessidades e contribuir com a nossa parte para lhes dar resposta?
(Ibidem, p. 11)
O novo
caminho profético na Vida Religiosa, apresentado por Francisco, requer uma
abertura para a relação com o outro, para o testemunho profético da vida em
comunidade, semelhante aos doze apóstolos. Após a vinda de Cristo eles anunciaram
com grande paixão a esperança do Reino concretizada pela paixão, morte e
ressureição de Jesus. A luta pelo Reino continua, porém tal luta é em vista do
que Cristo nos chamou a fazer: anunciar que Deus se encarnou, que a salvação
entrou na História Humana, que a felicidade já se realiza com a vinda de Jesus,
mas que o seu Reino de amor precisa se expandir a fim de restaurar a dignidade
humana, refazer os caminhos mal feitos, restaurar a vida, denunciar um mundo
contrário ao projeto de Deus e lutar para o resgate dos desfavorecidos. Para
tal fim Francisco convida os religiosos a viverem com paixão o presente:
Viver com
paixão o presente significa tornar-se “perito em comunhão”, ou seja,
“testemunhas e artífices daquele ‘projeto de comunhão’ que está no vértice da
história do homem segundo Deus”. Numa sociedade marcada por conflito,
convivência difícil entre culturas diversas, prepotência sobre os mais fracos,
desigualdade, somos chamados a oferecer um modelo concreto da dignidade de cada
pessoa e a partilha do dom que cada um é portador, permita viver relações
fraternas. (Ibidem, p. 12)
Nesse
percurso Francisco nos alerta contra um tipo de profeta que não configura de
originalidade evangélica. Ele pode ser classificado como os falsos profetas do
Primeiro Testamento. Tais profetas hoje se baseiam nos números de religiosos
que se tem e nas quantidade das obras, nas estruturas e numa visão
estreitamente negativa da vida e da humanidade contemporânea. Numa condenação
de tudo o que é novo, sem uma fé esperançosa em Cristo que caminha na história
e nos chama a continuar seu projeto.
Não cedais à
tentação dos números e da eficiência, e menos ainda à tentação de confiar nas
vossas próprias forças. Com atenta vigilância, perscrutais os horizontes da
vossa vida e do momento atual. Repito-vos com Bento XVI: “Não vos unais aos
profetas de desventura, que proclamar o fim ou a insensatez da vida consagrada
na Igreja dos nossos dias; pelo contrário, revesti-vos de Jesus Cristo e
muni-vos das armas da luz [...]. (Ibidem, p.14)
A exortação
para os tempos atuais é de esperança no futuro, na certeza de que Deus caminha com
seu povo. Não se trata, todavia, de uma esperança sega, mas de uma esperança
que sabe das limitações e fragilidade humanas, que diante de tais fragilidades,
experimenta a misericórdia do amor de Deus. E ver nas situações de limitação
humana, a “ocasião para gritar ao mundo com força e testemunhar com alegria a
santidade e a vitalidade presentes na maioria daqueles que foram chamados a
seguir Cristo na vida consagrada” (Ibidem, p. 9). Deste modo é que Francisco
insiste para que os religiosos não se desanimem com os desafios da realidade,
pois é sabido das “dificuldades que enfrenta a vida consagrada nas suas
diversas formas: a diminuição das vocações e o envelhecimento, especialmente no
mundo ocidental, os problemas econômicos na sequência da grave crise financeira
mundial, os desafios da internacionalidade e da globalização” (Ibidem, p. 13).
Porém a profecia da vida religiosa está na esperança em dias melhores, no futuro,
onde Cristo se adianta a esperar a todos. Por isso, como profetas todos os
religiosos precisa alegria:
Que seja sempre
verdade aquilo que eu disse uma vez: “Onde estão os religiosos, há alegria”.
Somos chamados a experimentar a mostrar que Deus é capaz de preencher o nosso
coração e fazer-nos felizes sem necessidade de procurar noutro lugar a nossa
felicidade, que a autêntica fraternidade vivida nas nossas comunidades alimenta
a nossa alegria, que a nossa entrega total ao serviço da Igreja, das famílias,
dos jovens, dos idosos, dos pobres nos realiza como pessoas e dá plenitude à
nossa vida. (Ibidem, p.16)
Todos esses
sinais apresentados pelo Papa Francisco na Carta aos Religiosos são motivações
características do profetismo no tempo atual. E isso se apresenta desde o
anúncio de Cristo como primeiro amor da Vida Religiosa até o testemunho vivo
dessa experiência com Ele. “Numa sociedade que ostenta o culto da eficiência,
da saúde, do sucesso e que marginaliza os pobres e exclui os ‘pecadores’, [...]
[é possível testemunhar], através da nossa vida, a verdade (...) da Escritura
[...]. Tal testemunho é concretização do Reino em nosso meio. Por meio de um
novo modelo de vida, que anuncia a boa nova, denuncia as injustiças e promove o
Reino de Misericórdia é que a Vida Religiosa realiza a profecia. Esta configura
parte importante de sua missão evangelizadora:
Espero que
“desperteis o mundo”, porque a nota característica da vida consagrada é a
profecia. [...] Mas os religiosos seguem o Senhor de uma maneira especial, de
modo profético”. Esta é a prioridade que agora se requer: “ser profetas que
testemunham como viveu Jesus nesta terra (...). Um religioso não deve jamais
renunciar à profecia” [...]. (Ibidem, p. 18)
O profeta recebe de Deus a
capacidade de se inserir na história e discernir sobre os acontecimentos. Ele
conhece a Deus e aos homens e mulheres do seu tempo. É capaz de discernir e
denunciar o mal do pecado e as injustiças. Só deve responder a Deus e não tem
outro interesse a não ser o de Deus, por isso ele é livre. Habitualmente o
profeta está ao lado dos pobres e indefesos:
Desse modo,
espero que saibais. Sem vos perder em vãs “utopias” onde se viva a lógica do
dom, da fraternidade, do acolhimento da diversidade, do amor recíproco.
Mosteiros, comunidades, centros de espiritualidade, cidadelas, escolar,
hospitais, casas-famílias e todos aqueles lugares que a caridade e a
criatividade carismática fizeram nascer- e ainda farão nascer, com nova
criatividade-, devem tornar-se cada vez mais o fermento para uma sociedade
inspirada no Evangelho [...]. (Ibidem, p. 19)
c)
Motivação profética para os leigos em comunhão
com a Vida Religiosa.
Assim como
para os Religiosos e Religiosas da Igreja, a profecia também é uma exigência
para o povo leigo. Pois estes também participam da Missão de anunciar a Jesus,
vivenciar essa experiência e denunciar as injustiças contrárias ao Reino. Embora
os leigos estejam numa condição de vida distinta daquela professada pelo
Religioso, eles participam da mesma realidade carismática da Vida Religiosa e,
portanto, da Igreja. Francisco convida os leigos para viver esse diálogo e
comunhão com os Consagrados:
Por isso,
convido todas as comunidades cristãs a viverem este Ano, procurando antes de
mais nada agradecer ao Senhor e, reconhecidas, recordar os dons que foram
recebidos, e ainda recebemos, por meio da santidade dos fundadores e das
fundadoras e da fidelidade de tantos consagrados a seu próprio carisma. A todos
convido a estreitar ao redor das pessoas consagradas, rejubilar com elas,
partilhar as suas dificuldades, colaborar com elas, na medida do possível, para
o prosseguimento do seu serviço e da sua obra, que são, aliás, os da Igreja
inteira. (Ibidem, p.26)
d)
Profetismo:
leitura dos sinais dos tempos na Contemporaneidade.
Se as
marcas do profetismo atinge hoje novos rumos e desafios, para tal realização é
necessário uma observação dos “sinais dos tempos”, ou em outras palavras,
compreender a realidade a partir da experiência de fé cristológica e trinitária.
É por esse caminho que o Papa Francisco apresenta as exigências do anúncio do
evangelho no tempo atual, no segundo capítulo da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (2013). Neste capítulo, ele
anima “todas as comunidades a ‘uma capacidade sempre vigilante de estudar os
sinais dos tempos” (FRANCIASCO, 2013, p. 46), para que se possa responder com
responsabilidade e compromisso ao apelo da evangelização e discernir
profeticamente “o que pode ser um fruto do Reino e também o que atenta contra o
projeto de Deus” (Ibidem.). Neste sentido é que ele apresenta como estímulo
alguns aspectos da realidade global Contemporânea:
[...] não
podemos esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o
seu dia a dia precariamente, com funestas consequências. Aumenta algumas
doenças. O medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo
nos chamados países ricos. A alegria de viver frequentemente se desvanece;
cresce a falta de respeito e a violência, a desigualdade social torna-se cada
vez mais patente. É preciso lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca
dignidade. (Ibidem, p. 47)
Esses
sinais de agressão ao gênero humano possuem suas causas na história, na própria
falta de cuidado com a vida e a dignidade social. Tais tempos apresentam
mudanças de época que não configuram somente a situação de exploração e
opressão de antes, mas se apresenta mais aguda, profunda e velada. A História
denuncia que tais problemas foram causados pelos “enormes saltos qualitativos,
quantitativos, velozes e acumulados que se verifica[ra]m no progresso
científico, nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em
diversos âmbitos da natureza e da vida” (Ibidem.). É importante frisar que houve
uma disparidade entre a evolução tecnológica-científica-virtual e a humanização
das pessoas, na Modernidade. Enquanto se evoluiu em aspectos tecnológicos, de
bem estar e comodidades, por outro aspecto se gerou alguns descasos em matéria
de dignidade e humanidade. A prioridade na evolução do mercado e da economia
pelo sistema capitalista trousse para as pessoas desigualdades e exclusão
social, em que “os excluídos não são explorados, mas resíduos, ‘sobras’”.
Hoje, tudo
entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole
o mais fraco. Em consequência dessa situação, grande massa da população veem-se
excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída.
O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode
usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do descartável, que
aliás, chega a ser promovida. (Ibidem, p. 48)
Tais
mudanças promoveram uma globalização não solidária, mas da insensibilidade e da
indiferença, do egoísmo e do individualismo. Quase sem se dar conta as pessoas
se tornaram incapazes de compadecer-se ao ouvir os clamores dos outros, já não
choram à vista do drama dos outros, nem se interessa por cuidar deles, como se
tudo fosse uma responsabilidade que interessa a outro (Ibidem, p. 49). Nesse
contexto, uma das causas referidas por Francisco está na relação de idolatria
estabelecida com o dinheiro, porque este é aceito pacificamente como primado
dominador e determinante das motivações e preocupações sociais. Isso fez a sociedade
esquecer do ser humano, de sua dignidade, acima de tudo, e do bem comum.
A crise
financeira que atravessamos faz-nos esquecer de que, na origem, há uma crise
antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criamos novos
ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex32, 1-35) encontrou uma
nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem
rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano. (...) Enquanto os lucros de
poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do
bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provem de ideologias que
defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. (Ibidem,
p.50).
Neste
sentido a evolução econômica atrelada ao sistema capitalista moderno gerou
problemas no âmbito da vida civil. As regras pretendidas absolutas do capital
não diminuíram a disparidade entre países ricos e pobres. Mas quis impor um
sistema cultural económico que na sua raiz é injusto. As relações comercias
pressionam os países desfavorecidos a se submeterem aos países dominantes, para
poderem ascender economicamente. Isso trousse prejuízos para muitos países, um
crescimento as custas da intervenção cultural e ambiental. “Neste sistema que tende a fagocitar tudo
para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como [os
países pobres e] o meio ambiente, fica[m] indefesa, face ao interesse do
mercado divinizado” (Ibidem, p.50, Acréscimos nosso). O problemas do sistema
econômico exige uma reforma financeira que leve em conta a ética:
Uma reforma
financeira que tivesse em conta a ética exigiria uma vigorosa mudança de
atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem exorto a enfrentar este
desafio com determinação e clarividência, sem esquecer naturalmente a
especificidade de cada contexto. O dinheiro deve servir, e não governar! (Ibidem,
p.52)
No âmbito
cultural a Contemporaneidade apresenta desafios grandes para serem superados. O
relativismo exacerbado, relacionado as decepções e crise das ideologias contrárias
a tudo o que parecia totalitário, foram fatores da Modernidade contemporânea,
todavia, a permanecia desse relativismo, contrário aos princípios normativos de
civilidade e boa convivência, está trazendo prejuízos para estabilidade humana,
a Igreja e a equidade civil. Isso é visível no âmbito cultural, onde se
manifesta “verdadeiros ataques à liberdade religiosa ou em novas situações de
perseguição aos cristãos, que, em alguns países, atingiram níveis alarmantes de
ódio e violência” (Ibidem, p. 54). Soma-se a isso um subjetivismo de conduta e
busca de verdade individualista que distancia cada pessoa de um norte comum de
vida, norte este fundamental para as relações interpessoais, sociais e
fraternas.
Reconhecemos
que, numa cultura onde cada um pretende ser portador de uma verdade subjetiva
própria, torna-se difícil que os cidadãos queiram se inserir num projeto comum
que vai além dos benefícios e desejos pessoais. Na cultura dominante, ocupa o
primeiro lugar aquilo que é exterior, imediato, visível, rápido, superficial,
provisório. O real cede o lugar à aparência. Em muitos países, a globalização
comportou uma acelerada deterioração das raízes culturais com a invasão de tendências
pertencentes a outras culturas, economicamente desenvolvidas mas eticamente
debilitadas. (Ibidem, p.55)
Em meio ao
relativismo exacerbado surgem movimentos religiosos “tendentes ao
fundamentalismo e outros que parecem propor uma espiritualidade sem Deus” (Ibidem,
p. 56). Essas ações reacionárias tentam preencher o vazio deixado pelo
secularismo, e pela falta do espírito evangélico e acolhedor de muitas
paróquias e comunidade. Todavia, emerge na sociedade um processo secular que
tende reduzir a fé e a Igreja ao âmbito do privado e íntimo, desvinculado de
uma responsabilidade e compromisso com a sociedade, além de estimular a
sociedade para um relativismo moral. Tais transformações culturais atingem
também o âmbito familiar, as células, ou membros, do corpo social humano. Elas
fragilizam os vínculos fundamentais familiares e tenta reduzir a vida
matrimonial familiar a vínculos afetivos que podem ser modificados conforme a
sensibilidade de cada um. “No caso da
família, a fragilidade dos vínculos reveste-se de especial gravidade, porque se
trata da célula básica da sociedade, o espaço onde se aprende a conviver na
diferença e a pertencer aos outros e onde os pais transmitem a fé aos seus
filhos” (Ibidem, p. 58). Tais conflitos são favorecidos pelo individualismo
pós-moderno e globalizado que “favorece um estilo de vida que debilita o
desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos familiares” (Ibidem).
Nas cidades
ainda há um estilo de vivência religiosa distinto da população rural. Também é
possível encontrar nas periferias das cidades grupos de pessoas que são
excluídas dos centros e da convivência fraterna. Enquanto os citadinos-povo da
cidade- lutam para viver há outros que são desconhecidos. “Enquanto há
citadinos que conseguem os meios adequados para o desenvolvimento da vida
pessoal e familiar, muitos são também os ‘não citadinos’, os ‘meios citadinos’
ou os ‘resíduos urbanos’” (Ibidem, p. 64).
A cidade dá
origem a uma espécie de ambivalência permanente, porque, ao mesmo tempo em que
oferece aos seus habitantes infinitas possibilidades, interpõe também numerosas
dificuldades ao pleno desenvolvimento da vida de muitos. Esta contradição
provoca sofrimentos lancinantes. Em muitas partes do mundo, as cidades são
cenários de protestos em massa, onde milhares de habitantes reclamam liberdade,
participação, justiça e várias reivindicações que, se não forem adequadamente
interpretadas, nem pela força poderão ser silenciadas. (Ibidem, p. 65)
No âmbito
das cidades Francisco explana as situações delicadas as quais pode-se constatar
“o tráfico de drogas e de pessoas, o abuso e a exploração de menores, o
abandono de idosos e doentes, várias formas de corrupção e crime” (Ibidem.).
Essas tenções transformam os espaços, que deveriam ser de encontro e
solidariedade humana, em lugar de retraimento, desconfiança, medo e insegurança
mútua. Todavia, invés de se afastar de tais ambientes o desafio profético é
estar nessas realidades, pois inserir-se no coração dos desafios “como fermento
e testemunho, em qualquer cultura, em qualquer cidade, melhora o cristão e
fecunda a cidade” (Ibidem.). Devido a
esses diversos desafios da cultura contemporânea, os cristãos e agentes
pastorais correm o risco de retroceder, se afastar e distanciar-se de tais
realidades que gritam por justiça, misericórdia e salvação. Neste sentido
negativo Francisco ressalta os desafios da espiritualidade missionária hoje, ou
poder-se-ia dizer, da presença profética.
Hoje se nota em
muitos agentes pastorais, mesmo pessoas consagradas, uma preocupação exacerbada
pelos espaços pessoas de autonomia e relaxamento, que leva a viver os próprios
deveres como mero apêndice da vida, como se não fizessem parte da própria
identidade. Ao mesmo tempo a vida espiritual se confunde com alguns momentos
religiosos que proporcionam algum alívio, mas não alimentam o encontro com os
outros, o compromisso no mundo, a paixão pela evangelização. (Ibidem, p. 67)
Tais
situações são frutos dos males do nosso tempo. Infelizmente muitos agentes
pastorais acabam “por sufocar a alegria da missão numa espécie de obsessão por
serem como os outros e terem o que possuem os demais” (Ibidem, p. 68). Neles se
desenvolve um relativismo ainda mais perigoso que o doutrinal, isto é, agir
como se Deus não existisse, decidir como se os pobres não existissem, sonhar
como se os outros não existissem, trabalhar como se houvesse uma classe
particular, como se as pessoas que não foram evangelizadas não existissem.
Muitos se agarram as seguranças econômicas e aos espaços de poder e gloria, em
vez de doar a vida pelos outros na missão evangélica. Muitos leigos fogem do
compromisso cristão e não querem assumir tarefas que lhe tire seu tempo livre.
Muitos sacerdotes se preocupam obsessivamente com o tempo pessoal, como se não
houvesse um povo precisando dele, como se ele não fosse responsável pelo
cuidado pastoral de um povo. Também se observa um desanimo egoísta na missão
confiada por Deus, uma atividade mal vivida de espiritualidade e convicção de
fé. Muitos se fecham em um pessimismo estéril e seguem o caminho de profetas de
desgraças, que anunciam acontecimentos miseráveis, como se tudo estivesse
chegando ao fim.
Uma das
tentações mais sérias que sufoca o fervor e a ousadia é a sensação de derrota
que nos transforma em pessimistas lamurientos e mal-humorados desencantados.
Ninguém pode empreender uma luta, se de antemão não está plenamente confiado no
triunfo. Que começa sem confiança, perdeu de antemão metade da batalha e
enterra os seus talentos. (Ibidem, p.73)
Outro fator
que atinge a sociedade, mas de modo contra testemunhal cristão, em nível
internacional, é as guerras. O mundo está dilacerado pelas guerras e violência,
ou ferido pelo individualismo que põe os seres humanos uns contra os outros,
visando o próprio bem-estar egoísta. Essas guerras se manifestam dentro do povo
de Deus e nas diferentes comunidades, de um modo mais velado. Invejas, ciúmes,
são contradições que dilaceram o profetismo cristão. Elas se impõe pela busca
do poder, prestígio, prazer ou segurança econômica. Deste modo Francisco pede aos
cristãos de todas as comunidades do mundo, “um testemunho de comunhão fraterna,
que se torna fascinante e resplandecente” (Ibidem, p.83), pautado pela lei do
Amor. Sem uma radicalidade de fé e
entrega na vida a partir da experiência com Cristo, a vida cristã fica fadada
ao mundanismo espiritual. Este se
esconde por aparência de religiosidade e até mesmo de amor a Igreja, mas busca
cada vez mais a glória humana e o bem-estar pessoal. Não assume a profecia e
não denuncia o pecado de domínio público, pelo que apresenta que tudo é correto:
Este mundanismo
pode alimentar-se, sobretudo, de duas maneiras profundamente relacionadas. Uma
delas é o fascínio do gnosticismo, uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas
interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos
que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica
enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos. A outra
maneira é o neopelagianismo autorreferencial e prometeico de quem, no fundo, só
confia nas suas próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir
determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a certo estilo católico
próprio do passado. (Ibidem, p. 80)
Deste modo
a Contemporaneidade apresenta as suas limitações, fraquezas e desafios a serem
superados. Para que se tenha mudanças para o bem comum é preciso não se
conforma com o mundo, refazer e reciclar a experiência profética a partir de
dentro, esclarecer e denunciar as mazelas da realidade global corrompida e
anunciar um tempo novo em que Deus convida a cada um a conversão interior, a
busca por soluções que com o testemunho cristão já se anuncia.
e)
Redirecionamento
profético: reencontro, conversão, saída e superação continua.
O
profetismo na Contemporaneidade não pode ter a mesma dinâmica tradicional que
em tempos passados, se não correr-se-ia o risco do anuncio profético não chegar
ao coração humano e se tornar uma palavra morta, condenada ao fracasso. Na
melhor das hipóteses ele seria pura expressão de um museu retórico falacioso, que
as vezes se pode encontrar mofando em algumas academias teológicas. Uma
roupagem estilística nova, uma resposta evangélica nova aos problemas atuais,
se faz necessário. Não se trata portanto da perca dos fundamentos do
profetismo, da sua essência geradora, mas de uma atualização e redirecionamento
das bases pelas quais ele surgiu, somando-se a isso os novos horizontes
criativos e desafiantes do nosso tempo. Em poucas palavras, poderia se dizer
que trata-se de um caminho de renovação, de redirecionamento criativo
profético. E esse primeiro passo se dá no encontro com Cristo, onde Francisco,
na Evangelii Gaudium, escreve:
Convido todo
cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o
seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se
deixar encontrar por Ele, de procura-Lo dia a dia sem cessar. Não há motivo
para alguém poder pensar que este convite não lhe diz respeito, já que “da
alegria trazida pelo Senhor ninguém é excluído”. (Ibidem, p. 4)
Por essa experiência renovada é que
os profetas são chamados a levar a alegria da salvação que se concretizou com a
vinda Jesus Cristo em nosso meio. Esse renovado encontro deve impeli-los para o
anúncio da presença misteriosa de Jesus e a esperança da sua segunda vinda
escatológica, na plenitude do Reino. Essa deve ser a mesma contagiosa alegria que
também se manifestou nos profetas do Primeiro Testamento, como Zacarias que, vendo
o dia do Senhor, convidou o povo a vitoriar o Rei que chegaria humilde, montado
num jumento: “‘Exulta de alegria, filha de Sião! Eis que o teu rei vem a ti.
Ele é justo e vitoriosos” (Ibidem, p. 6). Infelizmente, há cristãos que parecem
ter escolhido viver uma Quaresma sem Pascoa, desesperançados que estão da
presença de Cristo e de seus dons cotidianos. Porém, tal caminho precisa ser
refeito num encontro autentico e confiante, numa entrega e abertura para
presença de Deus.
Posso dizer que
as alegrias mais belas e espontâneas, que vi ao longo da minha vida, são as
alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a que se agarrar. Recordo também
a alegria genuína daqueles que, mesmo no meio de grandes compromissos
profissionais, souberam conservar um coração crente, generoso e simples. De
várias maneiras, estas alegrias bebem na fonte do amor maior, que é o de Deus,
a nós manifestado em Jesus Cristo. [...] Somente graças a este encontro- ou
reencontro com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos
resgatados da nossa consciência isolada e da autorreferêncialidade. (Ibidem, p.
8)
O
reencontro com Jesus, nossa grande alegria, proporciona uma liberdade de filhos
de Deus, porém, ela deve mover os profetas para uma maior humanidade e
sensibilidade face as necessidades dos outros, pois tal foi o caminho de
Cristo. Essa confiança e expansão de fé deve o profeta a buscar o bem do outro.
Essa é a experiência do amor doação. “Na doação, a vida se fortalece; e [ela] se
enfraquece no comodismo e no isolamento. De fato, os que mais desfrutam da vida
são os que se deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de
comunicar a vida aos demais” (Ibidem, p.10). Nessa dinâmica de entrega, a vida
ganha um novo sentido evangélico e profético:
[...] um
evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral Recuperemos e
aumentemos o fervor de espírito, “a suave e reconfortante alegria de
evangelizar, mesmo quando for preciso semear com lágrimas![...] E que o mundo
do nosso tempo, que procura ora na angústia ora com esperança, possa receber a
Boa-Nova dos lábios, não de evangelizadores tristes e descoroçoados,
impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie
fervor, pois foram quem recebeu primeiro em si a alegria de Cristo”. (Ibidem,
p. 11)
Após esse
redirecionamento interior, na experiência com Deus, que deve se expressar no
cotidiano da vida, outros fatores se fazem necessário para revitalizar o
coração no chamado profético. Trata-se da conversão para a missão confiada por
Deus, por Cristo, a todos, e de modo especial, aos profetas. Tal conversão não
se trata de um lamentar-se e murmurar sobre as faltas cometidas no caminho, mas
“uma necessidade generosa e quase impaciente de renovação, isto é, de emenda
dos defeitos, que aquela consciência denuncia e rejeita, como se fosse um exame
interior ao espelho do modelo que Cristo nos deixou de Si mesmo” (Ibidem, p.
24). Essa conversão de coração deve ganha sua concretude no trabalho pastoral e
missionário profético, como Francisco aconselha: “Espero que todas as comunidades se esforcem por atuar
os meios necessários para avançar no caminho de uma conversão pastoral e
missionária, que não pode deixar as coisas como estão” (Ibidem.). Esse caminho
profético ganha sua comum expressão em uma Igreja “em saída”, inspirada desde a
sua tradição bíblica profética:
Na Palavra de Deus, aparece
constantemente este dinamismo de “saída”, que Deus quer provocar nos crentes.
Abraão aceitou a chamada para partir rumo a uma nova terra (Cf. Gn 12, 1-3).
Moisés ouviu a chamada de Deus: “Vai Eu te envio”(Ex 3, 10). A Jeremias disse:
“Irás aonde Eu te enviar” (Jr 1, 7). Naquele “ide” de Jesus, estão presentes os
cenários e os desafios sempre novos da missão evangelizadora da Igreja, e hoje
todos somos chamados a esta nova “saída” missionária. Cada cristão e cada
comunidade há de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos
somos convidados a aceitar essa chamada: sair da própria comodidade e ter a
coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho. (Ibidem,
p.19-20)
Essa
saída implica a moção que o Espírito impele em todo aquele que caminha com
Deus. Trata-se dos frutos da docilidade espiritual e profética. Ela “contém
sempre a dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si mesmo, de caminhar e de
semear sempre de novo, sempre mais. O Senhor diz: ‘Vamos para outra parte, para
as aldeias vizinhas, a fim de pregar aí, pois para isso que Eu vim’” (Ibidem,
p. 20). O exemplo de Cristo é a motivação profética para não perder de vida o
aspecto itinerante da missão. O aspecto
profético está enraizado em ter os mesmos sentimentos que Cristo e se deixar
impulsiona pelas suas iniciativas da redenção. É preciso perceber que na saída,
Deus já tomou tal iniciativa e precede a todos que querem segui-lo. Na
confiança em Deus é preciso “ir a frente, saber tomar a iniciativa sem medo, ir
ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para
convidar os excluídos” (Ibidem, p. 22). No contato com os pobres, abandonados e
excluídos, os profetas evangelizam e são evangelizados, compreendem a realidade
dolorosa e esperançosa do povo e contraem o “cheiro das ovelhas”. E desse modo
o sair de si mesmo pode levar a pessoa a se encontrar com Jesus Cristo que está
no outro, mais necessitado, e portanto, o privilegiado de Deus. Somente nessa
dinâmica do contato e da presença é que se pode ressignificar o profetismo,
pois é nessa dinâmica de “comunhão” e em “comunidade” que é possível discernir
e sentir a presença do Reino que se faz no estar junto, no acompanhamento com a
humanidade e de modo especial, com os esfoliados e anônimos da sociedade.
Na
Contemporaneidade é necessário rever os meios tradicionais de evangelização e
orientar as estruturas que se possuem para proximidade e serviço do povo. Um
dos desafios que se fala, está nas paróquias missionárias que ainda não atingiram
o seu ideal evangélico, muitas vezes se fechando em manutenção sacramental, ou
não alcançando os excluídos de sua região. Além dessa estrutura, outras
precisam de um maior compromisso e fidelidade ao evangelho para não perderem ou
enfraquecerem seu caráter profético. Sem vida nova e espirito evangélico
autêntico, sem fidelidade a própria vocação, qualquer estrutura acaba se
corrompendo com o passar do tempo. A reforma das estruturas só se pode entender
neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias,
comunicativas, abertas ao diálogo e em atitude de constante “saída” para chegar
a todos que Jesus oferece sua amizade. Sobre a reorientação da paróquia
Francisco afirma:
[...] supõe que
esteja realmente em contato com as famílias e com a vida do povo, e não se
torne uma estrutura complicada, separada das pessoas, nem um grupo de eleitos
que olham para si mesmo. A paróquia é presença eclesial no território, âmbito
para a escuta da Palavra, o crescimento da vida cristã, o diálogo, o anúncio, a
caridade generosa, a adoração e a celebração. (Ibidem, p. 27)
Quanto as
outras instituições eclesiais que possuem forte caráter profético e evangélico,
como as comunidades de base e pequenas comunidades, os movimentos e outras
formas de associação, é importante que não percam o contato com a paróquia e
que se integrem na pastoral orgânica da Igreja particular para que mantenham
comunhão com o espírito e unidade da Igreja e saibam apresentar os diversos
desafios proféticos que se mostram no meio da evangelização. Todavia, todo o
trabalho de renovação profética e pastoral requer clareza na sua missão. Neste
sentido o chamado essencial é para que se seja “uma mãe de coração aberto”, que
sabe parar para ajudar quem caiu pelo caminho, as vezes como o pai do filho
pródigo que continua dia e noite esperando o filho amado voltar. Essa abertura,
acolhimento e dedicação tem uma especial predileção profética:
Mas a quem
deveria privilegiar? Quando se lê o evangelho, encontramos uma orientação muito
clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos
doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, “aqueles que
não têm com que te retribuir” (Lc 14, 14). Não devem subsistir dúvidas nem
explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, “os pobres
são os destinatários privilegiados do Evangelho”, e a evangelização dirigida
gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. (Ibidem, p. 42)
f)
Anúncio
profético: a Boa-Nova.
Depois de
se apresentar algumas mudanças indicadas pelo Papa Francisco na caminhada
cristão em suas funções eclesiásticas, se faz salutar observar o outro aspecto
que caracteriza o profetismo, a saber, o anúncio da Boa-Nova de Cristo, na
evangelização. Neste sentido o terceiro
capítulo da Gaudium evangelii é bem
claro ao afirmar que “‘não pode haver verdadeira evangelização sem o anúncio
explícito de Jesus como Senhor’ e sem existir uma ‘primazia do anúncio de Jesus
Cristo em qualquer trabalho de evangelização” (Ibidem, p. 93). Porém esse anúncio
vai além das institucionalidades, isto é, “quer dizer anunciar e levar a
salvação de Deus a este nosso mundo, que muitas vezes se sente perdido,
necessitado de ter respostas que encorajem, deem esperança e novo vigor para o caminho”
(Ibidem, p. 96). Porém essa evangelização deve levar em conta a cultura de cada
povo, respeitá-las e promove-las na medida em que elas são expressão dos
valores evangélicos e da dignidade humana. Pois tais atitudes evangélico-proféticas
enriquecem e orientam qualquer cultura assim como dinamiza o anúncio. Sobre a
relação do Evangelho com as diversas culturas, vale dizer que:
Quando uma
comunidade acolhe o anúncio da salvação, o Espírito Santo fecunda a sua cultura
com a força transformadora do Evangelho. E assim, como podemos ver na história
da Igreja, o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural, mas
“permanecendo o que é, na fidelidade total ao anúncio evangélico e à tradição
da Igreja, o cristianismo assumirá também o rosto das diversas culturas e dos
vários povos onde for acolhido e se radicar. (Ibidem, p. 97-98)
Ora, Graça e Cultura não são duas
coisas contrárias e opostas, mas a primeira pressupõe a segunda e a ação de
Deus se encarna na Cultura. Para isso se faz mais patente o aspecto da inculturação
como o da inserção no processo de anúncio e encarnação da Boa-Nova. É
importante perceber que na História algumas culturas estiveram ligadas à
pregação do Evangelho e ao desenvolvimento do pensamento cristão, porém a
Boa-Nova do Evangelho, sua mensagem fundamental criativa, não se identifica com
nenhuma delas, mas é transcultural no seu conteúdo, isto é, emana e transcende
a própria cultura de um povo. Como afirma Francisco: “A mensagem, que
anunciamos, sempre apresenta alguma roupagem cultural, mas às vezes, na Igreja,
caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode mostrar mais
fanatismo do que autêntico ardor evangelizador” (Ibidem, p. 99-100). Porém,
quando há uma e madura inculturação na vida dos povos, estes se tonam sinais
visíveis do Evangelho, da força redentora de Deus. Isso acontece nos povos que
acolheram a Boa-Nova do Evangelho:
[...] os diferentes povos,
nos quais foi inculturado o Evangelho, são sujeitos coletivos ativos, agentes
da evangelização. Assim é, porque cada povo é o criador da sua cultura e o
protagonista da sua história. A cultura é algo dinâmico, que um povo recria
constantemente, e cada geração transmite à seguinte um conjunto de atitudes
relativas às diversas situações existenciais, que esta nova geração deve
reelaborar frente aos próprios desafios. O ser humano “é simultaneamente filho
e pai da cultura onde está inserido”. Quando o Evangelho se inculturou num
povo, no seu processo de transmissão cultural também transmite a fé de maneira
sempre nova: daí a importância da evangelização entendida como inculturação.
(Ibidem, p. 103- 104)
No âmbito da
profecia como anúncio Francisco apresenta algumas considerações para as
diversas modalidades de mensagem salvífica crista. As devoções populares tão
presente na América Latina é característica de uma profundidade e simplicidade
popular que expressa com qualidade a fé desse povo, embora tal modalidade não
esteja articulada e categorizadas por uma teologia sistemática. Além dessa
Francisco destaca uma especial atenção para os presbíteros e pregadores da
Palavra. O tempo para o estudo, a meditação, reflexão, oração e criatividade
pastoral são elementos imprescindíveis para um pregado que comunica e anuncia a
mensagem do Evangelho:
O pregador “deve ser o
primeiro a desenvolver uma grande familiaridade pessoal com a Palavra de Deus:
não lhe basta conhecer o aspecto linguístico ou exegético, sem dúvida
necessário; precisa se aproximar da Palavra com o coração dócil e orante, afim
de que ela penetre a fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere uma nova
mentalidade”. (Ibidem, p. 123)
Com não
menor importância no anúncio evangélico- profético está a pastoral da
catequese. Esta não pode se desprender do seu conteúdo principal e vida, o
querigma: “O querigma é trinitário. É o fogo do Espírito que se dá sob a forma
de línguas e nos faz crer em Jesus Cristo, que, com a sua morte e ressurreição,
nos leva e comunica a misericórdia do Pai” (Ibidem, p. 135). Na boca e na vida
do catequista deveria-se sempre ressoar a mensagem de que Jesus Cristo deu sua
vida a humanidade para salvá-la. A mistagogia é outra característica
catequética que não poderia faltar para que os iniciados a vida cristã tivessem
um progresso formativo e uma valorização memorial celebrativa-litúrgica dos
mistérios da fé. Tal suporte tem como finalidade atualizar e revitalizar a
caminha cristã e o aspecto profético que todos possuem pelo batismo. Uma pastoral renovada se faz necessária para
atualização profética da Boa-Nova.
Para superar tais fronteiras do
caráter pastoral ordinário da profecia evangélica nas comunidades, paróquias e
pastorais, faz-se necessário algumas pontuações desse anúncio na dimensão
social da evangelização. O coração do Evangelho deixa explícito a conexão entre
a evangelização a e promoção humana integral. A comunhão com Deus deve levar os
cristãos para as consequência sociais e políticas concretas, que se inspiram no
Reino. Nesse itinerário se apresenta a afirmação de Francisco sobre a religião
Católica:
Já não se pode afirmar que a
religião deve limitar-se ao âmbito privado e serve apenas para preparar a alma
para o céu. Sabemos que Deus deseja a felicidade dos seus filhos também nesta
terra, embora estejam chamados à plenitude eterne, porque Ele criou todas as
coisas “para nosso usufruto” (1Tm 6, 17), para que todos possam usufruir delas.
Por isso, a conversão cristã exige rever “especialmente tudo o que diz respeito
à ordem social e consecução do bem comum”. (Ibidem, p. 151)
É nesse aspecto que o profetismo
ganha socialmente sua praticidade. Enquanto chamados por Deus para implementar
seu Reino no mundo os profetas, a partir de uma espiritualidade evangélica. Não
se trata portanto de agir como políticos pela ordem social e do Estado, mas de
lutar pela justiça que brota do coração de Deus para o povo em benefício da humanidade.
Esse dever não é só para os religiosos, as religiosas e clérigos, mas para todo
cristão como afirma o Francisco:
Todos os cristãos, incluindo
os Pastores, são chamados a preocupar-se com a construção de um mundo melhor. É
disto mesmo que se trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente
positivo e construtivo, orienta uma transformadora e, neste sentido, não deixa
de ser um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo.
(Ibidem, p. 152)
Dessa motivação desponta prática
concretas de evangelização. E nesse sentido a mensagem cristã se volta para uma
escolha especial que faz parte da história dos profetas como do povo de Deus: a
escuta do seu povo e a promoção dos mais excluídos. “Cada Cristão e cada comunidade
são chamadas a ser instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos
pobres, para que possam integrar-se plenamente na sociedade” (Ibidem, p. 154).
Não estar atento as realidade e situação dos mais excluídos, fingir não escutar
o seu clamor que se manifesta de diversas maneiras é estar fora da vontade de
Deus e de seu projeto salvífico. Essa dedicação e preferência pelos últimos da
sociedade recebe o nome de solidariedade.
Esta “significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade;
supõe a criação de uma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de
prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns”
(Ibidem, p. 156). Neste aspecto se destaca a busca por justiça e misericórdia
para com os pobres, abandonados e excluídos, para que eles façam parte do Reino
de Deus na História e na vida. Essa radicalidade preferencial pelos pobres “é
mais uma categoria teológica que cultural, [...] ou filosófica. Deus ‘manifesta a sua misericórdia antes de mais’
a eles. Esta preferência divina tem consequências na vida de fé de todos os
cristãos, chamados a possuírem ‘os mesmos sentimentos que Cristo Jesus’”
(Ibidem, p. 163). Deste modo:
Animados pelos seus
Pastores, os cristãos são chamados, em todo o lugar e circunstância, a ouvir o
clamor dos pobres, como bem se expressaram os Bispos do Brasil: “Desejamos
assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças, as angustias e tristezas do povo
brasileiro, especialmente das populações das periferias urbanas e das zonas
rurais- sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde- lesadas em seus direitos.
Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo o seu sofrimento,
escandaliza-nos [...] à má repartição dos bens e da renda. [...] Não se fala
apenas de garantir a comida ou um decoroso “sustento” para todos, mas
“prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos”. Isto engloba educação,
acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho [...]. (Ibidem, p. 158)
Essa
aproximação e opção preferencial pelos pobres se inspira no coração de Deus que
na encarnação quis se identificar com os pobres e a estes privilegiou com as
bem-aventuranças no monte. Essa aproximação profética implica um acompanhamento
real e solidário, não só para empresta-lhes a voz profética em suas causas, mas
para ser seus amigos, escutá-los, compreendê-los e acolher a misteriosa
sabedoria que Deus comunica por eles. “Isso implica apreciar o[s] pobre[s] na
sua bondade própria, com o seu modo de ser, com a sua cultura, com a sua forma
de viver a fé. O amor autêntico é sempre contemplativo” (Ibidem, p. 164),
permitindo servir o outro não por necessidade ou vaidade, mas porque o outro é
belo, independe da sua aparência, isto é, de uma amor gratuito. Somente com
esse acolhimento é que caracteriza no profetismo numa autentica opção pelos
pobres. Sem essa opção o Evangelho não pode ser compreendido e o anúncio
profético perde a sua essência. O acolhimento dos pobres é mais do que
programas de assistência social, mas uma busca pela sua dignidade humana e
sagrada que é imagem e semelhança de Deus. Infelizmente muitos não atentam para
uma das piores discriminações e exclusões que passam os pobres: a falta de
cuidado espiritual.
[...] desejo
afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de
cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à
fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade,
a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta de um caminho
de crescimento e amadurecimento nafé. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se,
principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária. (Ibidem,
p.165-166)
Na
preferência evangélico-profética pelos pobres se destaca o clamor por justiça e
misericórdia diante das situações de fragilidades, agressões, explorações e
violência que atingem a humanidade, porém mais profundamente e drasticamente os
pobres. Nesse sentido Francisco apresenta como problema gritante a economia que
explora e gera desigualdade e a má distribuição de renda atual que mantem a
pobreza. A resolução das causas da pobreza não pode esperar mais. “Os planos de
assistência, que acorrem determinada emergência, deveriam considerar-se apenas
como respostas provisórias” (Ibidem, p. 167), porém tais medidas não estão
sendo realizadas para acabar com o problema da pobreza:
Em quanto não
forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à
autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as
causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do
mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é raiz dos males
sociais. (Ibidem.)
Infelizmente
as palavras “ética”, “solidariedade mundial”, “distribuição dos bens”, “defesa
dos postos de trabalhos”, “dignidade dos fracos” e “um Deus que exige um
compromisso com a justiça” são tidas como males por esse sistema injusto e
perverso. Por outro lado não falta pessoas que manipulam tais palavras em prol
de interesses particulares e oportunistas, ou até para tornar o discurso mais
convincente e aceitável, como acontece muitas vezes na política. Não se pode
mais confiar na força cega e mão invisível desse mercado que quer ser o ídolo
da sociedade, mas é fonte de escravidão e exclusão. O crescimento equilibrado
de uma sociedade requer coisas maiores do que o crescimento econômico desigual.
Uma economia que assegure o bem de todos os países se faz necessária.
Daí
se faz necessário o cuidado com os pobres, com suas fragilidades. Todos são
chamados a cuidar dos mais frágeis da Terra. E no modelo de vida que se promove
atualmente não tem sentido investir nos lentos, fracos e miseráveis. Desprezar
tais pessoas é abandonar o Cristo sofredor: “os sem abrigo, os
toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os idosos” (Ibidem, p.
171) e os migrantes, dentre outros. Nesta situação de pobreza estar as pessoas
que são objetos das diferentes formas de tráficos, as mulheres que padecem
situação de exclusão, maus-tratos e violência, e também os nasciturnos- os que
irão nascer- a quem hoje se quer negar a dignidade humana para poder fazer
deles o que bem querem, como tirar-lhes a vida e promover leis para que ninguém
possa impedir isso. Por outro lado, tais atos praticados contra a vida humana,
não desresponsabiliza a todos, e principalmente os líderes de um pais, de
cuidar das mulheres que fizeram aborto por diversas situações mais duras.
Por fim,
Francisco apresenta quatro princípios de desenvolvimento da convivência social
como caminho de Justiça, paz e fraternidade. Tais princípios são utilíssimos
para o profetismo contemporâneo. O primeiro: “o tempo é superior ao espaço”. A
imediaticidade faz com que se queira resolver tudo no hoje e no agora. Se busca
mais espaços de poder em vez de tempo e processos. A parábola do joio e do trigo
é um exemplo desse princípio. Muitas vezes se pretende abarcar as coisas de modo
imediato e resolutamente. Essa tentativa de ter as coisas prontas, faz as
pessoas quererem resolver tudo como loucas e a curto prazo. Tal atitude não
responde corretamente as situações mais difíceis e delicadas, onde tem que se
ter paciência e tempo para serem vistas e resolvidas. “Dar prioridade ao tempo
é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e
transforma-os em elos de uma cadeia em constante crescimento, sem retorno”
(Ibidem, p. 179).
O segundo
princípio é “a unidade prevalece sobre o conflito”. Há duas posturas que podem
se tomar diante do conflito: fingir que não existe ou imergir nele até ficar
aprisionado. Porém, a postura mais adequada é reconhecer o conflito, acolhê-lo
e transformá-lo em processos novos de paz. Não é sincretismo entre diferentes e
nem negação de um com o outro, mas construção de um plano superior, uma nova
caminhada que conserva as potencialidades das duas polaridades. É a unidade na
diversidade. O sinal dessa unidade é a reconciliação, que gera paz. “A paz é
possível, porque o Senhor venceu o mundo e sua permanente conflitualidade,
‘pacificando pelo sangue da sua cruz’” (Ibidem, p. 182). É o percurso da
conversão de coração e a reconciliação para se fazer avançar para caminhos
renovados e de unidade.
O terceiro
é “a realidade é mais importante do que a ideia. Isto supõe evitar várias
formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do
relativo, os nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais,
os fundamentalismos anti-históricos” (Ibidem, p. 183). Esse terceiro critério
está relacionado com a encarnação da Palavra e seu cumprimento. Ele impõe a
prática da Palavra e realiza obras de caridade e justiças que brotam da
Palavra.
O quarto:
“O todo é superior à parte”. Nesse âmbito é preciso considerar que o todo sem
as partes se torna uma abstração globalizante, inebriados, algo que não alcança
o processo. Por outro lado as partes sem o todo reduz as coisas nas obcecadas
visões medíocres e estreitas, limitadas e particulares. O caminho é acolher as
raízes da particularidades, da história, e se mover para perspectivas mais
amplas. “O modelo é o poliedro, que
reflete a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade”.
Tais princípios orientam para a dinâmica do profetismo na observância do
processo, da comunhão, do Reino, para a plenitude dos tempos.
g)
Denúncia
profética: degradação humana e degradação ecológica.
Depois de
se observar o aspecto do anúncio profético que comporta a Boa-Nova do Reino,
isto é, Jesus e sua proposta de Redenção. A pós se considera a amplitude e
privilégio desse anúncio na Contemporaneidade, não teria como falar igualmente
de profetismo sem uma de suas características peculiares: a denúncia profética.
Nesse sentido, na Encíclica Laudato si’
do Papa Francisco, é possível delinear algumas considerações suas acerca da práxis
social e da casa comum humana planetária.
A explosão
da revolução Industrial e tecnológica trousse para sociedade mudanças no modo
de se relacionar socialmente, no modo de lidar com o mundo e de se utilizar da
natureza. A exploração da natureza foi um desses grandes males históricos
ambientais que e a sociedade teve, mas que atualmente precisam ser reparados,
porque “[o ser humano] começa a correr o risco de destruí-la e de vir a ser,
também ele, vítima dessa degradação” (Ibidem, p. 4). Essa degradação humana tem
seu fundamento na própria forma da humanidade compreender a realidade que a
cerca, porque ela “parece ‘não se dar conta de outros significados do seu
ambiente natural, para além daqueles que servem somente para os fins de uso e
consumo imediatos’” (Ibidem, p. 5). Essa estreiteza de visão, que perde o seu
referencial espiritual transcendental e a noção ética e moral, está trazendo
danos violentos ao mundo natural e para própria humanidade, porque “a
degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a
convivência humana (Ibidem, p. 7) que está passando por crises graves. Daí é
preciso ter consciência das mas ações humanas, isto é, do pecado contra a
criação, como referencia Francisco:
“Quando os
seres humanos destroem a biodiversidade na criação de Deus; quando os seres
humanos comprometem a integridade da terra e contribuem para mudanças
climáticas, desnudando a terra das suas florestas naturais ou destruindo as
suas zonas úmidas; quando os seres humanos contaminam as águas, o solo, o ar...
tudo isso é pecado”. Porque “um crime contra a natureza é um crime contra nós
mesmos e um pecado contra Deus”. (Ibidem, p. 8-9)
Essa situação
mostra como parte da humanidade se apresenta fechada em si mesma, presa a uma
ideia de que não existe verdades indiscutíveis (como o valor sagrado da natureza),
que a liberdade humana não tem limites e que a mesma não quer reconhecer uma
instância maior, acima que lhe é superior. Os males do nosso meio ambiente
estão estreitamente relacionados com os males da humanidade, daí ser
fundamental encontrar soluções para a degradação ambiental a partir da própria
humanidade, isto é, de seu modo de perceber seu gênero e o mundo, de seu modo
de relacionar-se consigo mesma e com o mundo. Sem uma busca por mudanças do
próprio homem, todas a medidas tomadas estariam enfrentando apenas os sintomas
aparentes dessa degradação e não sua causa fundamental, a sua essência. Como motivação para transformação dessa
realidade humano-ecológica Francisco toma o exemplo de São Francisco de Assis,
que na sua busca espiritual e ensinamento profético-evangélico-prático foi um
reconciliador do homem consigo mesmo e com a natureza. “A pobreza e a
austeridade de São Francisco não era simplesmente um ascetismo exterior, mas
algo mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objeto de uso e
domínio” (Ibidem, p. 12). Essa é uma característica profética contrária ao status quo na sua época, que serve de
inspiração para a Contemporaneidade. A denúncia de tal situação se faz
necessária porque:
Infelizmente,
muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabam,
com frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também pelo
desinteresse de outros. As atitudes que dificultam os caminhos de solução,
mesmo entre os crentes, vão da negação do problema à indiferença, à resignação
acomodada ou a confiança cega nas soluções técnicas. (Ibidem, p. 14)
Apesar
dessa desmotivação no campo das mudanças favoráveis para o bem comum, “uma
parte da sociedade está entrando em uma etapa de maior conscientização. Nota-se
um crescente sensibilidade relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da
natureza” (Ibidem, p. 18). Isso deve motivar o profetismo para que não se
submeta aos interesses contrários à proposta evangélica e a dignidade humana.
Para tanto se faz necessário observar que os dois últimos século foram marcados
por profundas mudanças, na humanidade o no planeta, caracterizando o tempo
atual como o tempo da rapidez, ansiedade e impaciência. Porém a velocidade com que se evoluiu está
além do processo evolutivo natural biológico. “Embora a mudança faça parte da
dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem as ações
humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica” (Ibidem, p.
17). Daí se observar que tais mudanças não contribuíram para o bem comum e para
o desenvolvimento humano sustentável e integral, acarretando na deterioração do
planeta e da qualidade de vida humana. Nesta perspectiva Francisco traça sete
tópicos que são males da ação humana na Contemporaneidade.
O primeiro mau é a “Poluição e
mudanças climáticas”. São diversas e variadas as formas de poluição que
atingem a sociedade. Elas produzem efeitos desastrosos em diversos setores da
vida humana como, na saúde, na nos meios de transporte, na alimentação, na
cultura dos povos, nos bens naturais e nos diversos seres da criação divina. O
sistema tecnológico ligado a economia pretende ser uma única solução para tais
problemas, porém, ele é “incapaz de ver o mistério das múltiplas relações que
existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolve um problema criando
outro” (Ibidem, p. 19). Anualmente se produzem diversos poluentes, como os
resíduos tóxicos biodegradáveis (resíduos domésticos, comerciais, detritos de
demolições, resíduos clínicos, eletrônicos, industriais, resíduos tóxico e
radioativo). A poluição nos últimos anos está tão intensa que a “terra, nossa
casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo” (Ibidem.).
Muitas vezes as autoridades responsáveis só tomam medidas resolutivas quando as
pessoas já estão com problemas irreversíveis, na saúde e no modo precário de
vida. E o sistema econômico e político determinante não encontrou soluções plausíveis
para o mal que ela está gerando:
[...] o sistema industrial, no
ciclo de produção e consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e
reutilizar resíduos e detritos. Ainda não se conseguiu adotar um modelo
circular de produção que assegure recursos para todos e para as gerações
futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não
renováveis, moderando o seu consumo, maximizando e reciclando-os. (Ibidem, p.
20)
Essa poluição não é somente na
terra, mas atinge o céu, isto é, atinge o sistema climático. Contemponareamente
falando, o mundo está passando por um aquecimento climático. Seus efeitos são
desastrosos, como a alta concentração de gases de efeito estufa na camada de
ozônio que impedem os raios solares de se diluírem no espaço. O acumulo desses
gases prejudica o ciclo natural do ecossistema, dos recursos naturais (Rios,
açudes, solo...), e da biodiversidade do planeta. Isso afeta a própria vida
humana, e principalmente os mais pobres, que vivem e sobrevivem do trabalho
agrícola, da pesca e outros recursos florestais, nesses lugares onde há bens
naturais. Para evitar tais males no planeta, é preciso “tomar consciência da
necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para
combater esse aquecimento” (Ibidem, p. 21), porque suas causas estão na atividade humana que não respeita o
ecossistema e a dinâmica processual da natureza:
Muitos daqueles que detêm mais
recursos e por econômico ou político parecem concentrar-se, sobretudo, em
mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir
alguns impactos negativos de mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam
que tais efeitos poderão ser cada vez piores, se continuamos com os modelos
atuais de produção e consumo. (Ibidem, p. 24)
Daí
se faz urgente deslumbrar e criar um novo modelo de consumo e produção, nova
fontes de energia que não agridam tanto o sistema planetário. É necessário
desenvolver recursos sustentáveis e renováveis que não coloque a perder o
ecossistema e os recursos naturais que se tem. Ao mesmo tempo que se produzir
tais recursos, os mesmos devem estar a serviço do todos, do bem comum.
“A questão da água” é outro
ponto que precisa ser observado e denunciados para que se promova o bem comum.
Este ponto não está aquém do anterior, mas configura parte do “esgotamentos dos
recursos naturais” (Ibidem, p. 25). Nos países desenvolvidos é bem claro
observar um nível de vida, consumo e desperdício fora do comum, isto é, que
ultrapassa os limites da exploração do planeta. É nessa perspectiva que a água
ganha sua importância porque ela é indispensável para sustentar a vida dos seres
humanos, aquáticos e outros seres. Anteriormente no planeta se tinha bastante
água potável, mas agora, em muitos lugares a procura excede a oferta, com
graves consequências a curto prazo. Um exemplo dessa precariedade está na
África, onde vários setores da população não têm acesso a água potável. Em parecida situação estão os pobres dos
diversos países que possuem doenças relacionadas “com a água, incluindo as
causadas por micro-organismos e substâncias químicas. A diarreia e a cólera,
devido aos serviços de higiene e reservas de água inadequados, constituem um
fator significativo de sofrimento e mortalidade infantil” (Ibidem, p. 26).
Enquanto a qualidade da água
disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se
privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do
mercado. Na realidade, o cesso à água potável e segura é um direito humano
essencial, fundamental e universal, porque determina s sobrevivência das
pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos.
Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à
água potável, [...]. (Ibidem, p 26-27)
Enquanto em alguns lugares do mundo
há falta de água, em outros há o desperdício, mas esta ação não se restringe
somente a países desenvolvidos economicamente, mas aos subdesenvolvidos. A
persistência de tais práticas gerarão problemas para o futuro. Daí se faz necessário uma conscientização
esclarecida e reais sobre a gravidade de tais problemas. Não se trata de uma
propaganda e divulgação de tais males, mas de uma mudança de mentalidade e
comportamento. “Isto mostra que o problema da água é, em parte, uma questão
educativa e cultural” (Ibidem, p. 27). A escassez da água pode provocar um
aumento dos custos de alimentos, dentre outros produtos. E o controle de água
por parte de grandes empresas pode se transformar em principais fontes de
conflitos sociais.
Como terceira problemática está a “perca de biodiversidade”. Com a
exploração da terra, das florestas e faunas do mundo, com as formas
imediatistas de consumo e produção comercial, os recursos naturais e a
biodiversidade está sendo devastada e se acabando. “Anualmente desparecem
milhares de espécies vegetais, animais, que já não podemos conhecer, que os
nosso filhos não poderão ver, perdidas para sempre” (Ibidem, p. 28). A forma de
lidar com a natureza e seus seres está extrapolando a lei natural.
Independentemente do valor de consumo e exploração, os seres diversos e
praticamente infinitos que estão na casa comum são portadores de uma dignidade
em si mesma, pois provieram de Deus e assim como o ser humano possui uma função
importante e fundamental neste mundo:
É verdade que o ser humano deve
intervir quando um geossistema cai em estado crítico, mas hoje o nível de
intervenção humana em uma realidade tão complexa como a natureza é tal, que a
atividade humana torna-se onipresente, com todos os riscos que isto implica.
(Ibidem, p. 29)
Quarto
ponto: “Deterioração da qualidade de
vida humana e degradação social”. A busca desenfreada pelo lucro e desejo
desmedido de consumir geram mais danos para a sociedade do que benefícios. É
possível que nessa dinâmica de devastação ambiental a humanidade seja
testemunhas silenciosas de gravíssimas desigualdades social, quando quem está
na frente dessas intervenções queira obter benefícios significativos, fazendo o
restante da humanidade parar os altíssimos custos da degradação ambiental. “Os
ecossistemas das florestas tropicais possuem uma diversidade de enorme complexidade,
[...], mas, quando estas florestas são queimadas ou derrubadas para desenvolver
cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies” (Ibidem, p. 32). Além das
florestas, a flora silvestre, os oceanos, os rios, os lagos, manguezais, também
sofrem com a devastação da ação humana:
Tudo isso nos ajuda a compreender
como qualquer ação sobre a natureza pode ter consequências que não advertimos à
primeira vista e como certas formas de exploração de recursos se obtêm à custa
de uma degradação que acaba por chegar até o fundo dos oceanos. (Ibidem, p. 34)
Como foi dito no início dessa
pontuação a degradação do ambiente planetário não está aquém da degradação
humana, mas configura parte da mesma em uma dupla direção: da humanidade para a
natureza e da natureza para humanidade. É neste segundo aspecto que não é
possível “deixar de considerar os efeitos da degradação ambiental, do modelo
atual de desenvolvimento e da cultura do descarte sobre a vida das pessoas”
(Ibidem, p. 35). Com a devastação do sistema natural, as obras humanas se
tornam mais imperantes e dominantes. Tai obras se tornam um caos para saúde
humana, nos seus diversos âmbitos, por exemplo, com os problemas da poluição
química, visual e acústica, com o tráfego louco do transporte, dentre outras
coisas. Neste sentido é possível observar que:
Muitas cidades são grandes
estruturas que não funcionam, gastando energia e água em excesso. Há bairros
que, embora construídos recentemente, apresentam-se congestionados e
desordenados, sem espaço verde suficiente. Não é conveniente para os habitantes
desse planeta viver cada vez mais encoberto de cimento, asfalto, vidro e
metais, privado do contato físico com a natureza. (Ibidem, p. 35)
Enquanto
em algumas áreas se preservam um espaço arborizado ou de preservação ecológica,
tais espaços se tornam disponível apenas para alguns, enquanto que nas áreas
mais precárias e difíceis, nada é feito. Tai áreas são, na maioria das vezes,
onde vivem os descartados da sociedade. A exclusão social, a desigualdade, a
fragmentação social, o aumento da violência, e o aparecimento de novas formas
de agressividade, o narcotráfico, o consumo de drogas e a perda da identidade
pessoal são alguns sinais de que o crescimento econômico e tecnológico não
significou um progresso integral, portanto, humanitário. O mundo virtual até
certo ponto não está favorecendo a capacidade de viver com sabedoria e manter
relações fraternas reais. O mundo virtual apesar de possibilitar a comunicação
e compartilhamento de conhecimentos e afetos, até certo ponto impede o ser
humano de ter um contato direto com o outro, com a vida, com suas angustias,
alegrias e tristezas.
O quinto ponto, “Desigualdade planetária”, envolve os dois polos da reflexão, a
saber, a degradação do ambiente humano e do ambiente planetário. É nesse
processo dinâmico destrutivo que grita a maioria da população planetária: os
pobres. “Tanto a experiência comum da vida cotidiana como a investigação
científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões
ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres” (Ibidem, p. 38). Apesar de no
meio político eles serem mencionados, muitas vezes eles parecem ser colocados
como uma questão que se acrescenta ao debate e projeto político, e não como
efeito de um sistema estrutural limitado, desigual e de exclusão.
Uma das causas desse descaso é a distância, dos que estão à frente do
governo e gestão política, da realidade sócio-local dos pobres. Neste sentido o
projetos e busca de melhorias para o povo acaba sendo refletido a partir da
comodidade de uma qualidade de vida que não está nas condições da maioria da
população mundial. Essa forma de abordagem e falta de consciência da realidade
dos pobres favorece uma letargia da consciência e indiferença para outras
realidades. Alguns tentam resolver o problema propondo uma redução da
natalidade, porém tal medida não é compatível com as causas reais da
desigualdade e pobreza: o consumismo exagerado e seletivo de alguns. Junto a
essas ações que degradam a vida e o meio ambiente está as multinacionais que
nos países subdesenvolvidos exploram todos os recursos e geralmente “quando
cessam suas atividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais,
como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento de algumas reservas naturais,
desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local” (Ibidem, p.
42) e etc. Para diminuir essa disparidade e desigualdade entre ricos e pobres é
preciso que os países ricos “contribuam para resolver esta dívida, limitando
significativamente o consumo de energia não renovável e fornecendo recursos aos
países mais necessitados para promover políticas e programas de desenvolvimento
sustentável” (Ibidem, p. 43).
“A fraqueza das reações” é o sexto
tópico. Diante das ações humanas que agridem e exploram a natureza e até seu
gênero, o tempo exigem medidas mais fortes para combater o caminho pelo qual se
direciona as nações. Assim afirma o Papa, “Nunca maltratamos e ferimos a nossa
casa comum como nos últimos dois séculos [...]. O problema é que não dispomos
ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise e há necessidade de
construir lideranças que apontem caminhos” (Ibidem, p. 44). Infelizmente o
sistema político atual está fraco, porque submisso a duas forças de poder: a
tecnologia e a economia. “Há demasiados interesses particulares e, com muita
facilidade, o interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum e
manipula a informação para não ver afetados os seus projetos” (Ibidem, p. 45).
Diante dessas forças motivados e efetivas da degradação humana e ambiental,
qualquer tentativa de organizações sociais para alterar as coisas será vista
como ações de sonhadores românticos ou obstáculos para serem superados. Por
isso, “hoje, ‘qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica
indefesa perante os interesses do mercado divinizado, transformados em regra
absoluta’” (Ibidem, p. 46)
Enfim, no último ponto “Diversidade
de opiniões”, Francisco afirma que alguns defendem o mito do progresso
social e ecológico a partir da evolução
tecnológica sem considera a situação atual em que a humanidade vive e sem
observar a ética nesse percurso. No extremo o posto estar os que querem que não
se intervenham mais no planeta e nem se promova mais sua a presença no mundo. Contrários a tais pontos de vista Francisco
considera buscar possíveis senários para o futuro:
Sobre muitas questões concretas, a
Igreja não tem motivo para propor um palavra definitiva e entende que deve
escutar e promover o debate honesto entre os cientistas, respeitando a
diversidade de opiniões. Basta, porém, olhar a realidade com sinceridade, para
ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum. A esperança convida-nos
a reconhecer que sempre há uma saída [...]. (Ibidem, p. 49)
h)
Sintomas e
causas da degradação humano-ecológica.
Ao expor
algumas questões sobre a realidade humana e ecológica na Contemporaneidade,
suas problemáticas e situações gritantes que clamar para uma resolução, agora
se faz necessária observar de modo mais amplo e categórico alguns sintomas e
causas que proporcionam tais problemas na degradação humano-ecológica. Para
isso se apresenta em questão o terceiro capítulo da Laudato Si’, a saber, a raiz
humana da crise ecológica. É desse itinerário reflexivo que Francisco se
detém sobre a questão do paradigma tecnocrático e o lugar que nele ocupa o ser
humano e sua ação no mundo. Ora, não é possível deixa de valorizar que os
últimos dois séculos são ricos de progresso em diversos âmbitos. É justo que a
humanidade se alegre “com estes progressos e nos entusiasmemos à vista das
amplas possibilidades que nos abrem estas novidades incessantes, porque ‘a
ciência e a tecnologia são um produto estupendo da criatividade humana que Deus
nos deu” (Ibidem, p. 83-84). E tais progressos foram propícios para melhorar a
qualidade de vida humana, porém não é possível negar que toda essa
potencialidade concebeu ao humanidade um poder tremendo:
Ou melhor: dão,
àqueles que detêm o conhecimento e, sobretudo, o poder econômico para
desfrutá-lo, um domínio impressionante sobre o conjunto do gênero humano e do mundo
inteiro. Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que
utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está fazendo.
(Ibidem, p. 85)
Toda essa
aquisição de poder tenta se justificada por maior segurança, potencialidade,
utilidade, bem-estar e outras coisas, como se tal força tecnológica e econômica
fosse a promotora do bem e da verdade humana. Neste sentido o desenvolvimento e
potencialidade que há nas mãos da humanidade, e de modo mais concreto, nas mãos
dos grandes poderes econômicos, sociais e políticos que se tem, precisam se
submetido à uma ética sólida, uma cultura e espiritualidade que lhes der limite
e um lúcido domínio sobre si. A raiz histórica de tais problemas é que o
“crescimento [tecnológico] não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser
humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência” (Ibidem, p. 86). Junto
disso está a falta de limite do ser humano em utilizar-se de suas
potencialidades. Essa ausência de senso ético chegou na sua concretude quando
se deixou de respeitar a natureza e de fazê-la frutificar na sua dinâmica
própria potencial, isto é: quando se deixou de receber nas mãos o que a
realidade natural oferecia. Neste sentido, o problema contemporâneo se
apresenta no novo modo de ver e usufruir da natureza:
Mas, agora, o
que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão
humana, que tente a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua
frente. Por isso, o ser humano e as coisas deixam de se dar amigavelmente,
tornando-se controversas. Daqui se passa facilmente à ideia de um crescimento
infinito ou ilimitado, que entusiasmou os economistas, os teóricos da economia
e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta,
o que leva a “espremê-lo” até ao limite e para além do mesmo. (Ibidem, p. 87-88)
O
desenvolvimento tecnológico se tornou mais do que um instrumento de bem viver
social. Ele se tornou um objeto de poder e condicionamento cultural em massa,
alterando e condicionando o modo de pensar e viver da sociedade. Tal paradigma
tecnicista é utilizado como linha de determinados grupos de poder que, no
sistema econômico e técnico determinante, pretende manter o status quo. Essa
força de poder que se impõe sobre a vida social também se impõe sobre a
natureza e é contrária a qualquer cultura e estilo de vida que não queira se
submeter ou se tornar dependente dela:
Com efeito, a
técnica tem a tendência de fazer com que nada fique fora da sua lógica férrea,
e “o homem que é o seu protagonista sabe que, em última análise, não se trata
de utilidade nem de bem-estar, mas de domínio; domínio no sentido extremo da
palavra”. Por isso, “procura controlar os elementos da natureza e,
conjuntamente, os da existência humana”. Reduzem-se assim a capacidade de
decisão, a liberdade mais genuína e o espaço para a criatividade alternativa
dos indivíduos. (Ibidem, p. 89)
É
diante do paradigma tecnocrático e em vista de tal perspectiva que a economia e
a política, atualmente, está se regendo. Essa submissão e preocupação produtiva
se realiza em função do lucro. Por esse motivo o mercado de finanças continuam
a todo vapor, sem medir as consequências catastróficas que a técnica produz
para o estilo de vida social contemporâneo. É nessa dinâmica que a política e a
economia investem em especializações técnicas, porém tais ações e investimentos
comportam uma redução na forma de ver e responder a realidade no seu conjunto.
“A fragmentação do saber realiza a sua função no momento de se obter aplicações
concretas, mas frequentemente leva a perder o sentido da totalidade, das
relações que existem entre as coisas, do horizonte alargado” (Ibidem, p. 91). Isso
impede de se resolver problemas mais complexos e que exigem uma visão mais
ampla sobre a realidade. Não se pretende
dizer que a técnica em si é um mal para humanidade, mas que sua forma de
atuação na Contemporaneidade precisa estar direcionada para outros caminhos que
não sejam a degradação do meio ambiente e da vida humana, em especial, os mais
pobres. Por isso deveria se ter socialmente “um olhar diferente, um pensamento,
uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade
que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático” (Ibidem, p. 92):
O que está
acontecendo põe-nos perante a urgência de avançar em uma corajosa revolução
cultural. A ciência e a tecnologia não são neutras, mas podem, desde o início
até ao fim de um processo, envolver diferentes intenções e possibilidades que
se podem configurar de várias maneiras. Ninguém quer o regresso à Idade da
Pedra, mas é indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade de outra
forma, recolher os avanços positivos e sustentáveis e ao mesmo tempo recuperar
os valores e os grandes objetivos arrasados por um desenfreamento megalômano.
(Ibidem, p. 95)
Ora,
a crise que se tem contemporaneamente no mundo natural e no universo da cultura
atual, devido ao paradigma tecnocrático e o influxo do sistema económico e
mercadológica, denuncia suas raízes mais profundas. A crise ecológica e do
estilo normativo de vida tem suas raízes no ser humano. Daí fundamentalmente é
importante falar de uma crise
antropológica contemporânea com suas consequências globais. “O
antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica
acima da realidade, porque este ser humano ‘já não sente a natureza como norma
válida nem como um refúgio vivente” (Ibidem, p. 95). É nesse percurso que a
humanidade está se desviando de seu original e próprio lugar na terra e do
valor originário da terra, da natureza, do meio ambiente. Tal consciência
requer um respeito pela estrutura natural e moral com que a humanidade foi
criada e pelo seu meio, pois tudo isso foi obra de Deus. Neste sentido de desvio ético, moral, social
e, por conseguinte, ecológico é que está instaurado a crise antropológica
atual:
A falta de
preocupação por medir os danos à natureza e o impacto ambiental das decisões é
apenas o reflexo evidente do desinteresse em reconhecer [a si, como parte
responsável da realidade e] a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas
próprias estruturas. Quando, na própria realidade, não se reconhece a
importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência-
só para dar alguns exemplos-, dificilmente se saberá escutar os gritos da
própria natureza. (Ibidem, p. 96)
Daí
ser fundamental uma nova relação com a natureza que respeite sua dinâmica
própria de modo interrelacional, autentico e dignificante. Todavia uma mudança
de ação com a natureza não está dissociada de uma nova relação humana. “Se a
crise ecológica é uma expressão ou manifestação externa da crise ética,
cultural e espiritual da modernidade, não [se]pode[...] iludir[...] de sanar a
[...] relação com a natureza e o meio ambiente, sem curar todas as relações humanas
fundamentais” (Ibidem, p. 98). Em decorrência da crise ecológica, cultural e
antropológica Francisco faz três pontuações que se relacionam com a questão exposta.
A primeira
se reporta ao relativismo prático. Este se caracteriza como mais perigoso do que
o assentamento fundamentalista doutrinal. Porque nesse relativismo o que se
torna relevante para os indivíduos é somente tudo aquilo que serve aos
interesses particulares e imediatos. Sendo que o que não entra nessa lógica é
descartado. É nessa perspectiva que se
desenvolve uma cultura que impele uma pessoa a aproveitar-se da outra e
trata-la como mero objeto e não como sujeito digno de diálogo e relação
construtiva. É nessa lógica que se patenteia todos os tipos de exploração, como
a degradação ambiental, o tráfico de drogas e pessoas, a criminalização
organizada e outros tipos exploração e exclusão social, “porque, quando é a
cultura que se corrompe deixando de reconhecer qualquer verdade objetiva ou
quaisquer princípios universais válidos, as leis só se poderão entender como
imposições arbitrárias e obstáculos a evitar” (Ibidem, p. 101).
A segunda
pontuação coloca como processo de integração entre ecologia e a inclusão
social, o trabalho. Mas não se trata de uma concepção tradicional e reduzida de
trabalho como atividade profissional. Não se fala “apenas do trabalho manual ou
do trabalho da terra, mas de qualquer atividade que implique alguma
transformação do existente, desde a elaboração de um balanço social até ao
projeto de um processo tecnológico” (Ibidem, p. 102). O homem “é o centro e o
fim de toda a vida econômico-social. Apesar disso, quando no ser humano se
deteriora a capacidade de contemplar e respeitar, criam-se as condições para se
desfigurar o sentido do trabalho” (Ibidem, p. 103). A evolução tecnológica não
deveria suprimir o trabalho humano, mas auxiliá-lo. O trabalho é uma
necessidade para o sentido da vida nessa terra e para maturação humana. E neste
sentido até o auxílio em dinheiro para os pobres deveria ser algo provisório,
enquanto eles não tivessem condições de trabalho. Enfim, o desenvolvimento
tecnológico acabou estimulando a redução de trabalhadores e o desempregos
humano. Essa pratica é perniciosa para o ser humano. Neste sentido o trabalho
para todos e a integração ao mercado deve ser um direito de todos e não
privilégios de alguns.
Por fim, Francisco
trata da inovação biológica a partir da pesquisa. É sabido que o homem pode se
servir do mundo vegeta e animal para sua vida, porém essa possibilidade de
intervenção não pode extrapolar seus limites e desrespeitar as potencialidades
criativas da natureza na sua lógica determinante. Ora, “toda e qualquer
intervenção em uma área determinada do ecossistema não pode prescindir da
consideração das suas consequências noutras áreas” (Ibidem, p. 107). Não se
pode haver uma negação da contribuição que as variadas disciplinas e pesquisas
biológicas têm para humanidade, porém tais pesquisas e práticas não podem ter
uma indiscriminada manipulação da biodiversidade que existe no planeta. Em
suma, qualquer atividade técnica e de pesquisa biológica precisa ter um
fundamento ético para não gerar problemas para o desenvolvimento e dignidade
integral humana e dos demais seres.
i)
Linhas
proféticas de ação.
Depois de
explanar algumas questões referente a Contemporaneidade na sua problemática
humano-sócio-global, Francisco apresenta algumas linhas de ação que podem
proporcionar um caminho renovado e esperançoso no profetismo para a futuro
humano da casa comum, o planeta. Para isso ele destaca como norte de esperança:
o diálogo. Este se ramifica em cinco modalidades a saber, 1) o diálogo sobre o
meio ambiente na política internacional; 2) o diálogo para novas políticas
nacionais e locais; 3) diálogo e transparência nos processos decisórios; 4)
política e economia em diálogo para a plenitude humana; e 5) as religiões no
diálogo com as ciências.
Na
primeira modalidade é vista a questão de se ter uma visão de mundo mais global,
concebendo “o planeta como pátria e a humanidade como povo que habita uma casa
comum” (Ibidem, p. 133). Tal visão tem um pretensão prática-social de pensar em
reconstruir um único mundo, um projeto comum, que beneficie a todos e não
somente aos países desenvolvidos. Neste sentido:
[...] torna-se
indispensável um consenso mundial que leve, por exemplo, a programar uma
agricultura sustentável e diversificada, desenvolver uma forma de energia
renováveis e pouco poluidoras, fomentar uma maior eficiência energética,
promover uma gestão mais adequada dos recursos florestais e marinhos, garantir
a todos o acesso à água potável. (Ibidem, p. 134)
Tais
medidas se fazem urgentes, pois o sistema tecnológico, baseado nos combustíveis
fosseis altamente poluentes está gerando uma deterioração do meio ambiente e da
vida dos diversos seres que existem no mundo, dentre estes, o ser humano. Tal
modelo técnico-energético-químico precisa ser substituído por outras fontes de
energias renováveis. Isso acarretaria prejuízos para os países que se utilizam
fortemente desses recursos de produção sócio-cultural-técnica, porém esse é o
caminho que tais países devem se submeter para salvação da casa comum. Ademais
eles devem ser os principais motivadores de tais mudanças, pois são os
principais responsáveis pelos presentes danos em nível global. Daí é preciso
realizar mudanças significativos para o bem desta geração:
Neste sentido,
pode-se dizer que, enquanto a humanidade do período pós-industrial talvez fique
recordada como uma das mais irresponsáveis da história, espera-se que a
humanidade dos inícios do século XXI possa ser lembrada por ter assumido com
generosidade as suas graves responsabilidades. (Ibidem, p. 135)
É
claro que já se tem feito esforços nesse sentido com os movimentos ecológicos e
as organizações sociais civis. “Dentre elas, há que recordar a Cúpula da Terra,
celebrada em 1992, no Rio de Janeiro” (Ibidem, p. 135), onde se proclamou a
preocupação centrada no ser humano, no processo de desenvolvimento sustentável.
Teve-se também a “Convenção de Basileia sobre os resíduos perigosos, com um
sistema de notificação, níveis estipulados e controles, e também a Convenção
vinculante sobre o comércio internacional das espécies da fauna e da flora
selvagem” (Ibidem, p. 136), dentre outras, porém tais ações não são suficientes
para sanar o problema atual. É preciso medidas que efetive o cuidado com a casa
comum, diminua as intervenções drásticas no planeta e se solidarize com os
países mais afetados:
Para os países
pobres, as prioridades devem ser a erradicação da miséria e o desenvolvimento
social dos seus habitantes; ao mesmo tempo devem examinar o nível escandaloso
de consumo de alguns setores privilegiados da população e contrastar melhor a
corrupção. Sem dúvida, devem também desenvolver formas menos poluentes de
produção de energia, mas para isso precisam contar com a ajuda dos países que
cresceram muito à custa da atual poluição do planeta. (Ibidem, p. 139)
Se
na primeira modalidade se observa uma questão global, isto é, entre países,
nesta segunda a reflexão entra no âmbito nacional e local. Neste âmbito o
Estado tem a função e responsabilidade de planificar, coordenar, vigiar e
sancionar dentro do seu território. Diante do paradigma tecnológico, o “fator
que atua como moderador efetivo é o direito, que estabelece as regras para as
condutas permitidas à luz do bem comum.” (Ibidem, p. 143). Todavia, não se pode
negar que em muitos países, as medidas de desenvolvimento humano saudáveis e
integral não são realizadas como deveriam, pois “O poder político tem muita
dificuldade em assumir este dever em um projeto de nação” (Ibidem, p. 143).
Porém:
Dado que o
direito por vezes se mostra insuficiente devido à corrupção, requer-se uma
decisão política sob pressão da população. A sociedade, através de organismos
não governamentais e associações intermédias, deve forçar os governos a
desenvolver normativas, procedimentos e controles mais rigorosos. Se os
cidadãos não controlam o poder político- nacional, regional e municipal-,
também não é possível combater os danos ambientais. (Ibidem, p. 144)
Porém,
tais mudanças na gestão política de um país, em prol do desenvolvimento
humanitário e social, não podem ser de cunho imediatista e a curto prazo, isto
é, conforme o período de governo de determinados líderes. É preciso tomar em
questão o processo de mudanças que deve ser continuado sobre o olhar da
população. Neste sentido o aparato tecnológico nos diversos ramos de atividade
humana precisam estar a serviço de uma qualidade de vida do ser humano e do
meio ambiente de modo integral e sustentável.
A
terceira modalidade apresenta a necessidade de um diálogo e transparência nos
processos decisórios. O estudo sobre o impacto dos projeto sobre a vida civil
não deveria ser inferior à elaboração dos projetos de interesse produtivo,
plano ou programa. Tais projetos
deveriam estar distante de qualquer pressão económica e política. Eles deveriam
“aparecer unido à análise das condições de trabalho e dos possíveis efeitos na
saúde física e mental das pessoas, na economia local, na segurança. Assim os
resultados econômicos poder-se-[ia][...] prever de forma mais realista” (Ibidem,
p. 147). Os debates sobre tais projetos devem ter a participação de todos, e
devem “ter lugar privilegiado os moradores locais, aqueles mesmos que se
interrogam sobre o que desejam para si e para os seus filhos e podem ter em
consideração as finalidades que transcendem o interesse econômico imediato”
(Ibidem, p. 148). Neste sentido algumas questões seriam necessárias para tal
avaliação dos projetos:
Em qualquer
discursão sobre empreendimento, deve-se-ia pôr uma série de perguntas, para
poder discernir se o mesmo levará a um desenvolvimento verdadeiramente
integral: Para que fim? Por qual motivo? Onde? Quando? De que maneira? A quem
ajuda? Quais são os riscos? A que preço? Quem paga as despesas e como fará?
(Ibidem, p. 149)
A quarta
modalidade implica na não submissão da política à economia e desta ao paradigma
tecnocrático. Mas pelo contrário, essas três formas de poder deveriam estar a
serviço do bem comum e da vida, em especial, da vida humana. Deste modo os
bancos que estão a serviço do dinheiro deveriam passar por mudanças na sua
estrutura e modo de serviço. O mercado que extrapola o valor de lucro sobre o
produto e explora os bens naturais geram um desequilíbrio social em prol da
econômica. Mas invés de equilibrar e distribuir equitativamente a economia ele
a torna mais desigual e danifica muitas econômicas regionais:
Em suma, o que
não se enfrenta com energia é o problema da economia real, aquela que torna
possível, por exemplo, que se diversifique e melhore a produção, que as
empresas funcionem adequadamente, que as pequenas e médias empresas se
desenvolvam e criem postos de trabalho. (Ibidem, p. 152)
O lucro não
deve ser a máquina propulsora dos investimentos, mas o bem comum, a dignidade
humana, a vida social e cultural de um povo, por isso é que se precisa diminuir
o passo do motor consumista e produtivista tecnocrático-capitalista e criar um
novo modelo de desenvolvimento. Para que se tenha novos modelos de progresso, é
preciso “‘converter o modelo de desenvolvimento global’, e isto implica
refletir responsavelmente ‘sobre o sentido da economia e dos seus objetivos,
para corrigir as suas disfunções e deturpações’” (Ibidem, p. 155). No senário
atual se precisa “de uma política que pense com visão ampla e leve em frente
uma reformulação integral, abrangendo em um diálogo interdisciplinar os vários
aspectos da crise” (Ibidem, p. 157). Ela
não deve se submeter as empresas de grande poder aquisitivo e nem ao sistema
econômico, mas encontrar caminhos de subsidiariedade local, regional e do país.
Por fim, a
última modalidade apresenta a necessidade de diálogo entre as religiões e as
ciências. Se na contemporaneidade as ciências atingiram níveis elevados de
aperfeiçoamento técnico e caminhos novos de conhecimento prático, isso não fez elas
explicarem completamente a vida, a essência íntima de todas as criaturas e o
conjunto da realidade. É deste modo que as religiões assumem seu valor e importância
ainda hoje, porque elas tem sua força histórica e espiritual que podem oferecer
significativo caminho para as pessoas na Contemporaneidade.
Seria ingenuidade
acreditar que os princípios éticos pelos quais se deve reger a sociedade são
puramente abstratos, isto é, não provem de uma contexto religioso e de uma
linguagem religiosa. Do mesmo modo, tais princípios se perpetuam inovadamente,
ainda hoje, por diversas linguagem, dentre as quais ganha sua importância, a
religiosa. Pois tais princípios tonam possível a convivência social. E nesse sentido Francisco faz “apelo aos
crentes, para que sejam coerentes com sua própria fé e não a contradigam com
suas ações; será necessário insistir para que se abra novamente a graça de Deus
e se nutram profundamente das próprias convicções sobre o amor, a justiça e a
paz” (Ibidem, p. 160). Em suma ele cita:
A maior parte
dos habitantes do planeta declara-se crente, e isto deveria levar as religiões
o estabelecer diálogo entre si, visando ao cuidado da natureza, à defesa dos
pobres, à construção de uma rede de respeito e de fraternidade. De igual modo é
indispensável um diálogo entre as próprias ciências [...]. (Ibidem, p. 161)
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