quinta-feira, 29 de junho de 2017

O Crer em América Latina


Introdução
            O aspecto do Crer em América Latina (AL) tem uma marca no Espírito do Concílio Vaticano II que contribuiu para a articulação da fé no nosso continente. Os pressupostos inter-relacionais e fundamentais do “Crer” – Revelação, Fé e Credibilidade – dinamizam-se para uma experiência vivencial cristã latino-americana. Tal experiência possui um modo particular e diferenciado de expressão que é distinto da experiência dor Crer cristão na Europa e nos diversos períodos da história do ocidente. A realidade do continente latino-americano de pobreza, injustiça, desigualdade e degradação ambiental é o espaço que se configura e se define o Crer cristão numa acolhida da Boa-Nova de Deus e com uma práxis evangelizadora e libertadora da pessoa humana. O Papa Francisco é esse referencial de continuidade e revitalização para o crer-revolucionário em tal continente. 
1 Revelação, Fé e Credibilidade: uma exigência do Crer em América Latina
            A experiência cristã na AL pressupõe teoricamente os três termos básicos presentes na Teologia Fundamental, a saber, a Revelação, a Fé e a Credibilidade. É no vínculo entre essas temáticas que podemos nos orientar para compreender o que significa e como se caracteriza o Crer em América Latina. A Revelação é a proposta de Deus para o ser humano, ela não provem do homem, mas faz parte da “autocomunicação de Deus” que se manifesta ao ser humano e exige dele uma resposta de fé. Neste sentido a Fé se classifica como um ato livre de acolhida de Deus e de sua Revelação. O ato de fé presente na AL só é possível pela Credibilidade que a Revelação possui. Assim só se acolhe a Revelação porque ela é possível e porque tem credibilidade em Deus mesmo que não pode se contradizer e nem nos enganar (DH 3017). Todavia, em vez de falarmos do conceito de “fé” na AL, como expressão relevante da experiência cristã nesse continente, seguimos a linha do Teólogo Jesuíta Eugenio Rivas, no artigo Creer en América Latina, acerca do conceito que seria mais apropriado para falar da experiência cristã: o “crer”.
A rigor, crer em AL ou a fé em AL são equivalentes. Porém preferimos o verbo crer, precisamente, porque queremos sublinhar o dinamismo prospectivo e ascendente da proposta que se nos oferece como caminho, verdade e vida (Cfr. Jn 14,6) e que o substantivo fé poderia obscurecer, pela mesma função do substantivo no artifício de linguagem, ao sugerirmos a imagem ou a ideia de uma substância estável, de um fato adquirido, de um absoluto. O verbo nos dá a imagem viva deste ato singuar e único (ato de fé), mantem seu caráter itinerante e provisório, nos trasmite o sentimento de que na respota fica sempre algo que necessita ser restabelecido e completado, nos abre à invenção.[1]
            O Crer em AL dá continuidade ao que foi tratado no Concílio Vaticano II, na Dei Vebum: “a obediência da fé” (DV, n. 5). Ele se classifica como uma adesão há aquilo que Deus nos revelou por meio dos “nossos primeiros pais” (DV, n. 3), por meio dos profetas e “pelo Filho” (DV, n. 4) Jesus, a Palavra de Deus encarnada.  O Crer também é uma resposta para Deus em um diálogo de salvação. Para além de um reducionismo conceitual, o Crer se refere àquilo que nos foi Revelado e o que nos é transmitido pela Igreja (LIBANIO, 2004, p. 25). Na AL os parâmetros do Crer se situam em novos e particulares espaços contextuais distintos dos espaços e contextos da Europa.
2 Espaços históricos e referenciais do Crer em América Latina
Na AL o Crer cristão estar em espaços geográficos e históricos distintos dos espaços da cristandade medieval. Esta vivenciou a experiência do Crer numa identificação entre o ser cristão e o ser cidadão (PALÁCIO, 2004, p.181) a partir dos centros hegemônicos das cidades e na união entre a Igreja e o Estado. Porém, na AL isso não se patenteou. A especificidade do Crer latino-americano se realiza “na periferia do mundo, num continente que vive terrível situação de injustiça [...]” (LIBÁNIO, 2004, p. 50). Trata-se de uma mudança de paradigma, na experiência de fé a partir de uma realidade e de uma posição esquecida na história: a dos vencidos, dos explorados, dos excluídos. Tais vencidos possuem rostos específicos: os índios, os negros, as mulheres (RICHARD, 1987, p. 6). É nesse sentido que o Crer em AL se redireciona a partir das periferias. Tal espaço deslocou o polo dinamizador da fé cristã tradicional para a experiência humana do oprimido. Trata-se de uma virada antropológica sob o clímax da importância pessoal dos espoliados e o esquecimento de um tipo de doutrina ou tradição não compatível com essa nova realidade. Isso “provocou, num primeiro momento, uma concentração no sujeito que crer” (LIBANIO, 2004, p. 64-65) sob uma experiência de fé particular, nunca tanto explicitada na história: a experiência do Crer a partir de um contexto e sob a condição de vida dos fracos e oprimidos. O sujeito crente latino-americano se classifica categoricamente como “o Pobre”:
Nunca na história das teologia cristãs, o pobre ganhou tanta centralidade. Procurar construir toda teologia a partir da perspectiva das vítimas para denunciar os mecanismos que as fizeram vítimas e ajudar, com a bagagem espiritual do cristianismo, na sua superação mediante a gestação coletiva de uma sociedade com mais chances de vida, de justiça e de participação[...]. (BOFF, 1996, p.81)
A opção preferencial pelos pobres, além de ter o seu caráter espiritual, se fundamentou em uma concretude histórica, com uma preocupação e prática social.  A AL “deu uma guinada em direção ao social, repensando a fé nesse horizonte. Neste momento, a opção pelo pobre, [...], assumiu relevância especial questionando todo o pensar teológico, cristão e simplesmente humano” (LIBANIO, 2004, p. 22).  Adjunto a opção preferencial pelos pobres também está a realidade ecológica que interpela o olhar do crente para a natureza. Esta se relaciona diretamente com a causa dos pobres, pois assim como há um grito pela justiça para com os pobres, a terra também clamar por justiça: “Há um grito absolutamente iniludível: o da terra. Esta morrendo, todos morremos juntos” (Ibid., p.137). É nesse aspecto que o Crer cristão assume os espaços de atuação e atualiza como resposta para os novos tempos. Todavia, uma nova categoria faz parte da experiência do Crer latino-americano: a práxis. É em vista desta que o Crer em AL se define como uma experiência antropológica e transcendental, que tanto compromete o sujeito com a realidade como o impulsiona a transformá-la. Assim o Crer latino-americano é tanto comprometido como transformador da realidade que o cerca, para que nesta mesma realidade se patenteie as sementes do Reino. A Teologia da Libertação se fez como uma referência significativa para a vivencia da fé na AL:
A teologia da libertação sobressai na compreensão operativa da fé. Já desde suas primórdios, ela insiste nesse aspecto. Sua pretensão é ser uma teologia da prática do cristão. Isso significa que a fé leva o cristão a uma ação transformadora. [...] A fé participou dessa atitude prometeica da modernidade com toda a sua ambiguidade. Deixou de ser fonte alienadora de pura contemplação enquanto as forças conservadoras dominavam e dirigiam a sociedade. Nisso deu passo gigantesco. (LIBANIO, 2004, p. 137-138).
A experiência cristã na AL é marcada por momentos históricos contextuais particulares que influenciaram e contribuíram para atualização da mensagem salvífica divina encarnada. É nesse espaço de injustiça, exploração e desigualdade social que o sujeito que Crer é chamado para responder com maior disponibilidade aos apelos do Evangelho, nessa nova realidade que o interpela, na fé e na vida, para ser um sinal de Cristo que liberta seu povo na história e leva o ser humano para a sua plenificação escatológica. Atualmente está emergindo novas tendências de vivencia do Crer cristão em AL. “Acentuam-se a decisão, a ecumenicidade, a vivência do cotidiano, a dimensão simbólica, estética e comunicativa, o lado emocional-carismático” (Ibid., p.22). Se o concílio Vaticano II foi o impulsionador de um aggiornamento do Crer da Igreja e para a AL, no Papa Francisco encontramos o sinal referencial dessa atualização que continua.
3 Papa Francisco: referência contemporânea para o Crer em América Latina
            Desde o início do pontifício do Papa Francisco que a Igreja em vários continentes do mundo vem renovando o Crer cristão e sua experiência prática teológica. Esse fato tem grande significado para os cristãos da AL porque tal Papa possui um espírito continuador do Concílio Vaticano II assim como da experiência do Crer no nosso continente. Tal vitalidade espiritual pode ser observada nos seus diversos escritos. Na Carta Circular aos Consagrados e às Consagradas do Magistério do Papa Francisco (:Alegrai-vos, 2014) alguns elementos da mensagem de Francisco têm relevância fundamental para a experiência cristã latino-americana. Nela o Crer se situa no mistério da “Boa-Nova que, acolhida no coração da pessoa, transforma” (ALE, n. 1) a vida humana. Essa experiência possui uma novidade revolucionária: “Uma alegria do coração (cf. Is 66,14) que passa por Deus [...] e se difunde em meio a um povo mutilado por mil humilhações” (ALE, n. 13). É a experiência da Revelação da Palavra de Deus encarnada que produz a verdadeira alegria em um mundo marcado por injustiça, desigualdades, humilhações e exclusão. É nesse sentido que o Crer cristão traz em Deus a resposta gratuita e generosa para os anseios humanos. O Crer cristão não se fundamenta no homem em si, mas em Deus que toma a iniciativa de salvar e redimir a humanidade desde a sua vocação primeira vital: “não fostes vós que me escolhestes, fui Eu que vos escolhi” (Jo 15,16).
            A relevância do primado divino na fé cristã situa o ser humano numa abertura e relação para com o outro. É uma resposta de fé que está em comunhão, solidariedade e diálogo com Deus e com o próximo de modo dinâmico. A dinâmica com a Palavra de Deus “suscita a fé, a alimenta, a regenera. É a Palavra de Deus que toca os corações, converte-os a Deus e à sua lógica que é tão diferente da nossa” (ALE, n. 6). Na Misericordiae Vutus encontramos dois conceitos que Francisco desenvolve na proposta do Ano Santo da Misericórdia. Tais conceitos chegam a ter uma ressonância na experiência do Crer no nosso continente. Trata-se da dinâmica entre Misericórdia e Justiça na fé: “Não é a observância da lei que salva, mas a fé em Jesus Cristo, que, pela sua morte e ressurreição, traz a salvação com a misericórdia que justifica. A justiça de Deus torna-se agora a libertação para quantos estão oprimidos [...]” (MV, p. 24).  
Na Evangelii Gaudium encontramos elementos que expressam essa continuidade revolucionária do Crer, como: a nova evangelização para a transmissão da fé, pela pastoral ordinária, pelas pessoas que não vivência uma pertença à Igreja e não experimentam uma consolação da fé, e a necessidade da proclamação da palavra de Deus como missão primeira de evangelização (EG, n. 14). O aspecto dialogal teológico da AL é motivado para uma Igreja “em saída”: “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG, n. 20). A proposta renovada de fé se relaciona com o amor: “Aqui o que conta é, antes de mais nada, ‘a fé que atua pelo amor’” (EG, n. 37).
A postura cristã na AL é motivada para uma continuidade profética do “não” à economia da exclusão, à idolatria do dinheiro e à desigualdade social que gera violência (EG, n. 53-60). A dinâmica da fé proposta pelo Papa tem um respaldo renovado na AL sob o signo da justiça e misericórdia de Deus, da Boa-Nova da fé e da praticidade profético-libertadora e dignificadora da humanidade. Na Laudato Si’ é possível encontrar no âmbito da experiência cristã a intrínseca relação entre a experiência humana com Deus e as relações sociais com o outro e com a natureza. Assim o âmbito do Crer em AL se amplia e se relaciona na busca do bem comum como práxis do Crer:
O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral. Exige também os dispositivos de bem-estar e segurança social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios, aplicando o princípio da subsidiariedade. Entre tais grupos, destaca-se de forma especial a família, enquanto célula basilar da sociedade. Por fim, o bem comum requer a paz social, isto é, a estabilidade e a segurança de certa ordem, que não se realiza sem uma atenção particular à justiça distribuitiva, cuja violação gera sempre violência. (LS, n. 157)
Conclusão
            A partir de tais colocações sobre a experiência fundamental do Crer no continente latino-americano e as inspirações pós-conciliares do Papa Francisco, podemos concluir que estamos diante de novos caminhos e desafios em tal continente. Trata-se da necessidade de uma articulação maior entre as raízes culturais múltiplas da América Latina, a saber, a raiz africana, indígena e europeia que perpassou o ethos latino-americano. É nesse entrelaçamento cultural que a Teologia e a Igreja, enquanto povo de Deus, corpo do Espírito Santo, deve reafirmar o seu Crer. Tentar separar uma das partes é desprezar a história pela qual nosso continente assumiu a sua identidade singular e criativa.
De modo mais amplo o Crer na América Latina precisa se relacionar, se ampliar e dialogar com um mundo global e integrado, pois as relações na pós-modernidade saíram do nível regional e nacional para um nível internacional. Neste sentido o Crer latino-americano precisa estar ligado e se relacionar com os outros países e suas expressões culturais e religiosas. A Contemporaneidade exige isso. Por outro lado, tal vivência de fé cristã latino-americana precisa continuar e amadurecer o seu espaço de reflexão teológica (as periferias espaciais e existenciais) e o ponto de partida da fé crista, no nosso continente, que se tornou o referencial predileto da razão teológica e ética cristã: o pobre.
Tal sujeito teológico não pode ser concebido reduzidamente como o ser humano carente no seu aspecto econômico e político, mas assume apropriada e plena compreensão teológica como a pessoa que tem a necessidade e dependência de salvação em Deus. Também neste aspecto- espiritual- podemos encontrar sinais na América Latina de pessoas que não conhecem à Jesus Cristo e não possuem uma experiência profunda e comprometida com Ele, mesmo que diga ser cristã. Não se está afirmando que o pobre não é aquele que está em condição social, cultural e existencial inferior à determinados grupos de boa condição de vida, mas que além destes, que são muito importantes e urgente suas causas, também há outros pobres que precisam de vida digna em outros âmbitos da vida humana e espiritual. Por outro lado, na América Latina ainda há espaços geográficos onde Jesus ainda não foi anunciado por nós. Por isso é urgente a continuação do projeto de Deus e da comunicação dessa Boa-Nova pela experiência do Crer atualizado em América Latina.   
Bibliografia
BOFF, Leonardo. Da libertação e ecologia: desdobramento de uma mesmo paradigma. In ANJOS, Márcio Fabri dos (org.). Teologia e novos paradigmas. São Paulo: SOTER/Loyola, 1996.
BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
CARTA APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO. Às pessoas Consagradas: em ocasião do ano da vida consagrada. São Paulo: Paulinas, 2014.
CARTA ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Alegrai-vos: carta circular aos consagrados e às consagradas do magistério do papa Francisco. São Paulo: Paulinas, 2014.
CONSTITUIÇÃO Dogmática “Dei Verbum” sobre a Revelação divina. In CONCÍLIO VATICANO (2.: 1962-1965).Vaticano II: mensagem, discursos e documentos. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2007. (p. 345-358)
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii Gaudium: do Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.
LIBANIO, João Batista. B. Eu creio, nós cremos: tratado da fé. 2ed. São Paulo: Loyola, 2004.
RICHARD, Pablo (Org.). Raízes da teologia latino-americana. São Paulo: Paulinas, 1987.
RIVAS, Eugenio. Creer en América Latina. Texto disponível em http://theologicalatinoamericana.com/?p=457. Acesso em: 02 Jun. 2017.




[1] RIVAS, Eugenio. Creer en América Latina. Texto disponível em http://theologicalatinoamericana.com/?p=457. Acesso em: 02 Jun. 2017. (tradução nossa)

sábado, 10 de junho de 2017

DA CONDIÇÃO FEMININA À FEMINIZAÇÃO DA MORAL HUMANA EM MARCIANO VIDAL


Isaias Mendes Barbosa
Comunicação apresentada no V Colóquio de Teologia e Pastoral
"300 anos de Aparecida: A emergência do Feminino num novo contexto eclesial". 
RESUMO:A presente comunicação trata do feminino na moral ou ética teológica marciana como questão capital para a Contemporaneidade. Além de uma relação com a concepção de gênero/sexo, ele se destaca como elemento significativo da condição feminina. Todavia, se na história o ethos feminino sofreu a manipulação de uma sociedade pré-científica e até científica, no discurso ético tal ethos foi reduzido a posturas setoriais-extremistas de algumas correntes femininas e feministas. Numa exposição crítico reflexiva sobre tais eventos o Teólogo Marciano Vidal (1937-), na obra Feminismo y ética: como feminizar a moral (2005), explana as bases preparatórias de uma nova ética feminina ou feminista. Seguindo a metodologia reflexivo-expositiva da referida obra, adjunto a obras e artigos complementares, a presente comunicação apresenta: i) os pressupostos fundamentais para a condição feminina, ii) a manipulação biológica da mulher na história da ética, iii) a utilização do ethos manipulado e convencionado por lideranças e ideologias de expressão social, e iv) a feminização da moral e seus efeitos na teologia. Para Marciano Vidal a feminização da moral passa pelo pressuposto da pessoalidade e da relação de gênero masculino/feminino. Nesse caminho o feminino assume relevância relacional aos direitos humanos e efeito universal na moral humana.
Palavras-chave: Condição Feminina. Manipulação. Feminização. Moral Humana.

INTRODUÇÃO

A história da condição genérica humana é marcada por uma relação desequilibrada e desigual entre o masculino e o feminino. Uma manipulação e transposição do aspecto biológico humano para o seu ethos genérico sociocultural promoveu, na história ocidental, uma ética predominantemente patriarcal e androcêntrica. Nesse sentido a condição feminina, o ethos feminino, ficou ora esquecido e menosprezado na história, ora reprimido e relegado a condição inferior e até subordinada ao ethos masculino. Tal compreensão perpassou a nossa história até o século XVII com os primeiros passos ideários da revolução francesa. A partir de então os primeiros movimentos feministas emergiram, nos diversos cantos do mundo, com uma consciência crítica acerca da opressão da mulher na história e da busca revolucionárias por libertação de tais amarras discriminatórias (BRANDÃO; BINGEMER, 1994, p. 81).
Com a ascensão dos movimentos sociais em defesa da mulher a ética feminina começou a ter os seus primeiros respaldos na luta pelos direitos da mulher e pela igualdade perante o homem. Vidal classifica três linhas feministas que delineiam o protagonismo da mulher na vida cívica e no campo do discurso ético. O feminismo da igualdade, é o da ilustração, que luta pelos direitos feministas e se identificam com o ideal da classe média e burguês. Há o feminismo da diferença que acentua uma posição crítica a situação tradicional da mulher e reivindica a dignidade da mulher de modo exclusivista e fora de uma relação com o gênero masculino. Por último se destaca, de modo especial na América Latina, o feminismo de libertação, e também os que se utiliza da análise marxista como hermenêutica da luta da mulher por libertação.
Frente a estas posturas, marcadas por diversas protagonistas na feminização da moral civil e na sua inserção no universo público dos direitos humanos, o Teólogo Redentorista Marciano Vidal (1937-), na obra Feminismo y ética: como feminizar a moral (2005)[1], explana as bases preparatórias de uma nova ética feminina ou feminista. É nesse percurso que Vidal apresenta sua contribuição para a teologia moral na perspectiva da ética feminista. Este ainda carece de reflexão e espaço apropriado na moral universal. A presente pesquisa resulta na busca marciana pelo reconhecimento e valorização da ética feminina no espaço teológico. Ela tem a função de criticar a ética universal assim como de se ressignificar a partir da mesma. Sua orientação não é da construção de um tratado sobre a ética feminista, mas uma motivação e inspiração para os desafios de tal ética que deve ter como protagonista fundamental a própria mulher.

1      OS PRESSUPOSTOS FUNDAMENTAIS PARA A CONDIÇÃO FEMININA

            Não tem como fazer uma reflexão sobre a feminismo no âmbito da moral e ética teológica sem considerar os seus pressupostos fundamentais constituintes, a saber, a relação e particularidades que se fazem entre sexo e gênero. Tal relação constitui as bases fundantes e fundamentais para a condição feminina ou o feminismo (BRANDÃO; BINGEMER, 1994, 83). É a partir de tal perspectiva que o teólogo Marciano Vidal, no primeiro capítulo da obra Feminismo y ética: como feminizar a moral explana a relação entre sexo e gênero para a compreensão da realidade da mulher. Primeiramente ele faz uma clara distinção entre os dois conceitos:
“Sob o substantivo gênero agrupam-se os aspectos psicológicos, sociais e culturais da feminidade/masculinidade, reservando-se sexo para os componentes biológicos, anatômicos e para designar o intercambio sexual no mesmo”. De acordo com esta delimitação, por razão de “sexo” haverá que falar de “macho/fêmea”, enquanto que em referência ao “gênero” haverá que se falar de “masculino/feminino” (VIDAL, 2005, p. 11).
            Dessa distinção se observa a peculiaridade existente na função sexual diferenciada entre o macho e a fêmea. É da base biológica que historicamente e socialmente se fundamentou o universo humano nas suas características peculiares. No tocante ao aspecto da fêmea, em termos biológicos, estase caracteriza pela fórmula cromossômica 44ª + XX, pela presença de ovário, hormônios sexuais feminino e pelo funcionamento celebra peculiar (Ibid., p. 12). Essas características fisiológicas e morfológicas são os primeiros passos para se identificar e compreender a condição feminina.
            Adjunto ao aspecto sexual está o aspecto genérico que ampliou a compreensão da condição humana nas categorias psicossociais. Essa nova concepção destacou uma distinção entre natureza e cultura, uma passagem do universo biológico sexual para o aspecto masculino e feminino e a desconstrução da inferioridade da mulher e relação aos homens pelo aspecto biológico (Ibid., p.18). A nova concepção tem algumas vantagens para se compreender a construção social, a identidade ontológica e social dos sujeitos (raça, cultura, relacionamentos), e de modo especial, da mulher. A relação sexo-gênero serviu para expressão dualista da realidade feminina e masculina (no nível simbólico), da forma de estruturação e organização social (nível social) e da identificação genérica (nível individual) (Ibid., p. 19).
Todavia, no âmbito a ética Vidal se posiciona para além de uma natureza sexual como determinação do ser mulher. Um vez que os aspectos da existência humana são mais amplos e mais profundos que as determinações biológicas. Neste sentido o aspecto antropológico da condição feminina não estar delimitado pelo aspecto biológico, mas pelo histórico e psicológico:
A nosso modo de entender, a distinção entre “diferença sexual feminina” e “ser mulher” radica na seguinte formulação verbal: “se nasce” fêmea e “se chegar” a ser mulher. O ser mulher pertence ao âmbito da história. Existe uma história no fazer-se psicologicamente mulher: o transito da biologia para a psicologia carece ao interior de um devenir originado pela interação de sujeitos biográficos e temporais. (VIDAL, 2005, p.  16-17) 
            Portanto, se é na relação sexo-gênero que a condição feminina se classifica, todavia é no aspecto ético que se situa a transcendência da natureza feminina. Ou seja, é no âmbito histórico-social e cultural que se classifica o feminismo (BRANDÃO; BINGEMER, p.86-94). “É precisamente neste nível de ‘mulher’ onde a ética terá que fazer sua peculiar abordagem para desmascarar e orientar as falsas e as autênticas realizações históricas (biográfica e socioculturais) da condição feminina” (VIDAL, Op. cit., p.17).

2      A MANIPULAÇÃO BIOLÓGICA DA MULHER NA HISTÓRIA DA ÉTICA

Se o “ser mulher” é próprio de uma construção social, é no aspecto histórico que o ethos feminino sofreu vários preconceitos e manipulações, ora no nível simbólico, ora no nível social, ora no nível individual, sobre a mulher. Porém, preliminarmente, na própria concepção biológico-sexual se destaca algumas falsas verdades transpostas em categorias éticas sobre a questão da mulher. Tais categorias falseou e encobriu o ethos feminino. Vidal destaca, assim, os três erros biológicos transportados em categorias éticas. O primeiro foi uma concepção da “femina est mas occasionatus”, isto é, da mulher como um ser de acidente:
Para esta compreensão a mulher (femina) é um macho (mas) defeituoso (falido, mutilado, acidentado: occasionatus). Sem descartar a alusão ao simbolismo anatómico da carência de pênis [...]. A explicação de Santo Tomás é paradigmática a respeito: “considerada em relação com a natureza particular, a mulher é algo imperfeito e ocasional, [...] (Ibid., p. 27)
Tal concepção provem da tradição aristotélica da relação entre substancia essencial e substância acidental. A primeira se reportava à algo imutável e completo que possuía o ser de todas as coisas, a segunda se reportava àquilo que fugia dos aspectos essenciais das coisas. Era o aspecto que variava entre os gêneros do ser. Neste sentido o referencial para concepção da mulher era o homem, se ela não possui o “sêmen” e o órgão sexual masculino, então era um “macho castrado”. Essa visão biológica preconceituosa continuou no período medieval. Por conseguinte o segundo erro biológico da perdurou da antiguidade à modernidade foi que a mulher era um ser passivo no processo generativo: “Segundo esta visão, a mãe não gera, limitando-se a receber o sêmen e a proporcionar-lhe a matéria (sangue) para o desenvolvimento do feto. Esta compreensão da generação foi recolhida por Santo Agostinho, aceita por Santo Tomás e continuada pelos moralistas postridentinos” (Ibid., p. 28).
Por fim Vidal apresenta o 3º erro biológico. Trata-se de uma compreensão de que o útero era o órgão determinante de toda a constituição e característica peculiar da mulher. A análise se dava na relação entre o desenvolvimento do corpo da mulher, da formação de seu caráter, personalidade e sensibilidade, a partir dos órgão da matriz:
[...] transcrevemos o seguinte, como paradigmático dessa compreensão: “o aparato, pois, dos órgãos da matriz, esta prodigiosa esfera da perpetuidade da espécie, é a que determina os atributos físicos do belo sexo, a que preside a todas suas funções, a que desenvolve as modificações de seu instinto, enfim, a que e influi imperiosamente em suas paixões, gostos, apetites, ideias, propriedades e inclinações. (VIDAL, 2005, p.28)  
Erres três erros se reportam a uma visão errônea ora acerca da visão filosófico-antropológica da mulher, ora a acerca dos aspectos biológicos como anatomia e fisiologia da mesma. Tal visão que perdurou na tradição se apresenta no seu caráter pré-científico moderno. Tais erros, históricos se classificam atualmente como uma visão machista e preconceituosa pela qual o ethos feminino passou na história.

3      A UTILIZAÇÃO DO ETHOS MANIPULADO E CONVENCIONADO POR LIDERANÇAS E IDEOLOGIAS DE EXPRESSÃO SOCIAL

Outros setores, além da biologia, manipularam e falsearam a verdadeira e mais profunda compreensão do caráter ética da condição feminina. Desenvolveram uma hermenêutica parcial e ideológica da concepção feminina e da sua ética. A primeira esfera que gerou tal manipulação e prejuízo se deu no ramo específico da biologia, a saber, a ginecologia. São os ginecologistas os principais “indutores” e influenciadores da concepção ideológico-ética da mulher:
As “qualidades” que se lhe atribuem à feminidade não deixa de ser extrapolações, ainda que se pretenda ser baseada na biologia: a mulher é amorfa, instável, ambivalente, contraditória, centrípeta, endocósmica, tendente a intuição e ao pressentimento, etc. A tendência dos ginecólogos a exaltar a maternidade lhes leva a manter posturas ideologicamente conservadoras ante o trabalho da mulher [...] (Ibid., p. 30)
            Outro setor de manipulação foi a psicologia e também especificadamente a psicanálise. Essa nova ciência que emerge na modernidade influencia uma moralização do ethos feminino a partir dos dados “morfológicos e funcionais” biológicos. Na relação entre homem e mulher, a psicologia projetou condicionamentos culturais característicos do ethos feminino. Conforme Vidal apresenta os estudos sobre o aspecto sexual e da personalidade da mulher em comparação com a do homem se observa que: a mulher tem o órgão genital passivo, verte sua semente (reprodução) de modo desinteressado, possui mínimas modificações anatômicas no ato sexual, produz cicatrizes abdominais, muda o formato dos seios e enriquece as linhas das cadeiras, terminam sua vida sexual aos cinquenta anos (Ibid., p.33). Todos essas considerações forjou uma concepção da mulher e da sua moral marcada pela passividade, pela incompreensão, pelo desinteresse sexual e uma prerrogativa moral mais natural, com o aspecto pró-gerativo de mãe e uma maior fidelidade na relação matrimonial.
            Além destas a religião cristã foi agente ativa na justificação da conversão manipuladora do ethos feminino (BINGEMER, Maria Clara et al, 1990, p.138). Na visão teológica a mulher é assumida por Santo Agostinho e Tomás de Aquino numa posição inferior à do homem. Ela faz parte dos três tempos da cosmovisão cristã, a saber, da criação, do pecado e da salvação (VIDAL, Op. cit., p. 35), porém sob condição inferior. A concepção da menstruação como impureza foi outro elemento que o cristianismo herdou da tradição judaica. Isso afetou o ethos da mulher e sua posição na Igreja. Na concepção tradicional medieval e moderna, a mulher era considerada para os padres e clérigos religiosos como um perigo moral (Ibid., p. 37).
            As representações políticas e sociais não estiveram aquém na ideologização do ethos manipulado. Todavia, houve muitas ideologias feministas que forjou um utopismo feminino, “originando a impressão de que a ‘nova mulher’ será a panaceia a todas as frustrações individuais e coletivas” (Ibid., p. 38). Um dos movimentos revolucionários que ideologizou tal ethos foi o marxismo vulgar:
Desde a ideologia do marxismo vulgar se tem projetado sobre a condição feminina um tanto mítica da “objetivação” e da “alienação”. Ao utilizar uma categoria abstrata (objetivação) e outra socio-histórica (alienação) esta ideologia tem realizado uma extrapolação no tema da mulher: a condição feminina tem perdido sua própria e peculiar hermenêutica para ser manipulada desde a hermenêutica da luta de classes. (Ibid., p. 39)

4      A FEMINIZAÇÃO DA MORAL E SEUS EFEITOS NA TEOLOGIA

Se na história humana o ethos feminino passou por diversas manipulações, vale ressaltar que nos últimos tempos surgiu movimentos e posturas feministas que reconfiguraram o discurso ético e a concepção sobre o significado e atuação da mulher na sociedade. Marciano Vidal fala da “intervenção e protagonismo da mulher na produção ética” (Ibid., p. 44), que fez emergir a o feminismo como posição integrante da condição feminina na ética social. Na exposição de tais posturas, ele apresenta um distinção entre dois tipos de ética, a saber, “entre a ética feminina e a ética feminista” (Ibid., p. 44), sendo que as duas se relacionam, destacando a distinção  de que a primeira  se realiza quando ela “utiliza a hermenêutica peculiar de todo feminismo: a denúncia da “assimetria” padecida pelas mulher por sua condição feminina [...] e a reinvindicação da dignidade da mulher e de seu igual direito a realização em todos os âmbitos do humano”(Ibid., p. 44). Todavia, se no campo político-social e acadêmico a ética feminista não assumiu sua maturidade, no âmbito teológica a carência é maior. É nesse sentido que Vidal propõe uma “nova ética que, incorporando a perspectiva emancipatória da mulher, seja assumida de maneira consensual por toda a humanidade dos seres racionais” (Ibid., p. 48). A incorporação da mulher ao discurso ético-teológico dará lugar a uma ética teológica tanto “feminina como “feminista”. Neste sentido a proposta ética feminista marciana deve concordar com o caráter universal da ética:
Creio que, assumindo o valor da igualdade entre o homem e a mulher e respeitando a diferença feminina, a ética teológica haverá de decantar-se a favor de um feminismo radical de libertação integral, um feminismo em que a emancipação da mulher seja articulado a libertação de outras alienações e marginalizações que sofrem os seres humanos, sobretudo os mais debilitados. (Ibid., p. 50)
É partindo dessa perspectiva que Vidal apresenta alguns pontos de vistas éticos sobre a mulher, com suas características peculiares, como o ponto de vista de C. Gilligan de uma ética do cuidado e uma ética da justiça, assim como a proposta de feminização dos valores morais pela feminista Sara Ruddick e Vitoria Camps moralização da ética (VIDAL, 2008, p. 95-105). Todavia, contrário a tais posturas Vidal apresenta três caminhos para uma feminização da moral, ou uma teologia ética feminista. O primeiro se reporta ao caráter da pessoalidade no aspecto bíblico-teológico:
“ser pessoa a imagem e semelhança de Deus comporta também existir em relação ao outro “eu”. Isto é preludio da definitiva autorevelação de Deus., Uno e Trino: unidade vivente na comunidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Desta sorte, a compreensão da Trindade mediante a categoria de “pessoa-em-relação” poderia ser o arquétipo da relação mulher-homem [...]. (VIDAL, Op. cit., p. 83)
A categoria de pessoa coloca o ethos feminino numa relação de reciprocidade com o ethos masculino. Essa dinâmica não estagna a mulher no campo do exclusivismo utópico feminino. Neste aspecto a pessoalidade apreende o caráter de singularidade do feminino sem eliminar a natureza essencial de relação com o outro ser genérico, o masculino. Neste ponto a ética feminista atinge a experiência fundamental da comunhão trinitária e se destaca na valorização de sua identidade e espaço ético teológico social.  A outra categoria explanada por Vidal é a da dignidade feminina com a igualdade:
A igualdade não é somente uma afirmação antropológica; deve constituir-se um reinvindicação ética. A igualdade reivindicada por e para as mulheres: “é uma relação não identificativa de semelhança reciproca, que comporta autonomia, equipotência, equifonia, equivalência, interlocução e responsabilidade dos indivíduos-sujeitos atuantes em todas as relações sociais, familiares e duais”. (Ibid., p.85)
A igualdade equipara o reconhecimento da ética feminina aos direitos humanos. Neste sentido ela possui uma função e dignidade moral, pessoal, social e pública, na mesma proporção que o homem. Tais direitos estariam no campo da realidade humana: “sanidade, sexualidade e procriação, vida conjugal e familiar, educação, trabalho, economia, política, religião” (Ibid., p. 86).  Esse percurso básico tem como intenção um direcionamento para a ética feminina para que ela assuma o seu espaço de direito. Por último, Vidal destaca que a postura ética feminista precisa transcender o seu espaço genérico, isto é, universalizar-se em sintonia com uma ética humana;
Por minha parte, creio na necessidade e na possibilidade de articular o ponto de vista ético das mulheres em processo universal de uma ética humana.  Duas razões básicas avaliam esta afirmação: Por uma parte, a teoria ética ficaria incompleta se não aceitar a crítica feminista de gênero e não a incorporasse ao processo crítico de seu discurso; a crítica feminista ausente no discurso ético, este deixaria de ser imparcial e estaria viciado na mesma raiz. [...] Por outra partem as reivindicações feministas não conseguiriam a solução desejada se não entrar pelas causas da relevância universal. Os interesses do feminismo tem que “afetar” a todos para que por todos sejam assumidos. (Ibid., p.93-94)

CONCLUSÃO

A presente pesquisa conclui que a mulher na contemporaneidade precisa cada vez mais tomar consciência de sua história e do desafio ético de ser protagonista na feminização da moral universal. Se a história foi injusta com sua pessoa, essa mesma história tem uma dívida para com o feminismo. 
Diante das diversas correntes sociais em defesa da mulher, a proposta de Marciano Vidal se torna relevante no cuidado entre os extremismos de diversas posturas, que invés de ressaltar a dignidade e ser da mulher, pode contribuir para o seu fechamento ou setorização. Ao mesmo tempo que não se pode ser extremista e cair no erro da utopia da supermulher, de modo semelhante não é possível falar de uma ética feminista sem a relação genérica masculino-feminino.
É nesse percurso que a proposta de Vidal pode contribuir na contemporaneidade. A ética teológica feminista atinge a profundidade de sua ontologia no seu aspecto pessoal, pois isso envolve a relação, a reciprocidade e o bem comum que é característica do feminino. Por outro lado a proposta de igualdade não se confunde com uma identidade do outro, mas pela busca e valorização dos direitos humanos. É assim a proposta de feminização da moral ganhará novo espalho social, civil, público. E um contributo para a universalização e plenificação da moral.
Mais do que delinear pressupostos de atuação do feminino, a presente pesquisa resulta na busca marciana pelo reconhecimento e valorização da ética feminina no espaço teológico. Ela tem a função de criticar a ética universal assim como de se ressignificar a partir da mesma. A orientação marciana não é da construção de um tratado sobre a ética feminista, mas uma motivação e inspiração para os desafios de tal ética que deve ter como protagonista fundamental a própria mulher.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Maria Luiza Ribeiro; BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Mulher e relações de gênero. São Paulo: Edições Loyola, 1994.
BINGEMER, Maria Clara et al. O Rosto feminino da teologia. São Paulo: Santuário, 1990.
VIDAL, Marciano. Feminismo y ética: como “feminizar” a moral. Madri: PPC Editorial y Distribuidora, 2005.
VIDAL, Marciano. Psicologia do Sentido Moral. São Paulo: Santuário, 2008.



[1] VIDAL, Marciano. Feminismo y ética: como “feminizar” a moral. Madri: PPC Editorial y Distribuidora, 2005.Todas as referências a esta obra, ao longo do texto, foram traduzidas para o português pelo autor desta comunicação. 

terça-feira, 6 de junho de 2017

A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE EM HANS JONAS: CRÍTICA À MODERNIDADE E NOVOS CAMINHOS DE ATUAÇÃO.

A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE EM HANS JONAS: CRÍTICA À MODERNIDADE E NOVOS CAMINHOS DE ATUAÇÃO.
COMUNICAÇÃO APRESENTADA NO X COLÓQUIO VAZIANO CUJO TEMA É "ÉTICA, POLÍTICA E DIREITO: URGÊNCIA E LIMITES" (19/5/2017). Texto completo publicado em http://faje.edu.br/periodicos/index.php/annales/article/view/3828/3880.
Isaias mendes Barbosa[1]

RESUMO: A presente pesquisa apresenta a invenção de uma nova ética pautada no princípio da responsabilidade, humana e extra-humana, para a civilização moderna na segunda metade do século XX. Tal proposta do filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993) é marca ressonante para uma reflexão na contemporaneidade. A proposta ética jonasiana trata de uma reflexão crítica sobre os riscos e problemas do paradigma progressivo-tecnicista moderno, dos seus efeitos para uma vulnerabilidade humana e para o sistema natural planetário. Ela também se configura como uma ética de cunho reflexivo-social-tecnológico, fundamentada no imperativo da conservação da vida humana, distinta daquela presente na tradição. Partindo de uma abordagem metodológica reflexivo-analítica da obra O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para civilização tecnológica (1979), adjunto a outras obras e artigos complementares, a presente comunicação destaca os seguintes pontos: i) as características e limites da ética tradicional, irrelevante para a abordagem moderna, ii) alguns problemas e riscos, de ordem ética, na Modernidade científico-tecnológica, iii) a reformulação do imperativo categórico kantiano pelo imperativo jonasiano e vi)  a proposta de uma ética baseada no princípio da responsabilidade para a civilização científico-tecnológica. Tal proposta também se situa numa reflexão crítica sobre as duas linhas estruturais paradigmáticas modernas, a saber, capitalista e marxista. A reflexão ética critica a objetivação antropológica e anulação do sujeito, assim como a degradação voraz ambiental, promovida pelo eixo excessivo e explorador do progresso cientificista-tecnológico-moderno. Como resolução de tal problemática ela intenta considerar a vulnerabilidade, a heurística do medo e a preservação da imagem e semelhança como os elementos compostos de uma ética da responsabilidade. Tais orientações, que tentam prover a existência humana e extra-humana, se fazem num percurso ontológico, antropológico e ecológico como espaço de responsabilidade solidária-social para poder se evitar o risco eminente e futuro da degradação vital humana e extra-humana. Não se trata somente da perda física humana, mas também da integridade de sua essência e continua humanização. Tal postura imperativa da responsabilidade considera o compromisso com a existência e o futuro da humanidade como elementos fundamentais para o agir humano. Nisto se fundamenta alguns elementos da ética da responsabilidade jonasiana que ultrapassa o presente imediato para o prover responsável e dignificante da vida e sua conservação continua gerativa.
PALAVRAS-CHAVE: Ética tradicional; Paradigma da Modernidade; Ética da responsabilidade.

INTRODUÇÃO

            Pensar a tradição clássica ética como resposta para os problemas da Modernidade do século XX se torna uma empresa impossível, uma vez que seu construtivo ético está condicionado pelo tempo histórico-cultural-social em que surgiu. E tal caminho do decidir e fazer humano clássico construtivo até certo ponto não corresponde com as exigências da referida época tecnicista. Se tal Modernidade é marcada por um desenvolvimento progressivo intensivo, produtivo biológico-humano e econômico-político, as suas forças motriz impulsionadora geraram riscos para a vida humana e extra-humana. É partindo dessas considerações contextuais críticas que o filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993) delineia a proposta de uma nova ética baseada no princípio da responsabilidade. Se a utopia é o caminho do capitalismo selvagem explorador e espoliador, assim como configura parte do marxismo com a emergência ideal do proletariados, a postura jonasiana, por outro lado, é uma crítica a tais utopias e ao mesmo tempo uma proposta prudente-planejada-responsável para a subsistência humana e planetária. É nessas pontuações reflexivas que a presente comunicação destaca quatro pontuações de uma proposta ética jonasiana. A partir da obra O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para civilização tecnológica (1979)[2], adjunto a outras obras e artigos complementares, a presente comunicação destaca o itinerário de uma ética da responsabilidade para a civilização tecnicista moderna do findar do século XX. O primeiro ponto apresenta uma compreensão jonasiana sobre a tradição ética até a Modernidade. O segundo ponto sinaliza para a problemática do progresso tecnológico moderno, enquanto que, no terceiro ponto, se expõe a necessidade da reformulação do imperativo kantiano em vista de uma nova ética. Por fim, o quanto ponto é uma explanação dos elementos característicos da ética da responsabilidade. Daí é possível considerar, na conclusão, a relevância de tal ética na pós-modernidade em que a subjetividade e o compromisso político social e a ecologia carecem de uma integração ética em vista a preservação e plenificação da existência humana e extra – humana.

1    AS CARACTERÍSTICAS E LIMITES DA ÉTICA TRADICIONAL

Na obra O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para civilização tecnológica Hans Jonas sustenta o estatuto de uma nova ética da responsabilidade para a civilização moderna no final do século XX. Porém tal postulado ético não faz jus ao pensador sem uma reflexão crítica dos pressupostos metafísicos da ética tradicional[3]. Pois esta, nas suas característica essenciais, apresentam limites para ser validada na praticidade moderna. É na observância da ética tradicional até então, que Jonas destaca os seus três pressupostos, inter-relacionais, fundamentais:
(1)    A condição humana, conferida pela natureza do homem e pela natureza das coisas, encontram-se fixada uma vez por todas em seus traços fundamentais; (2) com base nesses fundamentos, pode-se determinar sem dificuldade e de forma clara aquilo que é bom para o homem; (3) o alcance da ação humana e, portanto, da responsabilidade humana é definida de forma rigorosa. (JONAS, 2006, p.29)
Tais pressupostos, a saber, da condição humana e da natureza fixada em seus traços fundamentais, da condição de determinação do bom antropológico e da extensão da praticidade humana definida de forma rigorosa, não correspondem à Modernidade marcada pela transformação das faculdades humanas e pela modificação da natureza. Se na Modernidade a natureza humana sofreu modificação, do mesmo modo se “impõe uma modificação na ética” (JONAS, 2006, p.29).
Segundo a Filósofa Jakeline Rodrigues, na sua monografia Ética e responsabilidade planetário em Hans Jonas sustenta sobre o percurso da civilização antiga numa interação com a natureza: a relação homem-natureza se dava numa intervenção que não modificava o equilíbrio da natureza (2014, p. 3). O homem era uma extensão da natureza e se humanizava nessa relação. Era no pressuposto de uma natureza fixa que o homem construía seu ethos, definido pela consciência de bem-mal numa estrutura repetitiva comportamental, isto é, no costume. Assim se construía o universo humano e se delineava seus princípios fundamentais civilizatórios. A relação do agir humano com a natureza era permeada de uma concórdia e permanecia inalterada essencialmente:
Todas as liberdades que ele se permite com os habitantes da terra, do mar e do ar deixam inalterada a natureza abrangente desses domínios e não prejudicam a sua força geradora. [...] Ainda que ele atormente anos após ano a terra com o arado, ela é perene e incansável; ele pode e deve fiar-se na paciência perseverante da terra e deve ajustar-se ao seu ciclo. Igualmente perene é o mar. Nenhum saque das suas criaturas vivas pode esgotar-lhe a fertilidade, os navios que o cruzam não o danificam, e o lançamento de rejeitos não é capaz de contaminar suas profundezas. (JONAS, 2006, p. 32)   
         Esse era o limite da ética tradicional humana em que o sujeito se servia da natureza conforme suas necessidades fundamentais de humanização. Assim se criava o espaço humano equilibrado com o meio, a cidade dos homens em interação com a realidade natural. Porém, se nessa relação o homem construía-se a si mesmo, e sua praticidade acabava por se impor, construir seu espaço sobre a natureza, esta, por sua vez, “não era objeto da responsabilidade humana – ela cuidava de si mesma e, com a persuasão e a insistência necessárias, também tomava conta do homem” (JONAS, 2006, p.34). Deste modo é que a ética se restringia ao aspecto “intra-humano”, pois a natureza de nada usufruía de tal arte e engenhosidade do caráter humano. Mas pelo contrário, o homem é que se civilizava de acordo com o caminho próprio que a natureza se auto gestava.
            Por conseguinte Jonas destaca algumas características que percorreram a ética até a sua contemporaneidade. Primeiramente “todo o trato com o mundo exta –humano, isto é, todo o domínio da techne (habilidade) era – à exceção da medicina – eticamente neutro” (JONAS, 2006, p.35). Em acréscimo, mais quatro pontos podem ser sintetizados:
2. A significação ética dizia respeito ao relacionamento direto de homem com homem, inclusive de cada homem consigo mesmo; [...] 3.Para efeito da ação nessa esfera, a entidade “homem” e sua condição fundamental era considerada como constante à sua essência[...]. 4. O bem e o mal, com o qual o agir tinha que se preocupar, evidenciavam-se na própria práxis ou em seu alcance imediato, e não requeria um planejamento a longo prazo. [...] 5. Todos os mandamentos e máxima da ética tradicional, fossem quais fossem a sua diferença de conteúdo, demonstram esse confinamento ao círculo imediato da ação. (JONAS, 2006, p.35-36)  
Portanto, apesar da ética tradicional ter criado o universo do ethos humano, social e civil, ela não transcendeu o aspecto antropológico, não considerou o aspecto mutável da natureza humana e extra - humana e muito menos superou as categorias do espaço e tempo imediato. As categorias éticas, e sua fundamentação antropológica, como por exemplo o conceito de bem humano, eram baseados “em determinada constante da natureza e da situação humana como tal” (JONAS, 2006, p.37). Porém tal ética se delimitou ao presente e aos atos estritamente contextuais imediatos, portanto sem orientação científico-teórica.

2    ALGUNS PROBLEMAS E RISCOS, DE ORDEM ÉTICA, NA MODERNIDADE CIENTÍFICO-TECNOLÓGICA.

Ao passo que a ética da tradição possui limites para as questões pertinentes a Modernidade do século XX, Jonas destaca alguns problemas e riscos de tal período tecnocrático, de ordem ética, que impõe a necessidade de uma nova ética[4]. Segundo ele, “a promessa tecnológica moderna se converteu em ameaça, [...] de forma insolúvel” (JONAS, 2006, p.21). Isso porque se ante a relação humana na natureza era de caráter humanitário em vista de uma antropologia sem alteração essencial da natureza, na Modernidade o agir humano assume uma postura transgressora e transformadora da natureza e do próprio homem. “Tudo se modificou decisivamente. A técnica moderna introduziu ações de uma tal ordem inédita de grandeza, com tais novos objetos e consequências que o mundo da ética antiga não consegue mais enquadrá-la” (JONAS, 2006, p.30).
Tome-se, por exemplo como primeira grande alteração ao quadro herdado, a crítica vulnerabilidade da natureza provocada pela intervenção técnica do homem – uma vulnerabilidade que jamais fora pressentida antes de que ela se desse a conhecer pelos danos já produzidos. (JONAS, 2006, p. 39)
            Se a intervenção técnica trousse grandes danos ao sistema extra – humano, isto é, ao que chamados de sistema planetário[5], isso alterou a própria compreensão da natureza humana, pois modificou a representação que o sujeito tinha sobre si e a relação que ele tinha sobre o mundo. Uma relação não mais pautada sob os cuidados de uma natureza imutável, mas na dramática vulnerabilidade da mesma. Diante de tal compreensão emerge uma nova relação onde desaparece “as delimitações de proximidade e simultaneidade, rompidas pelo crescimento espacial e o prolongamento temporal das sequências de causa e efeito, postas em movimento pela práxis técnica” (JONAS, 2006, p.40). Os efeitos da técnica na natureza e na sociedade humana assumem o caráter acumulativo: “[...] seus efeitos vão se somando, de modo que a situação para um agir e um existir posterior não será mais a mesma da situação vivida pelo primeiro ator, mas sim crescentemente distinta e cada vez mais um resultado daquilo que já foi feito” (JONAS, loc. cit.).
            A Modernidade técnica superou os limites da antiguidade, porém ela deu primazia ao homo faber sobre o homo sapiens (NODARI, 2014, p.5). O predomínio da techne fez o homem pensar em um progresso contínuo. Todavia a dinâmica do poder sobre os meios de dominação relegou ao último plano o caráter fundamental ético: o seu Ser. Deste modo o homem moderno perdeu o seu caráter ontológico para se tornar produto da sua produção. Nessa ótica Jonas sustenta que e homem atual se tornou “[...] cada vez mais o produto daquilo que ele produziu e o feitor daquilo que ele pode fazer; [...]. Mas que é ‘ele’? Nem vocês nem eu; importa aqui o ator coletivo e o ato coletivo, não o ator individual e o ato individual” (JONAS, 2006, p.44). Por fim, a techne atingiu e dominou não apenas o espaço extra – humano, mas o intra – humano:
[...] o próprio homem passou a figurar entre os objetos da técnica. O homo faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a refabricar inventivamente o inventor e confeccionador de todo o resto. Essa culminação de seus poderes, que pode bem significar a subjugação do homem, esse mais recente emprego da arte sobre a natureza desafia o último esforço do pensamento ético, que antes nunca precisou visualizar alternativas de escolha para o que se considerava serem as características definitivas da constituição humana. (JONAS, 2006, p. 57)    

3    A REFORMULAÇÃO DO IMPERATIVO CATEGÓRICO KANTIANO PELO IMPERATIVO JONASIANO

A ética antiga até então partiu de princípios normativos de conduta de ordem racional e lógica. Do período da ilustração até a Modernidade do século XX a ética assumiu o imperativo metafísico kantiano da racionalidade que se auto fundamentava como vontade feliz do indivíduo humano. Tal ética se sustentou no imperativo categórico que transitava, em ordem não contraditória, da subjetividade humana para lei normativa social:
O imperativo categórico de Kant dizia: “Aja de modo que tu também possas querer que tua máxima se torne lei geral.” Aqui, o “que tu possas” invocar é aquele da razão e de sua concordância consigo mesma: a partir da suposição da existência de uma sociedade de atores humanos (seres racionais em ação), a ação deve existir de modo que possa ser concebida, sem contradição, como exercício da comunidade. (JONAS, 2006, p.47)
Porém, a ética normativa kantiana não considerou o princípio da racionalidade em relação com as condições necessárias da existência e felicidade. Porque Kant não expressou nem um juízo sobre possibilidade da existência ou da não existência da humanidade, da felicidade ou da infelicidade da mesma. Pois como Jonas destaca: “não existe nenhuma contradição em si na ideia de que a humanidade cesse de existir, e [...]na ideia de que a felicidade das gerações presentes [...] possa ser paga com a infelicidade ou mesmo com a não-existência de gerações pósteras [...]” (JONAS, 2006, p.47). Diante de alguns problemas da Modernidade tecnicista e exploratória do século XX, Jonas nos apresenta um novo imperativo para nova ética da responsabilidade:
Um imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: “Ajas de modo a que os efeitos da tua ação seja compatível com a permanência de uma autentica vida humana sobre a Terra; ou, expresso negativamente: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação não seja destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”; (JONAS, 2006, p.47-48).
            O antigo imperativo partia de pressupostos subjetivos para uma lei moral com base numa teoria social do todo imaginário. “O imperativo de Kant era voltado para o indivíduo, e seu critério era momentâneo” (JONAS, 2006, p.48). Porém, ele não alcançava o previsível futuro concreto e nem ampliava-se para uma questão extra-humana (SILVA, 2014, p.6-7). “Mas o novo imperativo diz que podemos arriscar a nossa própria vida, mas não a da humanidade” (JONAS, 2006, p.48). Esse imperativo exige uma coerência da ação humana com os seus efeitos finais para a própria continuidade da humanidade. 

4    A PROPOSTA DE UMA ÉTICA BASEADA NO PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE PARA A CIVILIZAÇÃO CIENTÍFICO-TECNOLÓGICA

Se a Modernidade técno-científica impulsionou novos paradigmas sobre a concepção antropológica humana e ecológica planetária, a inspiração de tais mudanças e problemas tem seu ponto de partida na ação progressista “excessiva da civilização técnico-industrial, baseada nas ciências naturais” (JONAS, 2006, p.235). O capitalismo seguiu o ideal baconiano na sua dinâmica executiva técnica-produtiva. Porém o programa baconiano de “colocar o saber a serviço da dominação da natureza e utilizá-la para melhorar a sorte da humanidade” (JONAS, loc. cit.), se tornou, no capitalismo moderno, um sistema irracional, antiético e exploratório. Gerador de uma produção excessiva e consumo exacerbado que subjugou a sociedade. Se a proposta de êxito progressivo e excessivo foi o erro da Modernidade tecnológica, a proposta jonasiana importa colocar um freio em tal fim trágico humano-planetário. “O apelo a fins ‘modestos’, [...] deve se tornar um primeiro imperativo” (JONAS, 2006, p.308). Daí se destacar a necessidade de renunciar “o fim excessivo par excellence, tanto porque seus esforços conduzem à catástrofe quanto porque [...] não pode perdurar por um período de tempo que valha a pena” (JONAS, loc. cit.). O compulsivo desenvolvimento econômico e biológico fez parte do ideal de êxito excessivo, porém isso promoveu a necessidade da produção de bens superior aos recursos naturais (JONAS, 2013, p.32) e uma expansão demográfica inserida na cadeia de consumo.
Uma população estática poderia em determinado momento dizer: “Basta” Mas uma população crescente obriga-se a dizer: “Mais!” Hoje começa a se tornar assustadoramente evidente que o êxito biológico não só coloca em questão o êxito econômico, reconduzindo-nos do efêmero banquete da abundância para o quotidiano crônico da miséria, mas ameaça levar-nos a uma catástrofe aguda da humanidade e da natureza, de proporções gigantescas. (JONAS, 2006, p.236)
Deste modo o capitalismo moderno levou a frente o ideal baconiano do saber pelo poder, gerando um poder que “tornou-se autônomo”, ao mesmo tempo que a “sua promessa transformou-se em ameaça e sua perspectiva de salvação, em apocalipse” (JONAS, 2006, p.237). É diante disso que a proposta de ética jonasiana assume uma postura de controle responsável diante de tal catástrofe: “a prudência será a melhor parte da coragem e certamente um imperativo da responsabilidade” (JONAS, loc. cit.).  
Todavia, no percurso da Modernidade o comunismo marxista também assumiu o ideal baconiano. Porém, apesar do marxismo ter apresentado uma proposta de superação da promessa de êxito que se encontrava no capitalismo, ele se tornou “tão tributário do ideal baconiano quanto a sua contraparte capitalista” (JONAS, 2006, p.241). Daí se percebe que o socialismo, como faze processual do comunismo, idealizou um processo continuo e acelerado da industrialização ao moldes e impulso da tecnologia moderna que contrapõe a quantidade limitada de recursos energéticos orgânicos na natureza. Numa relação entre o sistema capitalista e o comunista, Jonas afirma:
Por causa das paixões desencadeadas em diferentes direções, relacionadas a esse grande shibboleth de nosso tempo, necessitamos aqui de uma paciência especial. O que nos facilita a tarefa é o fato de que não pretendemos comparar as vantagens intrínsecas dos sistemas [capitalista e marxista] de vida como tal, mas simplesmente a sua capacidade para dar conta de um objetivo estranho a ambos, isto é, impedir uma catástrofe humanitária ao refrear o ímpeto tecnológico do qual ambos os sistemas são adeptos. (JONAS, 2006, p. 241) (Acréscimo nosso)
Jonas demonstra ser contrário aos dois sistemas sociais de ideal baconiano porque eles apresentam um ideal que não levam em consideração o tempo Moderno com as mudanças que o correram no final do século XX. Se por um lado o sistema capitalista é gerador de uma desigualdade social, de uma sociedade de consumo, e de uma degradação dos recursos ambientais, por outro lado, o ideal marxista, de ascensão do proletariado, da distribuição equitativa dos bens de produção e consumo social, não se identifica com as situações reais históricas do marxismo em alguns países, como Cuba. A utopia marxista não é possível de se concretizar, apesar de parcialmente possuir um vigor revolucionário e impulsionador de uma sociedade autônoma, igualitária e sem classes. Tal proposta não assumiu ou soube responder, de modo atualizado, os problemas da Modernidade marcada por questões a níveis globais, planetários e internacionais.
Daí se fazer necessário uma nova postura diante dos problemas modernos, uma nova proposta ética para a civilização tecnológica, que Jonas leva a cabo partindo do princípio da responsabilidade. Diante da eminente catástrofe do mundo natural e da própria humanidade, produzida pelo poder do ideal baconiano, faz-se “necessário agora, a menos que seja a própria catástrofe que nos imponha um limite, um poder sobre o poder – a superação da impotência em relação à compulsão do poder que se nutre de si mesmo na medida de seu exercício” (JONAS, 2006, p.241). Trata-se de uma praticidade que equilibre os exageros e excessos do poder destrutivo humano.
Se a ética tradicional e os sistemas de vida modernos se centraram no hoje e agora da vida, a proposta jonasiana leva em consideração a existência da geração futura como imperativo ético. “O futuro da humanidade é o primeiro dever do comportamento coletivo humano na idade da civilização técnica” (JONAS, 2006, p.229). A categoria de futuro como processo de permanência da sociedade deve ser uma preocupação da ética da responsabilidade, pois mais vale pensar numa vida saldável, estável e de qualidade equitativa com o meio ambiente em vista da viva perpetuação e felicidade do gênero humano, do que usufruir de todos os recursos imediatos, de modo egoísta, e ter como consequência a destruição do gênero humano e planetário. A responsabilidade para com o futuro da humanidade não está dissociado do futuro da natureza:
Esse futuro da humanidade inclui, obviamente, o futuro da natureza como sua condição sine qua non. Mas mesmo independente desse fato, este último constitui uma responsabilidade metafísica, na medida em que o homem se tornou perigoso não só para si, mas para toda a biosfera. Mesmo que fosse possível separar as coisas –[...] – os interesses humanos coincidem com o resto da vida, que é a sua pátria terrestre no sentido mais sublime da expressão [...] (JONAS, 2006, p. 229)
Na medida em que Jonas critica os sistemas dominantes modernos e suas propostas utópicas, que possuem riscos para a vida intra e extra-humana, tal crítica já se apresenta como um caminho renovado do pensar, da vontade e da práxis humana inserida na ética da responsabilidade. Porém ela deve observar a heurística do medo como caminho real, plausível e apropriado na sua proposta de nova ética[6]. O medo não é incerteza, terror e desespero frente à responsabilidade pelo futuro, mas uma motivação transformadora: “O medo que faz parte da responsabilidade não é aquele que nos aconselha a não agir, mas aquele que nos convida a agir. Trata-se de um medo que tem a ver com o objeto da responsabilidade” (JONAS, 2006, p.351).
Por fim Jonas apresenta que o respeito e o medo deve nos levar a encontrar no outro a figura do sagrado que deveria ser preservado:
Também temos novamente de recuperar o respeito e o medo que nos protejam dos descaminhos do nosso poder (por exemplo, de experimentos com a constituição humana). O paradoxo da situação atual está em que precisamos recuperar esse respeito a partir do medo, e recuperar a visão positiva do que foi e do que é o homem a partir da representação negativa, recuando de horror diante do que ele poderia tornar-se [...]. Somente o respeito, na medida em que ele nos revela um algo “sagrado”, que não deveria ser afetado em nenhuma hipótese [...], nos protegeria de desonrar o presente em nome do futuro, de querer comprar este último ao preço do primeiro. (JONAS, 2006, p. 353)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ética jonasiana baseada no princípio da responsabilidade intenta refletir sobre a realidade Moderna para propor caminhos de resolução aos problemas criados pelo ser humano. Se antes a ética estava centralizada nas relações humanitárias em nível antropológico, cultural, ético e político, no mundo tecnicista, transformador da natureza e do próprio ser humano, a ética tem o desafio de responder a uma sociedade onde o avanço tecno-científico se torna o paradigma influente e imperativo de civilidade. Junto a ele deve se integrar as bases fundamentais da vida humana, a saber, a realidade planetária. Pois este se tornou objeto de consumo-descartável. A ética da responsabilidade é uma proposta de vida que resgata princípios fundamentais da manutenção e continuação da sociedade humana. Por isso que o futuro, as gerações, a existência, a política, a tecnologia e o meio ambiente fazem parte essencial de sua reflexão. Num mundo em constante transformação faz-se necessário uma base de fundamentação. E o princípio que maior corresponde com um envolvimento integral e participativo é o da responsabilidade.
Para a atualidade pós-moderna essa proposta ética tem a força indicativa de elementos que não podem ser desprezados ou esquecidos por esta geração. Não se trata de negar o que se conquistou até então, mas de refazer os passos diante do novo ethos que constitui atualmente a vida humana. Se a subjetividade é marca pós-moderna, ela não pode se realizar sem sua relação com o meio e as condições político-sociais-culturais-ecológicas de vida. Daí a importância de tal ética na própria continuidade e equidade do sujeito pós-moderno na sua condição de vida e existência: uma intersubjetividade equilibrada e integral, humano-planetária, em paços firmes e não declinantes.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BATTESTIN, Cláudia; GHIGGI, Gomercindo. O princípio responsabilidade de Hans Jonas: um princípio ético para os novos tempos. Thaumazein, Ano III, Nº 06, Santa Maria, Outubro de 2010. p.69-85. (Revista do Curso de Filosofia)
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para civilização tecnológica. Rio de Janeiro, Contraponto, Ed.PUC-Rio, 2006.
JONAS, Hans. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. São Paulo, Paulus, 2013. (Coleção Ethos)
NODARI, Paulo César. Ética da Responsabilidade em Hans Jonas. Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. Artigo publicado no X Simpósio Internacional Filosófico Teológico- FAJE. Do humano ao pós-moderno: encruzilha ou destino. Disponível em:http://www.faculdadejesuita.edu.br/simposio/cd10/textos/doutores/paulo_nodari.pdf. Acesso em 10 fev. 2017.
SILVA, Jakeline Rodrígues da. Ética e responsabilidade planetária em Hans Jonas. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação em Filosofia). CAMPINA GRANDE, PB, Universidade Estadual da Paraíba, Centro de Educação, 2014.




[1]  Graduado em Filosofia na Universidade Estadual do Ceará (UECE), discente do curso de Teologia na Faculdade Jesuíta Filosofia e Teologia (FAJE). 
[2] JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006. Esta é a obra norteadora de toda a pesquisa.
[3] Segundo comenta os Doutores em Educação Cláudis Battestin e Gomercinho Ghiggi sobre a reflexão crítica jonasiana da ética tradicional: “Jonas quer chamar a atenção para a insuficiência dos imperativos éticos tradicionais diante da “nova” dimensão do agir coletivo. A ética tradicional já não tem categorias consensualmente convincentes para sustentar um debate sobre a ação humana com o meio que estamos vivendo” (2010, p.72).
[4] Na obra Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade Hans Jonas apresenta alguns elementos característicos da Modernidade tecnológica que se relacionam com a necessidade de uma nova ética. Ver: JONAS, Hans. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. São Paulo, Paulus, 2013, p.29-32. (Coleção Ethos)

[5] Sobre a postura jonasiana, diante da intervenção técnica da Modernidade no meio natural, a Filósofa Jakeline Rodrigues (2014, p. 4) comenta: “Jonas refere-se à tecnologia como sendo um fator principal no uso desastroso da natureza, e na destruição da mesma”. 
[6]  Segundo Battestin e Ghiggi, (2010, p. 75) afirma: “A Heurística do Medo é considerada viável para o descompasso entre a previsão e o poder da ação. A categoria Heurística do Medo é a capacidade humana de solucionar problemas imprevistos, servindo como critério seguro para a avaliação dos perigos apresentados pela técnica”.