Introdução
O aspecto do Crer em América Latina (AL) tem uma
marca no Espírito do Concílio Vaticano II que contribuiu para a articulação da
fé no nosso continente. Os pressupostos inter-relacionais e fundamentais do
“Crer” – Revelação, Fé e Credibilidade – dinamizam-se para uma experiência
vivencial cristã latino-americana. Tal experiência possui um modo particular e
diferenciado de expressão que é distinto da experiência dor Crer cristão na Europa
e nos diversos períodos da história do ocidente. A realidade do continente
latino-americano de pobreza, injustiça, desigualdade e degradação ambiental é o
espaço que se configura e se define o Crer cristão numa acolhida da Boa-Nova de
Deus e com uma práxis evangelizadora e libertadora da pessoa humana. O Papa
Francisco é esse referencial de continuidade e revitalização para o
crer-revolucionário em tal continente.
1
Revelação, Fé e Credibilidade: uma exigência do Crer em América Latina
A experiência cristã na AL pressupõe
teoricamente os três termos básicos presentes na Teologia Fundamental, a saber,
a Revelação, a Fé e a Credibilidade. É no vínculo entre essas temáticas que
podemos nos orientar para compreender o que significa e como se caracteriza o Crer
em América Latina. A Revelação é a proposta de Deus para o ser humano, ela não
provem do homem, mas faz parte da “autocomunicação de Deus” que se manifesta ao
ser humano e exige dele uma resposta de fé. Neste sentido a Fé se classifica
como um ato livre de acolhida de Deus e de sua Revelação. O ato de fé presente
na AL só é possível pela Credibilidade que a Revelação possui. Assim só se
acolhe a Revelação porque ela é possível e porque tem credibilidade em Deus
mesmo que não pode se contradizer e nem nos enganar (DH 3017). Todavia, em vez
de falarmos do conceito de “fé” na AL, como expressão relevante da experiência
cristã nesse continente, seguimos a linha do Teólogo Jesuíta Eugenio Rivas, no
artigo Creer en América Latina, acerca
do conceito que seria mais apropriado para falar da experiência cristã: o “crer”.
A rigor, crer em AL ou a fé em AL são equivalentes.
Porém preferimos o verbo crer, precisamente, porque queremos sublinhar o
dinamismo prospectivo e ascendente da proposta que se nos oferece como caminho,
verdade e vida (Cfr. Jn 14,6) e que o substantivo fé poderia obscurecer, pela
mesma função do substantivo no artifício de linguagem, ao sugerirmos a imagem
ou a ideia de uma substância estável, de um fato adquirido, de um absoluto. O
verbo nos dá a imagem viva deste ato singuar e único (ato de fé), mantem seu
caráter itinerante e provisório, nos trasmite o sentimento de que na respota
fica sempre algo que necessita ser restabelecido e completado, nos abre à
invenção.[1]
O Crer em AL dá continuidade ao que foi tratado no Concílio Vaticano II,
na Dei Vebum: “a obediência da fé” (DV,
n. 5). Ele se classifica como uma adesão há aquilo que Deus nos revelou por
meio dos “nossos primeiros pais” (DV, n. 3), por meio dos profetas e “pelo
Filho” (DV, n. 4) Jesus, a Palavra de Deus encarnada. O Crer também é uma resposta para Deus em um
diálogo de salvação. Para além de um reducionismo conceitual, o Crer se refere àquilo que nos foi Revelado e o que nos é transmitido pela Igreja (LIBANIO,
2004, p. 25). Na AL os parâmetros do Crer se situam em novos e particulares espaços
contextuais distintos dos espaços e contextos da Europa.
2 Espaços históricos e referenciais do Crer em
América Latina
Na
AL o Crer cristão estar em espaços geográficos e históricos distintos dos
espaços da cristandade medieval. Esta vivenciou a experiência do Crer numa
identificação entre o ser cristão e o ser cidadão (PALÁCIO, 2004, p.181) a
partir dos centros hegemônicos das cidades e na união entre a Igreja e o Estado.
Porém, na AL isso não se patenteou. A especificidade do Crer latino-americano
se realiza “na periferia do mundo, num continente que vive terrível situação de
injustiça [...]” (LIBÁNIO, 2004, p. 50). Trata-se de uma mudança de paradigma,
na experiência de fé a partir de uma realidade e de uma posição esquecida na
história: a dos vencidos, dos explorados, dos excluídos. Tais vencidos possuem
rostos específicos: os índios, os negros, as mulheres (RICHARD, 1987, p. 6). É
nesse sentido que o Crer em AL se redireciona a partir das periferias. Tal espaço deslocou o polo dinamizador da fé cristã tradicional para a experiência humana
do oprimido. Trata-se de uma virada antropológica sob o clímax da importância
pessoal dos espoliados e o esquecimento de um tipo de doutrina ou tradição não
compatível com essa nova realidade. Isso “provocou, num primeiro momento, uma
concentração no sujeito que crer” (LIBANIO, 2004, p. 64-65) sob uma experiência
de fé particular, nunca tanto explicitada na história: a experiência do Crer a
partir de um contexto e sob a condição de vida dos fracos e oprimidos. O
sujeito crente latino-americano se classifica categoricamente como “o Pobre”:
Nunca na história das teologia cristãs, o pobre
ganhou tanta centralidade. Procurar construir toda teologia a partir da
perspectiva das vítimas para denunciar os mecanismos que as fizeram vítimas e
ajudar, com a bagagem espiritual do cristianismo, na sua superação mediante a
gestação coletiva de uma sociedade com mais chances de vida, de justiça e de
participação[...]. (BOFF, 1996, p.81)
A
opção preferencial pelos pobres, além de ter o seu caráter espiritual, se
fundamentou em uma concretude histórica, com uma preocupação e prática
social. A AL “deu uma guinada em direção
ao social, repensando a fé nesse horizonte. Neste momento, a opção pelo pobre,
[...], assumiu relevância especial questionando todo o pensar teológico, cristão
e simplesmente humano” (LIBANIO, 2004, p. 22).
Adjunto a opção preferencial pelos pobres também está a realidade
ecológica que interpela o olhar do crente para a natureza. Esta se relaciona
diretamente com a causa dos pobres, pois assim como há um grito pela justiça
para com os pobres, a terra também clamar por justiça: “Há um grito
absolutamente iniludível: o da terra. Esta morrendo, todos morremos juntos” (Ibid., p.137). É nesse aspecto que o Crer
cristão assume os espaços de atuação e atualiza como resposta para os novos
tempos. Todavia, uma nova categoria faz parte da experiência do Crer
latino-americano: a práxis. É em vista desta que o Crer em AL se define como
uma experiência antropológica e transcendental, que tanto compromete o sujeito
com a realidade como o impulsiona a transformá-la. Assim o Crer
latino-americano é tanto comprometido como transformador da realidade que o
cerca, para que nesta mesma realidade se patenteie as sementes do Reino. A
Teologia da Libertação se fez como uma referência significativa para a vivencia
da fé na AL:
A teologia da libertação sobressai na compreensão
operativa da fé. Já desde suas primórdios, ela insiste nesse aspecto. Sua
pretensão é ser uma teologia da prática do cristão. Isso significa que a fé
leva o cristão a uma ação transformadora. [...] A fé participou dessa atitude
prometeica da modernidade com toda a sua ambiguidade. Deixou de ser fonte
alienadora de pura contemplação enquanto as forças conservadoras dominavam e
dirigiam a sociedade. Nisso deu passo gigantesco. (LIBANIO, 2004, p. 137-138).
A
experiência cristã na AL é marcada por momentos históricos contextuais particulares
que influenciaram e contribuíram para atualização da mensagem salvífica divina
encarnada. É nesse espaço de injustiça, exploração e desigualdade social que o
sujeito que Crer é chamado para responder com maior disponibilidade aos apelos
do Evangelho, nessa nova realidade que o interpela, na fé e na vida, para ser
um sinal de Cristo que liberta seu povo na história e leva o ser humano para a sua
plenificação escatológica. Atualmente está emergindo novas tendências de
vivencia do Crer cristão em AL. “Acentuam-se a decisão, a ecumenicidade, a
vivência do cotidiano, a dimensão simbólica, estética e comunicativa, o lado
emocional-carismático” (Ibid., p.22).
Se o concílio Vaticano II foi o impulsionador de um aggiornamento do Crer da Igreja e para a AL, no Papa Francisco
encontramos o sinal referencial dessa atualização que continua.
3
Papa Francisco: referência contemporânea para o Crer em América Latina
Desde o início do pontifício do Papa Francisco que a
Igreja em vários continentes do mundo vem renovando o Crer cristão e sua experiência
prática teológica. Esse fato tem grande significado para os cristãos da AL
porque tal Papa possui um espírito continuador do Concílio Vaticano II assim
como da experiência do Crer no nosso continente. Tal vitalidade espiritual pode
ser observada nos seus diversos escritos. Na Carta Circular aos Consagrados e às Consagradas do Magistério do Papa
Francisco (:Alegrai-vos, 2014) alguns
elementos da mensagem de Francisco têm relevância fundamental para a
experiência cristã latino-americana. Nela o Crer se situa no mistério da
“Boa-Nova que, acolhida no coração da pessoa, transforma” (ALE, n. 1) a vida
humana. Essa experiência possui uma novidade revolucionária: “Uma alegria do
coração (cf. Is 66,14) que passa por Deus [...] e se difunde em meio a um povo
mutilado por mil humilhações” (ALE, n. 13). É a experiência da Revelação da
Palavra de Deus encarnada que produz a verdadeira alegria em um mundo marcado
por injustiça, desigualdades, humilhações e exclusão. É nesse sentido que o Crer
cristão traz em Deus a resposta gratuita e generosa para os anseios humanos. O
Crer cristão não se fundamenta no homem em si, mas em Deus que toma a
iniciativa de salvar e redimir a humanidade desde a sua vocação primeira vital:
“não fostes vós que me escolhestes, fui Eu que vos escolhi” (Jo 15,16).
A relevância do primado divino na fé
cristã situa o ser humano numa abertura e relação para com o outro. É uma
resposta de fé que está em comunhão, solidariedade e diálogo com Deus e com o
próximo de modo dinâmico. A dinâmica com a Palavra de Deus “suscita a fé, a
alimenta, a regenera. É a Palavra de Deus que toca os corações, converte-os a
Deus e à sua lógica que é tão diferente da nossa” (ALE, n. 6). Na
Misericordiae Vutus encontramos dois conceitos que Francisco
desenvolve na proposta do Ano Santo da Misericórdia. Tais conceitos chegam a
ter uma ressonância na experiência do Crer no nosso continente. Trata-se da
dinâmica entre Misericórdia e Justiça na fé: “Não é a observância da lei que
salva, mas a fé em Jesus Cristo, que, pela sua morte e ressurreição, traz a
salvação com a misericórdia que justifica. A justiça de Deus torna-se agora a
libertação para quantos estão oprimidos [...]” (MV, p. 24).
Na
Evangelii Gaudium encontramos
elementos que expressam essa continuidade revolucionária do Crer, como: a nova
evangelização para a transmissão da fé, pela pastoral ordinária, pelas pessoas
que não vivência uma pertença à Igreja e não experimentam uma consolação da fé,
e a necessidade da proclamação da palavra de Deus como missão primeira de
evangelização (EG, n. 14). O aspecto dialogal teológico da AL é motivado para
uma Igreja “em saída”: “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar
todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG, n. 20). A proposta renovada de fé se relaciona
com o amor: “Aqui o que conta é, antes de mais nada, ‘a fé que atua pelo amor’”
(EG, n. 37).
A
postura cristã na AL é motivada para uma continuidade profética do “não” à economia
da exclusão, à idolatria do dinheiro e à desigualdade social que gera violência
(EG, n. 53-60). A dinâmica da fé proposta pelo Papa tem um respaldo renovado na
AL sob o signo da justiça e misericórdia de Deus, da Boa-Nova da fé e da
praticidade profético-libertadora e dignificadora da humanidade. Na Laudato Si’ é possível encontrar no
âmbito da experiência cristã a intrínseca relação entre a experiência humana
com Deus e as relações sociais com o outro e com a natureza. Assim o âmbito do
Crer em AL se amplia e se relaciona na busca do bem comum como práxis do Crer:
O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana
enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu
desenvolvimento integral. Exige também os dispositivos de bem-estar e segurança
social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios, aplicando o princípio
da subsidiariedade. Entre tais grupos, destaca-se de forma especial a família,
enquanto célula basilar da sociedade. Por fim, o bem comum requer a paz social,
isto é, a estabilidade e a segurança de certa ordem, que não se realiza sem uma
atenção particular à justiça distribuitiva, cuja violação gera sempre
violência. (LS, n. 157)
Conclusão
A partir de tais colocações sobre a experiência
fundamental do Crer no continente latino-americano e as inspirações pós-conciliares
do Papa Francisco, podemos concluir que estamos diante de novos caminhos e
desafios em tal continente. Trata-se da necessidade de uma articulação maior
entre as raízes culturais múltiplas da América Latina, a saber, a raiz
africana, indígena e europeia que perpassou o ethos latino-americano. É nesse
entrelaçamento cultural que a Teologia e a Igreja, enquanto povo de Deus, corpo
do Espírito Santo, deve reafirmar o seu Crer. Tentar separar uma das partes é
desprezar a história pela qual nosso continente assumiu a sua identidade
singular e criativa.
De
modo mais amplo o Crer na América Latina precisa se relacionar, se ampliar e
dialogar com um mundo global e integrado, pois as relações na pós-modernidade saíram
do nível regional e nacional para um nível internacional. Neste sentido o Crer
latino-americano precisa estar ligado e se relacionar com os outros países e suas
expressões culturais e religiosas. A Contemporaneidade exige isso. Por outro
lado, tal vivência de fé cristã latino-americana precisa continuar e amadurecer
o seu espaço de reflexão teológica (as periferias espaciais e existenciais) e o
ponto de partida da fé crista, no nosso continente, que se tornou o referencial
predileto da razão teológica e ética cristã: o pobre.
Tal
sujeito teológico não pode ser concebido reduzidamente como o ser humano
carente no seu aspecto econômico e político, mas assume apropriada e plena
compreensão teológica como a pessoa que tem a necessidade e dependência de
salvação em Deus. Também neste aspecto- espiritual- podemos encontrar sinais na
América Latina de pessoas que não conhecem à Jesus Cristo e não possuem uma experiência
profunda e comprometida com Ele, mesmo que diga ser cristã. Não se está
afirmando que o pobre não é aquele que está em condição social, cultural e
existencial inferior à determinados grupos de boa condição de vida, mas que
além destes, que são muito importantes e urgente suas causas, também há outros pobres
que precisam de vida digna em outros âmbitos da vida humana e espiritual. Por
outro lado, na América Latina ainda há espaços geográficos onde Jesus ainda não
foi anunciado por nós. Por isso é urgente a continuação do projeto de Deus e da
comunicação dessa Boa-Nova pela experiência do Crer atualizado em América
Latina.
Bibliografia
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II: mensagem, discursos e documentos. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2007. (p.
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RICHARD, Pablo
(Org.). Raízes da teologia
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RIVAS, Eugenio. Creer en América Latina. Texto disponível em http://theologicalatinoamericana.com/?p=457. Acesso em: 02 Jun. 2017.
[1] RIVAS, Eugenio. Creer en América Latina. Texto
disponível em http://theologicalatinoamericana.com/?p=457. Acesso em: 02 Jun. 2017.
(tradução nossa)
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