quinta-feira, 29 de junho de 2017

O Crer em América Latina


Introdução
            O aspecto do Crer em América Latina (AL) tem uma marca no Espírito do Concílio Vaticano II que contribuiu para a articulação da fé no nosso continente. Os pressupostos inter-relacionais e fundamentais do “Crer” – Revelação, Fé e Credibilidade – dinamizam-se para uma experiência vivencial cristã latino-americana. Tal experiência possui um modo particular e diferenciado de expressão que é distinto da experiência dor Crer cristão na Europa e nos diversos períodos da história do ocidente. A realidade do continente latino-americano de pobreza, injustiça, desigualdade e degradação ambiental é o espaço que se configura e se define o Crer cristão numa acolhida da Boa-Nova de Deus e com uma práxis evangelizadora e libertadora da pessoa humana. O Papa Francisco é esse referencial de continuidade e revitalização para o crer-revolucionário em tal continente. 
1 Revelação, Fé e Credibilidade: uma exigência do Crer em América Latina
            A experiência cristã na AL pressupõe teoricamente os três termos básicos presentes na Teologia Fundamental, a saber, a Revelação, a Fé e a Credibilidade. É no vínculo entre essas temáticas que podemos nos orientar para compreender o que significa e como se caracteriza o Crer em América Latina. A Revelação é a proposta de Deus para o ser humano, ela não provem do homem, mas faz parte da “autocomunicação de Deus” que se manifesta ao ser humano e exige dele uma resposta de fé. Neste sentido a Fé se classifica como um ato livre de acolhida de Deus e de sua Revelação. O ato de fé presente na AL só é possível pela Credibilidade que a Revelação possui. Assim só se acolhe a Revelação porque ela é possível e porque tem credibilidade em Deus mesmo que não pode se contradizer e nem nos enganar (DH 3017). Todavia, em vez de falarmos do conceito de “fé” na AL, como expressão relevante da experiência cristã nesse continente, seguimos a linha do Teólogo Jesuíta Eugenio Rivas, no artigo Creer en América Latina, acerca do conceito que seria mais apropriado para falar da experiência cristã: o “crer”.
A rigor, crer em AL ou a fé em AL são equivalentes. Porém preferimos o verbo crer, precisamente, porque queremos sublinhar o dinamismo prospectivo e ascendente da proposta que se nos oferece como caminho, verdade e vida (Cfr. Jn 14,6) e que o substantivo fé poderia obscurecer, pela mesma função do substantivo no artifício de linguagem, ao sugerirmos a imagem ou a ideia de uma substância estável, de um fato adquirido, de um absoluto. O verbo nos dá a imagem viva deste ato singuar e único (ato de fé), mantem seu caráter itinerante e provisório, nos trasmite o sentimento de que na respota fica sempre algo que necessita ser restabelecido e completado, nos abre à invenção.[1]
            O Crer em AL dá continuidade ao que foi tratado no Concílio Vaticano II, na Dei Vebum: “a obediência da fé” (DV, n. 5). Ele se classifica como uma adesão há aquilo que Deus nos revelou por meio dos “nossos primeiros pais” (DV, n. 3), por meio dos profetas e “pelo Filho” (DV, n. 4) Jesus, a Palavra de Deus encarnada.  O Crer também é uma resposta para Deus em um diálogo de salvação. Para além de um reducionismo conceitual, o Crer se refere àquilo que nos foi Revelado e o que nos é transmitido pela Igreja (LIBANIO, 2004, p. 25). Na AL os parâmetros do Crer se situam em novos e particulares espaços contextuais distintos dos espaços e contextos da Europa.
2 Espaços históricos e referenciais do Crer em América Latina
Na AL o Crer cristão estar em espaços geográficos e históricos distintos dos espaços da cristandade medieval. Esta vivenciou a experiência do Crer numa identificação entre o ser cristão e o ser cidadão (PALÁCIO, 2004, p.181) a partir dos centros hegemônicos das cidades e na união entre a Igreja e o Estado. Porém, na AL isso não se patenteou. A especificidade do Crer latino-americano se realiza “na periferia do mundo, num continente que vive terrível situação de injustiça [...]” (LIBÁNIO, 2004, p. 50). Trata-se de uma mudança de paradigma, na experiência de fé a partir de uma realidade e de uma posição esquecida na história: a dos vencidos, dos explorados, dos excluídos. Tais vencidos possuem rostos específicos: os índios, os negros, as mulheres (RICHARD, 1987, p. 6). É nesse sentido que o Crer em AL se redireciona a partir das periferias. Tal espaço deslocou o polo dinamizador da fé cristã tradicional para a experiência humana do oprimido. Trata-se de uma virada antropológica sob o clímax da importância pessoal dos espoliados e o esquecimento de um tipo de doutrina ou tradição não compatível com essa nova realidade. Isso “provocou, num primeiro momento, uma concentração no sujeito que crer” (LIBANIO, 2004, p. 64-65) sob uma experiência de fé particular, nunca tanto explicitada na história: a experiência do Crer a partir de um contexto e sob a condição de vida dos fracos e oprimidos. O sujeito crente latino-americano se classifica categoricamente como “o Pobre”:
Nunca na história das teologia cristãs, o pobre ganhou tanta centralidade. Procurar construir toda teologia a partir da perspectiva das vítimas para denunciar os mecanismos que as fizeram vítimas e ajudar, com a bagagem espiritual do cristianismo, na sua superação mediante a gestação coletiva de uma sociedade com mais chances de vida, de justiça e de participação[...]. (BOFF, 1996, p.81)
A opção preferencial pelos pobres, além de ter o seu caráter espiritual, se fundamentou em uma concretude histórica, com uma preocupação e prática social.  A AL “deu uma guinada em direção ao social, repensando a fé nesse horizonte. Neste momento, a opção pelo pobre, [...], assumiu relevância especial questionando todo o pensar teológico, cristão e simplesmente humano” (LIBANIO, 2004, p. 22).  Adjunto a opção preferencial pelos pobres também está a realidade ecológica que interpela o olhar do crente para a natureza. Esta se relaciona diretamente com a causa dos pobres, pois assim como há um grito pela justiça para com os pobres, a terra também clamar por justiça: “Há um grito absolutamente iniludível: o da terra. Esta morrendo, todos morremos juntos” (Ibid., p.137). É nesse aspecto que o Crer cristão assume os espaços de atuação e atualiza como resposta para os novos tempos. Todavia, uma nova categoria faz parte da experiência do Crer latino-americano: a práxis. É em vista desta que o Crer em AL se define como uma experiência antropológica e transcendental, que tanto compromete o sujeito com a realidade como o impulsiona a transformá-la. Assim o Crer latino-americano é tanto comprometido como transformador da realidade que o cerca, para que nesta mesma realidade se patenteie as sementes do Reino. A Teologia da Libertação se fez como uma referência significativa para a vivencia da fé na AL:
A teologia da libertação sobressai na compreensão operativa da fé. Já desde suas primórdios, ela insiste nesse aspecto. Sua pretensão é ser uma teologia da prática do cristão. Isso significa que a fé leva o cristão a uma ação transformadora. [...] A fé participou dessa atitude prometeica da modernidade com toda a sua ambiguidade. Deixou de ser fonte alienadora de pura contemplação enquanto as forças conservadoras dominavam e dirigiam a sociedade. Nisso deu passo gigantesco. (LIBANIO, 2004, p. 137-138).
A experiência cristã na AL é marcada por momentos históricos contextuais particulares que influenciaram e contribuíram para atualização da mensagem salvífica divina encarnada. É nesse espaço de injustiça, exploração e desigualdade social que o sujeito que Crer é chamado para responder com maior disponibilidade aos apelos do Evangelho, nessa nova realidade que o interpela, na fé e na vida, para ser um sinal de Cristo que liberta seu povo na história e leva o ser humano para a sua plenificação escatológica. Atualmente está emergindo novas tendências de vivencia do Crer cristão em AL. “Acentuam-se a decisão, a ecumenicidade, a vivência do cotidiano, a dimensão simbólica, estética e comunicativa, o lado emocional-carismático” (Ibid., p.22). Se o concílio Vaticano II foi o impulsionador de um aggiornamento do Crer da Igreja e para a AL, no Papa Francisco encontramos o sinal referencial dessa atualização que continua.
3 Papa Francisco: referência contemporânea para o Crer em América Latina
            Desde o início do pontifício do Papa Francisco que a Igreja em vários continentes do mundo vem renovando o Crer cristão e sua experiência prática teológica. Esse fato tem grande significado para os cristãos da AL porque tal Papa possui um espírito continuador do Concílio Vaticano II assim como da experiência do Crer no nosso continente. Tal vitalidade espiritual pode ser observada nos seus diversos escritos. Na Carta Circular aos Consagrados e às Consagradas do Magistério do Papa Francisco (:Alegrai-vos, 2014) alguns elementos da mensagem de Francisco têm relevância fundamental para a experiência cristã latino-americana. Nela o Crer se situa no mistério da “Boa-Nova que, acolhida no coração da pessoa, transforma” (ALE, n. 1) a vida humana. Essa experiência possui uma novidade revolucionária: “Uma alegria do coração (cf. Is 66,14) que passa por Deus [...] e se difunde em meio a um povo mutilado por mil humilhações” (ALE, n. 13). É a experiência da Revelação da Palavra de Deus encarnada que produz a verdadeira alegria em um mundo marcado por injustiça, desigualdades, humilhações e exclusão. É nesse sentido que o Crer cristão traz em Deus a resposta gratuita e generosa para os anseios humanos. O Crer cristão não se fundamenta no homem em si, mas em Deus que toma a iniciativa de salvar e redimir a humanidade desde a sua vocação primeira vital: “não fostes vós que me escolhestes, fui Eu que vos escolhi” (Jo 15,16).
            A relevância do primado divino na fé cristã situa o ser humano numa abertura e relação para com o outro. É uma resposta de fé que está em comunhão, solidariedade e diálogo com Deus e com o próximo de modo dinâmico. A dinâmica com a Palavra de Deus “suscita a fé, a alimenta, a regenera. É a Palavra de Deus que toca os corações, converte-os a Deus e à sua lógica que é tão diferente da nossa” (ALE, n. 6). Na Misericordiae Vutus encontramos dois conceitos que Francisco desenvolve na proposta do Ano Santo da Misericórdia. Tais conceitos chegam a ter uma ressonância na experiência do Crer no nosso continente. Trata-se da dinâmica entre Misericórdia e Justiça na fé: “Não é a observância da lei que salva, mas a fé em Jesus Cristo, que, pela sua morte e ressurreição, traz a salvação com a misericórdia que justifica. A justiça de Deus torna-se agora a libertação para quantos estão oprimidos [...]” (MV, p. 24).  
Na Evangelii Gaudium encontramos elementos que expressam essa continuidade revolucionária do Crer, como: a nova evangelização para a transmissão da fé, pela pastoral ordinária, pelas pessoas que não vivência uma pertença à Igreja e não experimentam uma consolação da fé, e a necessidade da proclamação da palavra de Deus como missão primeira de evangelização (EG, n. 14). O aspecto dialogal teológico da AL é motivado para uma Igreja “em saída”: “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG, n. 20). A proposta renovada de fé se relaciona com o amor: “Aqui o que conta é, antes de mais nada, ‘a fé que atua pelo amor’” (EG, n. 37).
A postura cristã na AL é motivada para uma continuidade profética do “não” à economia da exclusão, à idolatria do dinheiro e à desigualdade social que gera violência (EG, n. 53-60). A dinâmica da fé proposta pelo Papa tem um respaldo renovado na AL sob o signo da justiça e misericórdia de Deus, da Boa-Nova da fé e da praticidade profético-libertadora e dignificadora da humanidade. Na Laudato Si’ é possível encontrar no âmbito da experiência cristã a intrínseca relação entre a experiência humana com Deus e as relações sociais com o outro e com a natureza. Assim o âmbito do Crer em AL se amplia e se relaciona na busca do bem comum como práxis do Crer:
O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral. Exige também os dispositivos de bem-estar e segurança social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios, aplicando o princípio da subsidiariedade. Entre tais grupos, destaca-se de forma especial a família, enquanto célula basilar da sociedade. Por fim, o bem comum requer a paz social, isto é, a estabilidade e a segurança de certa ordem, que não se realiza sem uma atenção particular à justiça distribuitiva, cuja violação gera sempre violência. (LS, n. 157)
Conclusão
            A partir de tais colocações sobre a experiência fundamental do Crer no continente latino-americano e as inspirações pós-conciliares do Papa Francisco, podemos concluir que estamos diante de novos caminhos e desafios em tal continente. Trata-se da necessidade de uma articulação maior entre as raízes culturais múltiplas da América Latina, a saber, a raiz africana, indígena e europeia que perpassou o ethos latino-americano. É nesse entrelaçamento cultural que a Teologia e a Igreja, enquanto povo de Deus, corpo do Espírito Santo, deve reafirmar o seu Crer. Tentar separar uma das partes é desprezar a história pela qual nosso continente assumiu a sua identidade singular e criativa.
De modo mais amplo o Crer na América Latina precisa se relacionar, se ampliar e dialogar com um mundo global e integrado, pois as relações na pós-modernidade saíram do nível regional e nacional para um nível internacional. Neste sentido o Crer latino-americano precisa estar ligado e se relacionar com os outros países e suas expressões culturais e religiosas. A Contemporaneidade exige isso. Por outro lado, tal vivência de fé cristã latino-americana precisa continuar e amadurecer o seu espaço de reflexão teológica (as periferias espaciais e existenciais) e o ponto de partida da fé crista, no nosso continente, que se tornou o referencial predileto da razão teológica e ética cristã: o pobre.
Tal sujeito teológico não pode ser concebido reduzidamente como o ser humano carente no seu aspecto econômico e político, mas assume apropriada e plena compreensão teológica como a pessoa que tem a necessidade e dependência de salvação em Deus. Também neste aspecto- espiritual- podemos encontrar sinais na América Latina de pessoas que não conhecem à Jesus Cristo e não possuem uma experiência profunda e comprometida com Ele, mesmo que diga ser cristã. Não se está afirmando que o pobre não é aquele que está em condição social, cultural e existencial inferior à determinados grupos de boa condição de vida, mas que além destes, que são muito importantes e urgente suas causas, também há outros pobres que precisam de vida digna em outros âmbitos da vida humana e espiritual. Por outro lado, na América Latina ainda há espaços geográficos onde Jesus ainda não foi anunciado por nós. Por isso é urgente a continuação do projeto de Deus e da comunicação dessa Boa-Nova pela experiência do Crer atualizado em América Latina.   
Bibliografia
BOFF, Leonardo. Da libertação e ecologia: desdobramento de uma mesmo paradigma. In ANJOS, Márcio Fabri dos (org.). Teologia e novos paradigmas. São Paulo: SOTER/Loyola, 1996.
BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
CARTA APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO. Às pessoas Consagradas: em ocasião do ano da vida consagrada. São Paulo: Paulinas, 2014.
CARTA ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Alegrai-vos: carta circular aos consagrados e às consagradas do magistério do papa Francisco. São Paulo: Paulinas, 2014.
CONSTITUIÇÃO Dogmática “Dei Verbum” sobre a Revelação divina. In CONCÍLIO VATICANO (2.: 1962-1965).Vaticano II: mensagem, discursos e documentos. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2007. (p. 345-358)
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii Gaudium: do Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.
LIBANIO, João Batista. B. Eu creio, nós cremos: tratado da fé. 2ed. São Paulo: Loyola, 2004.
RICHARD, Pablo (Org.). Raízes da teologia latino-americana. São Paulo: Paulinas, 1987.
RIVAS, Eugenio. Creer en América Latina. Texto disponível em http://theologicalatinoamericana.com/?p=457. Acesso em: 02 Jun. 2017.




[1] RIVAS, Eugenio. Creer en América Latina. Texto disponível em http://theologicalatinoamericana.com/?p=457. Acesso em: 02 Jun. 2017. (tradução nossa)

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