Introdução
É
comum na piedade e devoção popular encontrar em Maria a figura exemplar de mãe,
doce e compassiva, próxima de Deus e dos santos, tão alta em dignidade, piedade
e intercessão, que recorremos a ela para nos ajudar nas nossas causas. Tal
devoção cultual e veneração mariana estar em contraponto ou conflito com o
desprezo ou desvalorização de certa camada protestante (evangélica e
neopentecostal) pela mesma.
Porém,
para além do devocionário popular, dos excessos de divinização mariana e de
certa tradição maximalista acerca do valor de Maria na Igreja e na vida dos
fiéis devotos, vamos nos deter, até certo ponto, sobre um novo rosto de Maria
que emergiu na América Latina (da década de 60 em diante), influenciado pelos
escritos bíblicos e pela realidade de injustiça, miséria e sofrimento da
maioria do povo latino americano: os pobres. A nova concepção que se gestou de Maria
no nosso continente (nos Estudos Bíblicos, nas Comunidades Eclesiais de Base e
nos Movimentos Teológico-Revolucionários) atribui à Maria o predicado de
“libertadora”. Essa orientação teológica é chamada de “Mariologia
Latino-Americana”, mas poderíamos também chamá-la de “teologia mariana da
libertação”.
Tal
reflexão teológica revolucionária ajuda-nos hoje a ter uma fé cristã mais
madura, pois percebe Maria (e com ela a nossa identidade de fé) fazendo parte
do projeto da salvação cristã. Observamos Maria não com uma identidade
angelical, divinizada e pós-pascal, como já se sustenta na Tradição (até certo
ponto importante), mas com uma identidade humana-cristã. Marcada por lutas,
conflitos e dificuldades reais, porém, totalmente comprometida com a salvação e
libertação do Povo (de Israel), assim como de todos nós, na atual situação que
estamos: de conflito, de violência, intolerância, discriminação, exploração,
desigualdade e injustiça socioambiental.
Para
explicitar o que pretendemos com essa identidade mariana e, com ela, a nossa
identidade cristã, vamos primeiro nos deter sobre as características de Maria em
parte dos escritos e contextos bíblicos (evangelhos). Por conseguinte vamos
delinear a influencia libertadora mariana na teologia e práxis latino-americana.
1) CONTORNOS DE IDENTIDADE MARIANA LIBERTADORA NOS
EVANGELHOS
Vale
deixar claro que toda a dinâmica dos evangelhos está orientada para o mistério
da vida, paixão, morte e ressurreição de Cristo. Nessa dinâmica está a
participação, identidade e presença de Maria.
a)
Maria no evangelista Marcos
O
Evangelho de Marcos está subdividido em duas grandes partes. Na primeira (Mc
1,1-8,26) se situa os textos que fazem referência à Maria. Nesta parte
observamos Jesus inaugurando o Reino de Deus (1,14ss), Reino de libertação,
contra o anti-reino (1,16-45): de injustiça, de exclusão, de negação de Jesus e
do projeto do Pai.
Se
na primeira parte há uma busca pela identidade de Jesus (8,27: quem dizem os
homens que eu sou? ), na segunda parte temos a identidade dos que estão com
Jesus: os seguidores (discípulos, apóstolos e nós). Os que se identificam com
Jesus estão seguindo-o, como Simão e André (1,16s). O sofrimento e a renúncia
fazem parte do seguimento (8,34). A expressão mais radical do seguimento é o serviço contínuo até a entrega da
própria vida pelo Reino como indica Jesus: “começou a dizer o que estava para
acontecer....o Filho do Homem será entregue ao chefes dos sacerdotes e aos
escribas; eles o condenarão a morte...” (10,32-33).
A
presença de Maria se encontra na passagem que fala sobre a família de Jesus a
procura Dele (Mc 3,31-35). A identidade de Maria é a de “Mãe”, aquela que com
sua família procura o Filho (Jesus). Porém, a questão familiar nuclear (parentesco
sanguíneo de primeiro grau) não está em jogo, mas a questão polinuclear: a
família ampliada, aquela que se situa na cultura parental do clã. Marcos
apresenta que há um conflito entre a família
nuclear e a família dos seguidores
de Jesus.
Ao
apresentar a concepção familiar na dinâmica comunitária cultural da época,
Jesus apresenta o sentido teológico moral-social da identidade familiar cristã:
“Eis minha mãe e meus irmãos. Todo aquele que faz a vontade de Deus”. Em Marcos
(6,1s) Maria é Mãe a partir da filiação de Jesus: “Não é este o carpinteiro, o
filho de Maria,...?” (6,3). Porém, a
família sanguínea de Jesus é colocada como “fora” da dinâmica do Reino, da
adesão de Fé em Jesus como profeta (6,4). Enquanto os parentes de Jesus são
caracterizados como incrédulos, nada pode ser afirmado sobre Maria, a não ser
que ela estava no meio dos parentes e que
não estava presente na hora da cruz. Fora disso, nada mais é possível
afirmar dela.
b)
Maria no evangelista Mateus
Em
Mateus Maria está incluída na narrativa da infância (Mt 1-2) e em alguns
relatos da vida pública de Jesus. O Evangelho
tem a finalidade de apresentar ao leitor quem é o Cristo ressuscitado, em quem
a comunidade crer e a quem esta quer seguir. Por esse foco Maria irá ser melhor
compreendida.
Jesus
é o “filho de Davi e Abraão” (1,1), portanto, é da geração de Israel. Se a
tradição era descrever a geração de pai para
filho ou filha (Mt 1,2:“Abrão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó”), Mateus dar
mais importância à Maria, e não a José, ao tratar da geração de Jesus: “José o
esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo” (Mt 1,16).
Sem
desmerecer José, observamos que Maria tanto faz parte da tradição de Israel (a
vida de escravidão, luta e libertação), como também é a que acolhe em seu seio
o Espírito Santo e é aquela que concebe (co-geradora?) de Jesus salvador, o
Emanuel (Mt 1,18-23), o Messias, o “rei dos judeus”. Apesar de Jose ser um
homem justo e bondoso, a relação de Maria com Jesus é de importância singular. Maria
está implicada na ação do Espírito, na promessa do Salvador, na presença do
“Deus conosco”, no encontro dos magos com Jesus (“viram o menino com Maria, sua
mãe”) e na fuga para se livrar da morte (2,13).
Agora
em Mateus (12,46-50; 13,53-58) a distância entre a família biológica de Jesus e
a família de seus seguidores é diminuída. Não há oposição como em Marcos. Portanto,
há uma abertura para identificação de Maria como aquela que faz a vontade do
Pai (12,50). Até aqui já é possível
fazer uma ligação de Maria com a Trindade,
pois ela está aberta para fazer a vontade do Pai, concebe o Filho e acolhe o
Espírito.
c)
Maria no evangelista Lucas
O
Evangelho de Lucas nos dá maior contribuição para a identidade mariana na
dinâmica da realidade latino-americana. Pois no evangelista encontramos espaço
para Maria como perfeita discípula e
seguidora de Jesus. Para uma síntese distribuímos o Evangelho em oito
blocos: i) a anunciação (Lc 1,26-38), ii) a visitação (Lc 1,39-45) e o Magnificat
(Lc 1,46-55), iii) o nascimento e visita dos pastores (Lc 2,1-20), iv) a apresentação
no templo (Lc 2,22-35), v) a vida oculta em Nazaré (Lc 2,39s e 2,51s), vi) o desencontro
no templo (Lc 2,41-50), vii) a nova família (Lc 8,19s), a mulher na multidão (Lc 11,27s) e viii) a preparação
para pentecostes (At 1,14).
No
primeiro bloco a identidade virginal de
Maria (1,27) engloba a única e exclusiva ação de Deus. Ela está aberta a Alegria (Ave: Hairè) (1,28) messiânica
(Zc2,14s; Sf 3,14-17) da promessa de Deus. É a contemplada (em quem habita o Espírito), o Senhor está com ela assim
como esteve na vida de luta de Isaac (Gn 26,3.24), Jacó (Gn 28,15), Moisés (Ex
3,11s) e etc. Maria busca o sentido para as coisas (Lc 1,29), é questionadora (Lc 1,34), é profetiza que está a serviço de Deus
(Lc 1,38), é decididamente comprometida e
ativa com a missão de salvação divina (Lc 1,39).
No
segundo bloco Maria supera a tradição patriarcalista de ser acolhida e saudar
primeiro o dono da casa (Maria saudou Isabel e não Zacarias), é bendita junto com o filho Jesus (Lc 1,42),
é bem-aventurada porque teve fé
(1,45), ela produz o fruto pela fé e não será abandonada na promessa
messiânica. No Magnificat Maria manifesta a grandeza do Senhor e exulta-O como
Salvador. Deus olhou para a humilhação
de sua serva (Lc 1,48) como olhou para o sofrimento do povo de Deus no Egito.
Todos
a chamarão de feliz (bem-aventurada) pelo que Deus fez em seu favor. Maria é pobre de Deus, é dependente
Dele. Porque Ele olhou para a sua humilhação. Maria exalta a Deus (“seu nome é santo”) e afirma profeticamente a justiça real e social de Deus: “agiu com
força de seu braço, dispensou os homens de coração orgulhoso. Depôs poderosos
de seus tronos, a humildes exaltou. Cumulou de bens os famintos e despediu os
ricos de mãos vazias” (Lc 1,51-53).
Por
fim, Maria retoma as esperanças de
Israel concretizadas em Jesus: “Socorreu Israel, ser servo, lembrando de sua
misericórdia – conforme prometera a nossos pais – em favor de Abraão e de sua
descendência , para sempre” (Lc 1,54).
No
terceiro bloco Maria passa pelas exigências políticas do recenseamento e em
Belém tem Jesus. Encobri-o de faixas e coloca-o numa manjedoura, pois não havia
espaço apropriado (Lc 2,7). A situação indica a condição pobre da família de nazaré. Com a presença e fala dos
pastores, Maria faz um discernimento
interior sobre os acontecimentos (Lc 2,19.51).
No
quarto bloco observamos Maria como mulher
de fé, sempre no caminho para encontrar-se com Deus e conduzir os seus para
Deus. Ela é mulher pobre e começa a
ter consciência das intempéries da realidade, das fragilidades, dores e
sofrimentos que irá passar por e com Jesus até se concretizar a salvação (Lc 2,29-35).
No
quinto bloco situamos Maria como cumpridora
da fé e lei de Deus. Mas ela está na periferia, ela é de uma região pobre: Nazaré. Ela é mãe educadora (2,51). No sexto bloco,
ela passa pela condição humana de perde de vista Jesus durante o caminho
(2,43-45), mas reencontra-o. Maria expressa às limitações existenciais de não compreender o projeto de Deus na sua plenitude
(2,50), de reconhecer-se limitada no saber sobre o que Deus queria.
No
sétimo bloco Maria quer ver Jesus. A
identidade da família de Nazaré em Lucas segue a mesma dinâmica de Mt 3,31-35.
Trata-se da identificação familiar como aquela que ouve “a Palavra de Deus e a
põem em prática” (Lc 8,21). Em Lc 11,27 há uma exaltação privilegiada da mulher
discípula que ouve e pratica a palavra de Deus no lugar daquela que é mãe de
Jesus. Porém, o foco da questão está na dimensão da fé, prática da família de
Deus e não uma identificação direta sobre Maria como bendita.
No
oitavo bloco acentuamos em Maria a
dimensão oracional e comunitária da fé, Ela é perseverante na oração e está
inserida na comunidade crente que tem esperança. Ela está integrada com o
projeto de concretização do Reino de Deus (At 1,14).
d)
Maria no evangelista João
O
Evangelho de João está dividido em três partes: prólogo (1,1-18), livros dos
sinais (1,19-12,50) e livro da exaltação (13-20). Maria está presente na
segunda e terceira parte. É importante destacar que ela nunca é chamada pelo
nome (Maria), mas por duas características importantes e já citadas: mãe e
mulher. Um diferencial deste Evangelho é que Maria é chamada de “mãe do discípulo amado”. Aqui se situa
sua ligação com toda a comunidade de fé, todo o povo de Deus.
Em
Caná (Jo 2,1-12) Maria participa dos sinais de fé, da semana programática. Caná
é o espaço privilegiado do começo da revelação de Jesus e da fé dos discípulos.
A dinâmica da “glória” tem aproximação relacional com o êxodo/libertação do
povo (Ex 10,1; Nm 14,11-22; Dt 7,19). Maria está inserida nessa dinâmica. Na
dinâmica da realidade em que falta o vinho (visto como alegria), Maria faz um
apelo.
Essa
sensibilidade para com a realidade, a
descoberta do que se falta para a
felicidade da comunidade e a intervenção
em favor da mesma é nota da identidade mariana.
A resistência da fé é outro
elemento de tal mulher. A exigência da realidade, a intervenção da fé, o sinal
de resposta divina e a maior adesão de fé marcam esse processo. O poder, a
liderança, a inclusão e participação comunitária integram um caminho para Jesus
e concretização do Reino de alegria plena e integral.
Diante
da cruz, com o discípulo amado, Maria está integrada no caminho de glorificação
do Filho Jesus (Jo 19,25-27). Diante do drama da injustiça e da morte do Filho,
Maria está de Pé (Jo 19,25). É
perseverante na fé frente ao drama da morte. Maria assume o discípulo amado
(comunidade) (Jo 19,26) e este a acolhe como mãe e na comunidade (Jo 19,27).
MARIA LIBERTADORA: NA REALIDADE LATINO-AMERICANA
A partir do Concílio Vaticano II
tivemos nos documentos da Igreja novos desafios para interpretar a presença e
importância de Maria na Doutrina Social da Igreja para além de um devocionismo,
uma recitação de Rosário e uns relatos de aparições. A nova impostação mariana
estava agora sendo refletida a partir da
história da salvação e da eclesiologia. Esses dois espaços foram sendo o
lugar da reflexão. Porém, mais duas orientações foram decisivas para a nova
hermenêutica sobre Maria na América Latina: a retomada das fontes bíblicas, o
diálogo com as novas ciências modernas e a contemporaneidade.
Essas orientações contribuíram para
o estatuto epistemológico da mariologia no continente das histórias injustas e
com a latente figura materna de Maria na centralidade da fé. Porém,
decididamente com as aparições de Guadalupe em 1531 começa na Igreja latina a
florescer a figura de Maria associada à
Libertação a partir de novas perspectivas antropológicas e sociais.
Daí
começou-se a observar em Maria a identidade
feminina e de “Mulher” comprometida com a história deste povo (de Deus e do
povo latino-americano). Nesse primeiro passo encontramos a relevância da
identidade de Maria como Mulher já sinalizada no final do evangelho joanino
(19,26) e em partes do evangelho mateano (1,20). A identidade feminina marial tem sua contribuição advinda dos novos
sujeitos teológicos (a irrupção da mulher na teologia), das emergentes
correntes teológicas (feministas) e das acentuações no campo pastoral e
eclesial (a participação e comprometimento feminino nas igrejas, ministérios e
lideranças) da América Latina. A emergente mariologia privilegiou uma releitura
das Escrituras na dinâmica da práxis libertadora, mas com certo respeito da Tradição
e da devoção eclesial à Mãe de Jesus.
Assim,
iniciou-se uma maior identificação de Maria com as situações de sofrimentos,
dor, desamparo e pobreza do povo. Com ela o Evangelho tornou-se mais encarnado.
Sua primeira contribuição foi: a recuperação da voz das mulheres e a escuta dos
clamores femininos por libertação, frente à realidade patriarcal,
androcêntrica, sexista e discriminatória da mulher. Em tal situação encontramos
a inspiração teologal da sensibilidade,
resistência e práxis libertadora mariana no evangelista joanino (2,3). De
igual modo a liderança, missionariedade e
evangelização feminina (Maria faz parte desse processo) encontra sua
inspiração bíblica na experiência com o ressuscitado no final dos escritos
joaninos.
Na teologia feminina libertadora a mariologia
supera a visão ideologizada de ocultamento e submissão, presente na Tradição,
por uma concepção revolucionária de justiça,
corporeidade e maternidade na participação co-geradora de um mundo novo em
Cristo. Tal concepção é desvelada pela participação e concepção de Maria no
evangelho mateano (1,15-16).
A
mariologia libertadora assume a causa dos
pobres como reflexão bíblica a partir do olhar latino-americano. Trata-se da
identificação de Maria com a condição, vida, identidade e esperança do pobre,
no evangelho lucano (1,46-50; 1,26; 2,12; 2,24; 7,18-23) e mateano (Lc 2,6). No
Magnificat (Lc 1,46-50) Maria é arquétipo da Igreja latino-americana: chamada a
identificar-se com os povos sofridos e empobrecidos dessas nações; a
maternidade de Maria em relação ao filho Jesus, identifica-a como mãe daqueles
a quem Jesus quis si identificar (os pobres), dai o fundamento de Maria ser mãe
do Filho de Deus e Mãe dos Pobres, referência cristã na teologia da Igreja por
libertação.
BIBLIOGRAFIA
A BÍBLIA de
Jerusalém. Nova ed. rev. São Paulo: Paulinas, 1985.
DORADO, Antonio
González. De Maríra conquistadora a María
libertadora: mariologia popular latino-americana. Guevara: Editorial Sal
Terrae, 1988.
MURAD, Afonso
Tadeu. Maria, toda de Deus e tão humana:
compêndio de mariologia. São Paulo: Paulinas, Santuário. 2012.
MURAD, Afonso
Tadeu. Quem é essa mulher: Maria na
Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1996.
SILVA, João
Justino de Medeiros. Pneumatologia e
mariologia no horizonte teológico latino-americano.Roma: Pontifícia
Universidade Gregoriana, 2003.
Nenhum comentário:
Postar um comentário