sexta-feira, 7 de junho de 2019

MARIA LIBERTADORA: TRAÇOS MARIANOS NOS EVANGELHOS E SUA CONTRIBUIÇÃO TEOLÓGICA PARA A IGREJA LATINO-AMERICANA.



Introdução
É comum na piedade e devoção popular encontrar em Maria a figura exemplar de mãe, doce e compassiva, próxima de Deus e dos santos, tão alta em dignidade, piedade e intercessão, que recorremos a ela para nos ajudar nas nossas causas. Tal devoção cultual e veneração mariana estar em contraponto ou conflito com o desprezo ou desvalorização de certa camada protestante (evangélica e neopentecostal) pela mesma.
Porém, para além do devocionário popular, dos excessos de divinização mariana e de certa tradição maximalista acerca do valor de Maria na Igreja e na vida dos fiéis devotos, vamos nos deter, até certo ponto, sobre um novo rosto de Maria que emergiu na América Latina (da década de 60 em diante), influenciado pelos escritos bíblicos e pela realidade de injustiça, miséria e sofrimento da maioria do povo latino americano: os pobres. A nova concepção que se gestou de Maria no nosso continente (nos Estudos Bíblicos, nas Comunidades Eclesiais de Base e nos Movimentos Teológico-Revolucionários) atribui à Maria o predicado de “libertadora”. Essa orientação teológica é chamada de “Mariologia Latino-Americana”, mas poderíamos também chamá-la de “teologia mariana da libertação”.
Tal reflexão teológica revolucionária ajuda-nos hoje a ter uma fé cristã mais madura, pois percebe Maria (e com ela a nossa identidade de fé) fazendo parte do projeto da salvação cristã. Observamos Maria não com uma identidade angelical, divinizada e pós-pascal, como já se sustenta na Tradição (até certo ponto importante), mas com uma identidade humana-cristã. Marcada por lutas, conflitos e dificuldades reais, porém, totalmente comprometida com a salvação e libertação do Povo (de Israel), assim como de todos nós, na atual situação que estamos: de conflito, de violência, intolerância, discriminação, exploração, desigualdade e injustiça socioambiental.
Para explicitar o que pretendemos com essa identidade mariana e, com ela, a nossa identidade cristã, vamos primeiro nos deter sobre as características de Maria em parte dos escritos e contextos bíblicos (evangelhos). Por conseguinte vamos delinear a influencia libertadora mariana na teologia e práxis latino-americana.
1) CONTORNOS DE IDENTIDADE MARIANA LIBERTADORA NOS EVANGELHOS
Vale deixar claro que toda a dinâmica dos evangelhos está orientada para o mistério da vida, paixão, morte e ressurreição de Cristo. Nessa dinâmica está a participação, identidade e presença de Maria.
a)   Maria no evangelista Marcos
O Evangelho de Marcos está subdividido em duas grandes partes. Na primeira (Mc 1,1-8,26) se situa os textos que fazem referência à Maria. Nesta parte observamos Jesus inaugurando o Reino de Deus (1,14ss), Reino de libertação, contra o anti-reino (1,16-45): de injustiça, de exclusão, de negação de Jesus e do projeto do Pai. 
Se na primeira parte há uma busca pela identidade de Jesus (8,27: quem dizem os homens que eu sou? ), na segunda parte temos a identidade dos que estão com Jesus: os seguidores (discípulos, apóstolos e nós). Os que se identificam com Jesus estão seguindo-o, como Simão e André (1,16s). O sofrimento e a renúncia fazem parte do seguimento (8,34). A expressão mais radical do seguimento é o serviço contínuo até a entrega da própria vida pelo Reino como indica Jesus: “começou a dizer o que estava para acontecer....o Filho do Homem será entregue ao chefes dos sacerdotes e aos escribas; eles o condenarão a morte...” (10,32-33).
A presença de Maria se encontra na passagem que fala sobre a família de Jesus a procura Dele (Mc 3,31-35). A identidade de Maria é a de “Mãe”, aquela que com sua família procura o Filho (Jesus). Porém, a questão familiar nuclear (parentesco sanguíneo de primeiro grau) não está em jogo, mas a questão polinuclear: a família ampliada, aquela que se situa na cultura parental do clã. Marcos apresenta que há um conflito entre a família nuclear e a família dos seguidores de Jesus.
Ao apresentar a concepção familiar na dinâmica comunitária cultural da época, Jesus apresenta o sentido teológico moral-social da identidade familiar cristã: “Eis minha mãe e meus irmãos. Todo aquele que faz a vontade de Deus”. Em Marcos (6,1s) Maria é Mãe a partir da filiação de Jesus: “Não é este o carpinteiro, o filho de Maria,...?” (6,3).  Porém, a família sanguínea de Jesus é colocada como “fora” da dinâmica do Reino, da adesão de Fé em Jesus como profeta (6,4). Enquanto os parentes de Jesus são caracterizados como incrédulos, nada pode ser afirmado sobre Maria, a não ser que ela estava no meio dos parentes e que não estava presente na hora da cruz. Fora disso, nada mais é possível afirmar dela.
b)   Maria no evangelista Mateus
Em Mateus Maria está incluída na narrativa da infância (Mt 1-2) e em alguns relatos da vida pública de Jesus.  O Evangelho tem a finalidade de apresentar ao leitor quem é o Cristo ressuscitado, em quem a comunidade crer e a quem esta quer seguir. Por esse foco Maria irá ser melhor compreendida.
Jesus é o “filho de Davi e Abraão” (1,1), portanto, é da geração de Israel. Se a tradição era descrever a geração de pai para filho ou filha (Mt 1,2:“Abrão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó”), Mateus dar mais importância à Maria, e não a José, ao tratar da geração de Jesus: “José o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo” (Mt 1,16).
Sem desmerecer José, observamos que Maria tanto faz parte da tradição de Israel (a vida de escravidão, luta e libertação), como também é a que acolhe em seu seio o Espírito Santo e é aquela que concebe (co-geradora?) de Jesus salvador, o Emanuel (Mt 1,18-23), o Messias, o “rei dos judeus”. Apesar de Jose ser um homem justo e bondoso, a relação de Maria com Jesus é de importância singular. Maria está implicada na ação do Espírito, na promessa do Salvador, na presença do “Deus conosco”, no encontro dos magos com Jesus (“viram o menino com Maria, sua mãe”) e na fuga para se livrar da morte (2,13).
Agora em Mateus (12,46-50; 13,53-58) a distância entre a família biológica de Jesus e a família de seus seguidores é diminuída. Não há oposição como em Marcos. Portanto, há uma abertura para identificação de Maria como aquela que faz a vontade do Pai (12,50).  Até aqui já é possível fazer uma ligação de Maria com a Trindade, pois ela está aberta para fazer a vontade do Pai, concebe o Filho e acolhe o Espírito.
c)    Maria no evangelista Lucas
O Evangelho de Lucas nos dá maior contribuição para a identidade mariana na dinâmica da realidade latino-americana. Pois no evangelista encontramos espaço para Maria como perfeita discípula e seguidora de Jesus. Para uma síntese distribuímos o Evangelho em oito blocos: i) a anunciação (Lc 1,26-38), ii) a visitação (Lc 1,39-45) e o Magnificat (Lc 1,46-55), iii) o nascimento e visita dos pastores (Lc 2,1-20), iv) a apresentação no templo (Lc 2,22-35), v) a vida oculta em Nazaré (Lc 2,39s e 2,51s), vi) o desencontro no templo (Lc 2,41-50), vii) a nova família (Lc 8,19s),  a mulher na multidão (Lc 11,27s) e viii) a preparação para pentecostes (At 1,14).
No primeiro bloco a identidade virginal de Maria (1,27) engloba a única e exclusiva ação de Deus. Ela está aberta a Alegria (Ave: Hairè) (1,28) messiânica (Zc2,14s; Sf 3,14-17) da promessa de Deus. É a contemplada (em quem habita o Espírito), o Senhor está com ela assim como esteve na vida de luta de Isaac (Gn 26,3.24), Jacó (Gn 28,15), Moisés (Ex 3,11s) e etc. Maria busca o sentido para as coisas (Lc 1,29), é questionadora (Lc 1,34), é profetiza que está a serviço de Deus (Lc 1,38), é decididamente comprometida e ativa com a missão de salvação divina (Lc 1,39).
No segundo bloco Maria supera a tradição patriarcalista de ser acolhida e saudar primeiro o dono da casa (Maria saudou Isabel e não Zacarias), é bendita junto com o filho Jesus (Lc 1,42), é bem-aventurada porque teve fé (1,45), ela produz o fruto pela fé e não será abandonada na promessa messiânica. No Magnificat Maria manifesta a grandeza do Senhor e exulta-O como Salvador. Deus olhou para a humilhação de sua serva (Lc 1,48) como olhou para o sofrimento do povo de Deus no Egito.
Todos a chamarão de feliz (bem-aventurada) pelo que Deus fez em seu favor. Maria é pobre de Deus, é dependente Dele. Porque Ele olhou para a sua humilhação. Maria exalta a Deus (“seu nome é santo”) e afirma profeticamente a justiça real e social de Deus: “agiu com força de seu braço, dispensou os homens de coração orgulhoso. Depôs poderosos de seus tronos, a humildes exaltou. Cumulou de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias” (Lc 1,51-53).
Por fim, Maria retoma as esperanças de Israel concretizadas em Jesus: “Socorreu Israel, ser servo, lembrando de sua misericórdia – conforme prometera a nossos pais – em favor de Abraão e de sua descendência , para sempre” (Lc 1,54).
No terceiro bloco Maria passa pelas exigências políticas do recenseamento e em Belém tem Jesus. Encobri-o de faixas e coloca-o numa manjedoura, pois não havia espaço apropriado (Lc 2,7). A situação indica a condição pobre da família de nazaré. Com a presença e fala dos pastores, Maria faz um discernimento interior sobre os acontecimentos (Lc 2,19.51).
No quarto bloco observamos Maria como mulher de fé, sempre no caminho para encontrar-se com Deus e conduzir os seus para Deus. Ela é mulher pobre e começa a ter consciência das intempéries da realidade, das fragilidades, dores e sofrimentos que irá passar por e com Jesus até se concretizar a salvação (Lc 2,29-35).
No quinto bloco situamos Maria como cumpridora da fé e lei de Deus. Mas ela está na periferia, ela é de uma região pobre: Nazaré. Ela é mãe educadora (2,51). No sexto bloco, ela passa pela condição humana de perde de vista Jesus durante o caminho (2,43-45), mas reencontra-o. Maria expressa às limitações existenciais de não compreender o projeto de Deus na sua plenitude (2,50), de reconhecer-se limitada no saber sobre o que Deus queria.
No sétimo bloco Maria quer ver Jesus. A identidade da família de Nazaré em Lucas segue a mesma dinâmica de Mt 3,31-35. Trata-se da identificação familiar como aquela que ouve “a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8,21). Em Lc 11,27 há uma exaltação privilegiada da mulher discípula que ouve e pratica a palavra de Deus no lugar daquela que é mãe de Jesus. Porém, o foco da questão está na dimensão da fé, prática da família de Deus e não uma identificação direta sobre Maria como bendita.
No oitavo bloco acentuamos em Maria a dimensão oracional e comunitária da fé, Ela é perseverante na oração e está inserida na comunidade crente que tem esperança. Ela está integrada com o projeto de concretização do Reino de Deus (At 1,14).
d)   Maria no evangelista João
O Evangelho de João está dividido em três partes: prólogo (1,1-18), livros dos sinais (1,19-12,50) e livro da exaltação (13-20). Maria está presente na segunda e terceira parte. É importante destacar que ela nunca é chamada pelo nome (Maria), mas por duas características importantes e já citadas: mãe e mulher. Um diferencial deste Evangelho é que Maria é chamada de “mãe do discípulo amado”. Aqui se situa sua ligação com toda a comunidade de fé, todo o povo de Deus.
Em Caná (Jo 2,1-12) Maria participa dos sinais de fé, da semana programática. Caná é o espaço privilegiado do começo da revelação de Jesus e da fé dos discípulos. A dinâmica da “glória” tem aproximação relacional com o êxodo/libertação do povo (Ex 10,1; Nm 14,11-22; Dt 7,19). Maria está inserida nessa dinâmica. Na dinâmica da realidade em que falta o vinho (visto como alegria), Maria faz um apelo.
Essa sensibilidade para com a realidade, a descoberta do que se falta para a felicidade da comunidade e a intervenção em favor da mesma é nota da identidade mariana.  A resistência da fé é outro elemento de tal mulher. A exigência da realidade, a intervenção da fé, o sinal de resposta divina e a maior adesão de fé marcam esse processo. O poder, a liderança, a inclusão e participação comunitária integram um caminho para Jesus e concretização do Reino de alegria plena e integral.
Diante da cruz, com o discípulo amado, Maria está integrada no caminho de glorificação do Filho Jesus (Jo 19,25-27). Diante do drama da injustiça e da morte do Filho, Maria está de Pé (Jo 19,25). É perseverante na fé frente ao drama da morte. Maria assume o discípulo amado (comunidade) (Jo 19,26) e este a acolhe como mãe e na comunidade (Jo 19,27).
MARIA LIBERTADORA: NA REALIDADE LATINO-AMERICANA
            A partir do Concílio Vaticano II tivemos nos documentos da Igreja novos desafios para interpretar a presença e importância de Maria na Doutrina Social da Igreja para além de um devocionismo, uma recitação de Rosário e uns relatos de aparições. A nova impostação mariana estava agora sendo refletida a partir da história da salvação e da eclesiologia. Esses dois espaços foram sendo o lugar da reflexão. Porém, mais duas orientações foram decisivas para a nova hermenêutica sobre Maria na América Latina: a retomada das fontes bíblicas, o diálogo com as novas ciências modernas e a contemporaneidade.
            Essas orientações contribuíram para o estatuto epistemológico da mariologia no continente das histórias injustas e com a latente figura materna de Maria na centralidade da fé. Porém, decididamente com as aparições de Guadalupe em 1531 começa na Igreja latina a florescer a figura de Maria associada à Libertação a partir de novas perspectivas antropológicas e sociais.
Daí começou-se a observar em Maria a identidade feminina e de “Mulher” comprometida com a história deste povo (de Deus e do povo latino-americano). Nesse primeiro passo encontramos a relevância da identidade de Maria como Mulher já sinalizada no final do evangelho joanino (19,26) e em partes do evangelho mateano (1,20). A identidade feminina marial tem sua contribuição advinda dos novos sujeitos teológicos (a irrupção da mulher na teologia), das emergentes correntes teológicas (feministas) e das acentuações no campo pastoral e eclesial (a participação e comprometimento feminino nas igrejas, ministérios e lideranças) da América Latina. A emergente mariologia privilegiou uma releitura das Escrituras na dinâmica da práxis libertadora, mas com certo respeito da Tradição e da devoção eclesial à Mãe de Jesus.
Assim, iniciou-se uma maior identificação de Maria com as situações de sofrimentos, dor, desamparo e pobreza do povo. Com ela o Evangelho tornou-se mais encarnado. Sua primeira contribuição foi: a recuperação da voz das mulheres e a escuta dos clamores femininos por libertação, frente à realidade patriarcal, androcêntrica, sexista e discriminatória da mulher. Em tal situação encontramos a inspiração teologal da sensibilidade, resistência e práxis libertadora mariana no evangelista joanino (2,3). De igual modo a liderança, missionariedade e evangelização feminina (Maria faz parte desse processo) encontra sua inspiração bíblica na experiência com o ressuscitado no final dos escritos joaninos.
 Na teologia feminina libertadora a mariologia supera a visão ideologizada de ocultamento e submissão, presente na Tradição, por uma concepção revolucionária de justiça, corporeidade e maternidade na participação co-geradora de um mundo novo em Cristo. Tal concepção é desvelada pela participação e concepção de Maria no evangelho mateano (1,15-16).
A mariologia libertadora assume a causa dos pobres como reflexão bíblica a partir do olhar latino-americano. Trata-se da identificação de Maria com a condição, vida, identidade e esperança do pobre, no evangelho lucano (1,46-50; 1,26; 2,12; 2,24; 7,18-23) e mateano (Lc 2,6). No Magnificat (Lc 1,46-50) Maria é arquétipo da Igreja latino-americana: chamada a identificar-se com os povos sofridos e empobrecidos dessas nações; a maternidade de Maria em relação ao filho Jesus, identifica-a como mãe daqueles a quem Jesus quis si identificar (os pobres), dai o fundamento de Maria ser mãe do Filho de Deus e Mãe dos Pobres, referência cristã na teologia da Igreja por libertação.
BIBLIOGRAFIA
A BÍBLIA de Jerusalém. Nova ed. rev. São Paulo: Paulinas, 1985. 
DORADO, Antonio González. De Maríra conquistadora a María libertadora: mariologia popular latino-americana. Guevara: Editorial Sal Terrae, 1988.
MURAD, Afonso Tadeu. Maria, toda de Deus e tão humana: compêndio de mariologia. São Paulo: Paulinas, Santuário. 2012.
MURAD, Afonso Tadeu. Quem é essa mulher: Maria na Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1996.
SILVA, João Justino de Medeiros. Pneumatologia e mariologia no horizonte teológico latino-americano.Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana, 2003.

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