Nos
passos iniciais do Natal como celebração, festa e memorial litúrgico do
nascimento de Jesus no mundo, somos impelidos ao compromisso ético, social e
ecológico com a nossa casa comum e com os diversos seres que a habitam. Tal
compromisso pode-se dizer que é ecoteológico, isto é: possui como fonte de
inspiração o próprio mistério da fé cristã, mas a partir de uma perspectiva
transversal, holística e integral do evento (da encarnação de) Jesus e do ethos ambiental e humano em que ele se
insere.
Assim,
na ótica ecoteológica vamos nos debruçar e refletir sobre as leituras da
liturgia do dia 25 de dezembro de 2019, complementadas com outras, para
sustentar a inspiração de um Natal que possa assumir merecidamente o predicado
de ser ecológico, como espera-se que seja na espiritualidade e prática cristã
atual. Vejamos as seguintes leituras: Primeira Leitura (Is 52,7-10),
Responsório (Sl 97), Segunda Leitura (Hb 1,1-6) e Evangelho (Jo 1,1-18).
Na
primeira leitura se evidencia o caráter essencial da fé cristã. No contexto do terceiro
profeta Isaias, uma parcela significativa do povo Hebreu passa pelo drama
existencial, regional e cultural do exílio e da escravidão. O drama tem como
resposta a expectativa da vinda de alguém
como salvador. Esse alguém vem trazer a paz, proclamar a boa nova e
anunciar a salvação (Is 52,7).
Ora,
a expectativa da salvação humana é o
elemento essencial da fé cristã. Todavia, há um vínculo desta com a ecologia e com compromisso evangélico e social
cristão. Como sustenta o teólogo Agenor Brighenti (2018, p.18): “Ecologia
tem a ver com evangelização, com a missão da Igreja, com o serviço dos cristãos
ao mundo; em resumo, ecologia tem a ver com salvação. Salvação não só do
planeta, mas da própria humanidade”.
Apesar
do texto bíblico não explicitar a terra (prometida?) e muito menos o planeta
Terra como espaço necessitado de salvação,
da presença de um salvador, podemos constatar que há um vínculo estreito e uma participação da terra com a salvação humana ,como o profeta infere: “Porque Deus consolou o seu povo, ele redimiu
Jerusalém!... e todas as extremidades da
terra viram a salvação do nosso Deus” (Is 52, 9-10).
Neste
sentido poderíamos dizer que o termo ‘extremidades da terra’ se referia aos
povos todos que habitavam nas regiões circunvizinhas de Canaã e não a região
terrestre ou ao sistema planetário. Bem, o texto fragmentado poderia nos
conceber tal ideia superficial de extensão demográfica, mas juntando o texto do
profeta com o salmo 97 somos levados a considerar a presença e vínculo da terra no projeto de salvação do povo de Deus.
Assim diz o salmista: “Os confins da terra contemplaram a salvação do nosso
Deus. Aclamai a Deus, terra inteira, dai gritos de alegria” (Sl 97,3-4).
Daí, a concepção de terra como espaço de
contemplação da salvação e como ser existencial (vivo) que é exortado pelo profeta para
aclama a Deus e dar gritos de alegria denota uma certa concepção judaica sobre a
terra não como objeto inanimado e nem como matéria orgânica ou objeto de consumo humano, mas como um ser pertencente ao projeto criativo de
Deus. Neste sentido, a linguagem configura a terra como criatura. Tal criatura, na ordem do
criado, está vinculada e relacionada com a criação humana no livro do gênesis.
Na concepção tradicional judaica a terra assume a função de ser “produtora de seres vivos” (Gn 1,24) e parte
dela é utilizada para a criação humana.
Essa
compreensão nos leva a considerar o
vínculo relacional e interdependente entre os seres humanos e os demais seres.
Nessa lógica faz sentido o que o teólogo Leonardo Boff diz simbolicamente: que
“todos [os seres, incluindo nós,] entre si são parentes, primos e irmãos e
irmãs” (BOFF, 2009, p. 25). Vale ressaltar que o vínculo do ser humano com os
demais seres criados é tão fundamental no projeto salvífico que tal vínculo configura a compreensão de Deus tanto como Criador do mundo como também libertador ou salvador do seu povo. Isso estar no
salmo 136: O Deus que criou os céus, a terra, as águas, os astros (v.1-9),
libertou o povo da escravidão do Egito (v.10-15) e o conduziu pelo deserto (v.16-24).
A
participação de todos os seres criados no projeto salvífico justifica a
dimensão integradora da ecoteologia entre toda a criação e não só a humana. A luz dessa concepção está à fé cristã que
compreende a criação de um novo modo. Trata-se de um novo modo “de sentir,
pensar e experimentar a Deus e suas relações com todos os seres, tal como a
mesma mãe Terra” (CHIPANA; ISMAEL; DIETMAR, 2011, p.33). Essa concepção
ganha força reflexiva com a abordagem do Papa Francisco na “Laudato Si’” ao
afirmar que “tudo está interligado no mundo” (LS, n.16) e que “somos
chamados a reconhecer que os outros seres vivos têm um valor próprio diante de
Deus e, ‘pelo simples fato de existirem, eles O bendizem e Lhe dão glória’”
(LS, n.69).
Assim,
é válida e justificável a concepção de que na fé professada hoje se reconfigura
uma significativa visão cristã sobre a Terra ora como a nossa “irmã, com quem
partilhamos a existência, ora uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços” (LS,
n.1). Para Francisco a fé considera um novo significado ao meio ambiente, à biodiversidade,
para além daqueles que servem somente para os fins de uso e consumo imediatos
(LS, n.5). Nessa perspectiva se considera
o mundo como um dom confiado por Deus ao ser humano e inserido no projeto da
salvação. Como acréscimo da importância da ecologia na teologia e prática
cristã basta considerar alguns salmos (Sl 97;135;136) que convidam,
frequentemente, o ser humano a louvar a Deus criador. E não obstante, estão
outros salmos (Sl 148) que chamam as outras criaturas a louvarem a Deus:
“Louvai-o, sol e lua; louvai-o, astros todos de luz. Louvai-o céus dos céus e águas
acima dos céus” (Sl 148,3-4). .
Desde
já podemos dizer que na tradição neotestamentária há pouco se não quase nada de
elementos que justifique ou ofereça-nos uma compreensão salvífica de Jesus
Cristo que se amplie para além do gênero humano, isto é, que se debruce com
propriedade sobre a criação. “Como bem observa Moltmann, quem procura por
declarações sobre a criação no Novo Testamento, frequentemente se decepciona”
(MURAD, 2009, p.281). Mas isso não significa que não há textualmente indicações
que vinculam a auto-revelação e a ação salvífica de Deus com a criação. Pois tudo, no Novo Testamento, vai gravitar
em torno do fato cristão.
O
autor, desconhecido, da Carta aos hebreus (1,1-6) fala aos cristãos oriundos do
judaísmo que estavam em clima de perseguição e eram imaturos na fé. Ele vai
direto a questão essencial da fé cristã: “Muitas vezes e de modos diversos falou
Deus, outrora, aos nossos pais, pelos profetas; agora, nestes dias que são os
últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as
coisas” (Hb 1,1-2).
A
centralidade do discurso é Cristo como autocomunicação divina, porém dele não só participa e depende a salvação
humana, mas também a criação toda toma parte de tal esperança. Neste sentido
Cristo, o Filho de Deus, tem por direito e dignidade a herança de todas as
coisas e do mundo. Aqui a antropologia e a cosmologia se encontram, pois “É ele
o resplendor de sua glória e a expressão de sua substância (ser); sustenta o
universo com o poder de sua palavra” (Hb 1,3). A centralidade cristológica
exalta a Cristo como divindade a ser adorada até pela hierarquia angelical,
pois “quando...entrar o Primogênito no mundo, Deus diz: 'Todos os anjos devem
adorá-lo!'”(Hb 1,6). Ora, não há como
negar a efetiva e intrínseca relação da criação, da comunidade de vida além do
humano, no mistério salvífico divino, porque "tudo foi feito por meio
dele e para ele" (Cl 1,16).
Vale
ressaltar que, com a encarnação de Deus como humano e na história, a dimensão
salvífica assume uma conotação não só natural, mas sobrenatural, isto é,
transcendental. Nessa perspectiva se
acentua a espera escatológica salvífica de toda a criação com Deus pelo Cristo,
no Espírito. Sem Cristo, nada poderia subsistir (Cl 1,17). Deste modo “a
criação aguarda com ardente expectativa a revelação dos filhos de Deus” (Rm
8,19). Isto é, ela espera que o projeto de Deus se realize na vida humana e em
si mesma, pois para tal fim foi criada.
E
“sabemos que toda a criação, conjuntamente, geme e está com dores de parto até
agora; e não só ela, mas até nós, [...] também gememos em nós mesmos,
aguardando a adoção filial, a saber, a redenção do nosso corpo. Pois nossa
salvação é objeto de esperança” (Rm 8,22-24). Essa nova experiência é
indicativo da permanência e participação da criação (ou em termos secular: de
todos os seres bióticos da ecosfera) na soteriologia divina. Assim é que se
menciona no apocalipse, dentre outros textos, o deslumbrar visionário da nova criação
como “um novo céu e uma nova terra” (Ap
21, 1).
No
coração da liturgia e fé cristã, vamos nos deter sobre o texto de João (1,1-18).
A partir do discurso joanino duas personalidades podem ser deduzidas como
destinatários da mensagem salvífica cristã: os gregos-helénicos e os judeus cristãos. Os destinatários justificam o estilo argumentativo e a forma de
abordagem do autor: João inicia a boa
nova da encarnação de Jesus a partir da origem da criação humana e de todos os
seres como no livro do gênesis: no princípio (Gn 1,1; Jo 1,1). Aqui o evento
natalino é descrito de forma distinta dos evangelhos sinóticos.
De
antemão já podemos suspeitar que a vinda de Jesus é descrita não diretamente
com Maria e José, pela ação do Espírito Santo, mas diretamente de Deus e como
parte de Deus: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo
era Deus” (Jo 1,1). O vínculo natalício de Jesus com Deus no começo da criação denota
uma característica de fundamental importância na ecoteologia: pensa e perceber a ação de Deus no horizonte
planetário e até eco-planetário, na redescoberta de que tudo está em relação,
interligado, interdependente, de modo sistêmico e complexo, tudo é um todo. Isso
concorda com a concepção da ecoteologia que “consiste em pensar a fé no
horizonte da consciência planetária. Essa se caracteriza como a (re)descoberta
de que o mundo torna-se um todo, o ser humano é membro da Terra e deve assumir
a responsabilidade pelo futuro do planeta habitável” (MURAD, 2016, p.211).
O
discurso natalício confirma tal concepção de que todos os seres
criados estão em Deus e no seu Filho Jesus: “Tudo foi feito por meio dele e sem
ele nada foi feito” (Jo 1,3). Ora, “o que foi feito nele era a vida” e tal vida (zoe) é compreendida como plenitude da existência,
portanto fonte vital de todos os seres existentes. Se tal predicado de
Jesus (zoe) no processo da encarnação já nos liga integralmente ao todo da criação e,
poderia assim disser, ao sistema complexo de todo o nosso meio ambiente, então
tal vínculo e presença do Deus já se confirma na expressão textual: “Ele estava
no mundo”, portanto, presente em toda a criação, tal como de fato indica melhor
o significado do nome Deus: Aquele que
estar, e não aquele que é. O Verbo é definido como “Luz”: Ele era a luz
verdadeira (Jo 1,9), que caracteriza a propriedade essencial dos planetas no
nosso sistema.
No
discurso joanino a relação do Deus Verbo (Criador) com o Salvador Humano se
realiza no processo de encarnação, porque o Verbo que estava em Deus (e por Ele
tudo o que existe subsiste, portanto o Verbo Criador) se fez carne (sarx), humano pleno, e
habitou entre nós (Jo 1,14). Daí é possível interpretarmos intuitivamente que há
o vínculo relacional e interdependente entre a comunidade de vida no nosso
planeta e os seres humanos. Portanto o vínculo da ecologia com a antropologia,
o que faz sentido ao que o Papa Francisco afirma sobre “tudo estar interligado”.
Tal hermenêutica não pode ser descartada se nós quisermos levar a fé cristã
para a sua consequência teológica, salvífica e integral. Aqui um Jesus cósmico
não pode ser descartado como chega a sustentar o teólogo Leonardo Boff.
Bem,
na encarnação do Verbo a visão ecoteológica pode encontrar sua inspiração para
seguir adiante, porque para todos os seres, como verdade consequente “Este é
aquele de quem eu disse: o que vem depois de mim, passou adiante de mim, porque
existia antes de mim” (Jo 1,15). Ele existia antes, com e após a criação do mundo. Para não
nos restringir ao texto do evangelho de João, vale considerar que no Natal a criação toda
aponta e colabora na encarnação de Jesus. Em Mateus (2,2) “vimos à sua Estrela no
oriente” que para no local onde nasce Jesus. A “Terra de Judá” é espaço de onde
deve nascer o Salvador (Mt 2, 6). Em Marcos o Espírito Santo assume o formato
de uma ave (Mc 1, 9) e Jesus assume um vínculo harmônico com a espécie animal
no deserto: Jesus estava com os animais selvagens (Mc 1,12). E em Lucas (2,7)
Jesus nasce em meio à criação, num estábulo, porque não havia lugar para ele na
sociabilidade urbana.
Portanto,
inspirados nesses textos e reflexões, podemos dizer que a criação, nas suas
diversas esferas de abordagens, encontra seu sentido primordial e realidade
última (plena: nova criatura) em Jesus. A encarnação deste se relaciona com
distintos momentos de uma mesma proposta salvífica, em que não se exclui a
participação das demais criaturas, da comunidade de vida, da biodiversidade que
há na nossa ecoesfera. Neste sentido, desde o livro do gênesis até o apocalipse
elementos constituintes da ecologia estão ligados ao projeto de salvação
humana. Se o Natal é o ponto inicial e fundamental da fé cristã e salvação
humana, tal evento não pode estar dissociado da complexa rede de vida que há no
mundo.
Se
as ciências ambientais resgataram o valor dos diversos seres bióticos e
abióticos que compõem, sustentam, equilibram e promovem à vida no planeta,
muito menos para a teologia tal postura deve ser descartada, apesar do atraso reflexivo
e prático que temos na fé cristã. Teilhard de Chardin pode nos ajudar nessa
concepção integral da salvação, pois ele percebeu Deus em todas as criaturas,
mas sem reduzir o Criador às criaturas. Isso concorda com a concepção joanina
de Deus como o Senhor da Vida. Nessa lógica de compreensão o Natal deixa de ser
um evento estritamente antropocêntrico e exclusivista do ser humano como única
realidade criada e digna imerecida de salvação, para ser um evento que integra
o projeto salvífico da toda a obra criada por Deus.
A luz de Francisco é mais do que
justo que o Natal seja celebrado, vivenciado, espiritual e socialmente
praticado como teologia ecológica pela proposta afetiva e efetiva de uma
ecologia integral. Assim, além do
que já foi dito, tal Natal pode passar por nós e nos ajudar a se comprometer
com o mistério da encarnação de Jesus pelo projeto do “cuidado da casa comum”
(LS, 138-162). Neste Natal, tal projeto exige de nós: 1) um experimentar e encarnar Jesus, na nossa prática
de vida, numa relação integral com
toda a criação (LS, n.138); 2) uma prática ética que dignifique cada ser que há no planeta, que usufrua corretamente dos
bens e serviços que o nosso ecossistema oferece; que, de modo especial, cuide e proteja os excluídos e a natureza;
3) nas esferas institucionais e governamentais, a sustentabilidade e saudável interação do ser humano com o meio
ambiente, os seus ecossistemas e biomas; 4) a valorização e cuidado com as riquezas culturais – diversas e
complexas – da humanidade, contra o sistema econômico exploratório e dominante;
5) uma ecologia urbana que promova a
inclusão, a sociabilidade, os direitos humanos, a digna cidadania dos pobres e periféricos,
e uma estrutura sócio-ecológica nas cidades; 6) o bem comum que lute pelo o respeito e adesão aos direitos humanos, à justiça social
e à paz; 7) e a justiça
intergeracional que implica na preservação e sustentabilidade da nossa casa
comum para as gerações que ao de vir.
Muito bom, gostei!
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