Comunicação apresentada no XI colóquio vaziano "Democracia e Sociedade: Conquistas e Desafios. Entre os dia 24 e 25 de maio. (comunicação em processo de publicação)
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RESUMO:
A presente comunicação objetiva tratar das barbáries no processo de
constituição e civilização humana, na história das nações, segundo o pensamento
de Giambattista Vico (1696-1774), na sua mais brilhante obra: a Ciência Nova (1744). Por conseguinte,
essa exposição será relacionada com dois pontos históricos de tensão humana no
Brasil, a saber, a ditadura militar e a contemporaneidade. Ora, a concepção do “percurso
das nações”, enquanto “Ciência da Vida Civil” ou Ciência Humana, é marca
inovadora e característica do filósofo napolitano no seu projeto de nova ciência
distinta daquela tratada na tradição, isto é, a ciência (metafísica) do mundo
natural. Tal história ideal das nações passa por um processo de humanização em
três idades que podem se entrelaçar historicamente: a idade dos deuses, a idade
dos heróis e a idade dos homens. Porém, cada momento histórico de
autoconstituição do ser humano, – pelos seus costumes, línguas, direitos, leis,
governos, culturas e mentalidades – passa por duas barbáries (a barbárie dos sentidos,
a barbárie da retornada) e o risco iminente de uma terceira barbárie, a da
reflexão. Todavia, cada estado de barbárie não é estaque em si, mas aberto, sob
a luz da providência divina, como possibilidade para a civilidade, conservação
e preservação humana nos seus princípios fundamentais, sem os quais ela não
pode subsistir. Assim as três barbáries estão em relação estreita com a
civilidade e os princípios metafísicos de existência humanitária, política e
civil. Isso nos serve de inspiração para a nossa sucinta e breve reflexão sobre
a história e situação social – política do Brasil, entre 1964 e 1974, assim
como na situação de crise que passa o país. Tendo como base metodológica uma
reflexão analítica e exposição sobre a temática referida, apresentamos as
seguintes considerações: i) as três
barbáries na Ciência Nova de Giambattista Vico; ii) os três princípios
universais e necessários para a civilidade humana; iii) colocações
crítico-reflexiva sobra a ditadura Militar e a atual crise política (um estado de exceção?) a
partir da ideia viquiana de barbárie e civilidade. A pesquisa conclui que as
três barbáries se definem geralmente como ausência ou negação de civilidade, do
mundo criado pela humanidade, o mundo Civil. Elas são um desvio ou negação dos
costumes ou princípios metafísicos do humano – religião, matrimónio e sepultura
–, e dos demais princípios que se deduzem a partir deles. Porém, cada barbárie
é marcada por um processo, ou possibilidade (de retorno) de humanização. A
partir disso, refletimos sobre as situações de barbáries que se deram na
Ditadura Militar, com certa relação àquela apresentada no pensamento viquiano. Por
conseguinte, refletindo sobre alguns fatos e acontecimentos da nossa conjuntura
brasileira, destacamos que um certo tipo de barbárie perdura no nosso país, por
diversas vias, de modo velado ou descrito como força do ocaso, no âmbito social
e político brasileiro. Por fim, em vista das ultimas decisões, ora antiética
(Impeachment de Dilma Rousseff), ora inconstitucional (prisão do ex-presidente
Lula), dentre outras, destacamos o risco de uma barbárie indicada por Vico: a
barbárie da reflexão. Quando o homem utiliza-se da racionalidade e intelecto
para fazer mal à humanidade. Quando não há uma sensibilidade para com a sociedade
e o bem comum, mas a paulatina desumanização e destruição de civilização
humana.
PALAVRAS
– CHAVE: Percurso das nações; Metafísica civil; Barbáries;
Reflexão; Brasil.
Introdução
O projeto
viquiano de pensar e descrever a história humana enquanto Ciência é uma das propostas
mais geniais deste pensador que estava à frente de seu tempo. Tal projeto é uma
resposta para o problema da ciência (metafísica) do mundo natural que, segundo
Vico, tenta, sem êxito, apresentar os princípios universais e necessários de
onde se fundamenta a realidade do cosmo. A propedêutica da proposta viquiana,
sobre o mundo humano, está na afirmação de que a única realidade conhecida para
o ser humano é aquela que ele mesmo cria, isto é, o mundo humano, o mundo das
nações. Daí podemos observar uma história ideal de todos os povos, uma ciência
do “mundo civil”. Porém, o curso das nações começa na origem de todos os povos,
na distinção entre dois tipos de história: a história sagrada e a história
profana. É pela negação daquela que o homem decai na sua humanidade e, no meio
da selva, sem nenhuma lei, racionalidade, divindade, que o governe, se torna
bárbaro (1º ponto).
O contato com o mundo natural e a providência divina faz
esses bárbaros terem uma ideia de Deus e adentrar na primeira idade, a saber, a
dos deuses. Daí começa um processo de criação de si, de humanização que se faz
pelos três princípios da civilidade: a religião, o matrimónio e a sepultura (2º
ponto). O processo de civilidade segue mais duas idades: a dos heróis e a dos
homens. Porém, pode acontecer que tal processo seja interrompido, quando,
retorna no tempo as características da primeira barbárie. Assim acontece a
barbárie retornada, enquanto que uma suposta terceira barbárie (da reflexão) é
intuída como o grande risco de negação e destruição humana, num tempo
posterior, em que a sociedade está no seu estado humano e civil equilibrado. Ora,
tal base filosófica nos é útil para refletir sobre a barbárie que se deu no
Brasil no período da Ditatura Militar e na atual crise que passamos, pois
suspeitamos que contemporaneamente corremos o risco de uma terceira barbárie
que se relaciona diretamente com o atual estado de exceção (3º ponto).
I) as três barbáries na Ciência Nova de Giambattista
Vico
O findar do século XVII e o início do século XVIII é um período
transitivo de mudanças paradigmáticas no universo da educação, da cultura, da
religião e da política napolitana. Essa viragem cultural tem como preocupação
os diversos saberes da época e da vida civil, o destaque está na novidade de um
método cartesiano – física cartesiana –(VICO, 1998, p.102), que predomina como
condição de saber verdadeiro, e a exaltação das ciências geométricas e instrumentais
em detrimento dos saberes relacionados aos studios
humanitatis: a história, a retórica, as letras, a literatura e a poesia. É
nesse universo conflitivo que Giambattista Vico (1668 – 1744) desenvolve, de
modo revolucionário, o projeto de uma nova Ciência. Não aquela ciência que
segue o método matemático para descrever a realidade humana, não mais aquela
ciência do mundo natural, a quem só Deus conhece porque é o autor que a fez
(VICO, 2005, p.172), mas a ciência das nações, a ciência do mundo civil, pois
esta foi feita pela própria humanidade, por força da Providência divina. Na
obra Ciência Nova (1744) Vico trata
de um saber enciclopédico e metafísico sobre a humanidade, desde sua
originalidade necessária, comum e útil. Sua proposta de Ciência da Vida Civil
considera todos os saberes da tradição literária antiga, renascentista e
moderna, desprezados em sua época, que são úteis, enquanto material de
pesquisa, para conhecer o único mundo construído pelo arbítrio e fazer humano,
o mundo civil.
Tais saberes descrevem as nações nos seus costumes, nas suas línguas,
nos seus governos originários e gestativos. No resgate dessa literatura, pela
abordagem filosófica e filológica, Vico descreve a história ideal das nações,
desde seus princípios metafísicos do mundo civil. Porém, para categorizar tal
ciência histórica, o autor defende que o percurso das nações passa por um ciclo
histórico elítico, conforme a “divisão das três idades que os Egípcios diziam
terem transcorrido antes do seu mundo, a dos deuses, a dos heróis e a dos
homens” (VICO, 2005, p.667). A primeira idade é precedida, na história pelo
povo que recusou a tradição adâmica – do povo hebreu – e negando a religião de
seus pais, e os princípios de humanidade, se debandaram num errar ferino. Daí
surge o estado pré-humano distinto daquele presente na história sagrada:
[...] para as nações de todo o restante do mundo a questão devia
passar-se de outra maneira. Porquanto a raça de Cão e Jafeth devem ter-se
dispersado pela grande selva desta terra, num errar ferino de duzentos anos; e
assim, vagabundas e solitárias, devem ter produzido os filhos, com uma ferina
educação, desnudada de todo o costume humano e privadas de toda a fala humana
e, por quanto num estado de animais selvagens. (VICO, 2005, p.65)
Ora, esse primeiro momento prévio, de negação
da história sagrada, trata do estado primitivo humano, a saber, o da primeira
barbárie. Esse estado é o momento propedêutico da primeira idade a que
percorreram todas as nações (gentis). Os bárbaros eram os “primeiros homens, estúpidos, insensatos e
horríveis bestiagas” (VICO, 2005, p.211), denominados de bárbaros, pois estavam
ausentes de qualquer pensamento racional, sem nenhum temor a qualquer divindade
ou aos seus pais. Nesse sentido a barbárie primeira se reporta àqueles primeiros homens
de natureza cruel, povos não domesticados pelas leis, que viviam de uma
natureza ferina, pois “devem ter andado num errar bestial, porque, ao fugirem
das feras (que deviam abundar sobejamente na grande selva da terra) e ao
perseguirem as mulheres esquivas e relutantes [...], deviam encontrar-se
dispersos por toda a terra” (VICO, 2005, p.160). São aqueles que:
[...] sem qualquer temor de deuses, de pais ou mestres, que esfria o
excesso exuberante da idade da idade juvenil-, devem ter aumentado
desmesuradamente as carnes e os ossos, crescido vigorosamente robusto e, assim,
terem se tornado gigantes. Esta é a ferina educação, e num grau mais feroz daquela em que [...], César e
Tácito fundam a causa da gigantesca estatura dos antigos Germanos, como foi a
dos Godos. (VICO, 2005, p.206)
Vico sustenta que esta primeira barbárie
configura o percurso inicial humano gentílico para que o homem adentrasse nas
selvas da terra e resistisse ás forças da natureza. O contato com a natureza, o
medo dos fenômenos naturais, levaram tais bestiagas a possuírem “um pavoroso
pensamento de uma qualquer divindade” (VICO, 2005, p.180). É a partir de então
que os primeiros homens, no seu estado barbárico, iniciam os primeiros passos
para sua humanidade. Nesse processo, segundo Vico, o homem passou por um ciclo de
natureza, costumes, direitos, estados, línguas e jurisprudência, caraterístico
das três idades, a saber: a dos deuses, a dos heróis e a dos homens. Quando se
encerram as três idades, a história humana retoma, porém, ao seu início, ou
seja, retoma ao seu curso (ricorso), quando os homens voltam para o seu estado
bestial. Todavia, no percurso ideal das nações pode acontecer uma segunda
barbárie, quando a humanidade chega a retroceder ao seu estado de natureza
primitivo e inumano.
Trata-se, portanto, de um retrocesso na
história, uma negação das leis fundamentais, seus princípios universais e
necessários, que geram, regem e mantem a humanidade civilizada. Vico sustenta
que na história humana tal barbárie aconteceu na Idade Média, no declínio do
Império Romano. Essa segunda barbárie é chamada de regressada, porque descreve
a retomada de alguns elementos da primeira barbárie, porém, no contexto já
civilizatório, socializado, formado com suas leis, estados, governos e
culturas. Se a barbárie primitiva se situa na fundação da humanidade (ainda no
seu estado de irracionalidade, imerso nas paixões, preenchida pelas faculdades
pré-reflexivas, com uma qualquer ideia de divindade, e com atos bestiais), na
barbárie retornada esses elementos se manifestam novamente:
Regressaram certas espécies de juízos divinos, que foram denominados
“purgações canónicas”; demonstramos, acima, que uma espécie de tais juízos, nos
tempos bárbaros primeiros, foram os duelos, que, porém, não foram reconhecidos
pelos cânones sagrados. Regressaram os latrocínios heroicos; dos quais vimos
acima que, tal como os heróis se tinha atribuído a honra de serem chamados “ladrões”,
assim foi título de senhoria aquele, que de “corsários”. Regressaram as
represarias heroicas, que observamos acima terem durado aos tempos de Bártolo.
E porque as guerras dos tempos bárbaros últimos foram como aquelas dos
primeiros, todas religiosas, tal como vimos há pouco, regressaram as
escravaturas heroicas, que duraram muito tempo entre essas mesmas nações
cristãs. (VICO, 2005, p.795)
Assim se sucedeu em Roma, após ter sido
assolada pelos bárbaros. Foi o declínio dos princípios metafísicos
civilizatório do povo romano. A negação ou deturpação da lei, o voltar para
imersão dos sentidos, das paixões bestiais. Daí, na história romana, após a
segunda barbárie, aconteceu um novo ciclo, de acordo com a sucessão das três
idades, dos três estágios de línguas, de culturas, de educação, de política e
governos. Disso resulta o retorno de vários elementos presentes na primeira
barbárie, como certas espécies de juízo divino, os latrocínios, as represarias,
a tirania das leis e a violência, dentre outras coisas no processo de declínio
humano. E desse modo houve o retorno dos feudos divinos, que na primeira barbárie
foi a selva que Hercules ateou fogo para o cultivado. Do mesmo modo se deu com
os feudos de Roma. Porque sucedeu por toda a parte “as violências, as rapinas,
os assassínios, pela suprema ferocidade e arrogância daqueles séculos
barbaríssimo; [...] não existindo outro meio eficaz de refrear os homens,
desobrigados quer de todas as leis humanas, quer da divina” (VICO, 2005,
p.796). Deste retorno, observamos a retomada inicial do curso das coisas
humanas e civis conforme os três Estados, a saber, aristocrático, democrático e
monárquico.
No entanto, após esse tipo de barbárie, Vico apresentar os riscos de
uma terceira barbárie, que decorre do afastamento dos seus princípios fundantes
e fundamentais da humanidade. Nesse sentido, ele apresenta a terceira barbárie
como sendo pior que a segunda, isto é: a barbárie da reflexão. Trata-se não
somente da negação dos princípios da humanidade, no âmbito da educação, da
cultura, da ética e da política que rege a civilidade, mas da própria negação
das faculdades de base do entendimento humano, pré-reflexivo: o engenho, a
imaginação e a fantasia. Além disso, podemos sustentar que trata-se de um
excesso de racionalidade que nega a própria existência humana.
[...] uma vez que tais povos, à maneira dos animais, se tinham
acostumado a não pensar em mais nada se não nos seus próprios interesses
particulares, e cada um tinha atingido o cume das comodidades, ou para melhor
dizer, do orgulho, á maneira das feras que, ao serem minimamente contrariadas,
se ressentem e se enfurecem, e assim [...], por tudo com obstinada facções e
desesperadas guerras civil, passam a fazer das cidades selvas e das selvas
covis de homens; e desse modo, ao longo de vários séculos de barbárie, vão-se
enferrujar as grosseiras subtilezas dos engenhos maliciosos, que tinham feito
deles feras mais imanes com a barbárie da reflexão. (VICO, 2005, p.842)
A intuição desta terceira barbárie é marcada pela frivolidade e pelo
descuido em relação aos saberes, culturas e práticas fundamentais à humanidade.
Se a barbárie da reflexão ocorrer, os seres humanos desumanizados se tornarão
basicamente selvagens, vivendo sob a aparência amável, porém imersos na má fé e
ação desumana. Daí, deste estado perigoso, as nações terminarão sucumbindo,
vítimas da sua própria debilidade e corrupção. Acontecerão, assim, guerras
terríveis contra os inimigos internos e externos. Por sua vez, a civilização
decairia e os homens se espalhariam, as cidades cairiam, e sobre as suas ruínas
cresceria novamente a floresta. Desse modo, um ciclo se completaria na história
e daria início a outro novo.
II) os três princípios
universais e necessários para a Civilidade Humana
Ao
tratar do percurso das nações enquanto ciência do mundo civil, Vico apresenta
na Ciência Nova (1744) os princípios
metafísicos pelos quais a humanidade no seu estado originário, deixou o estado
bestial, portanto, barbárico, para se formar, ou se constituir enquanto humana,
sociável, civil. O material cronológico das nações está na primeira parte de
sua obra. É a partir deste material, com uma abordagem filosófica e filológica,
que Vico destaca os princípios pelos quais todas as nações tiveram sua origem,
desenvolvimento e formação. Estes princípios são conhecidos por fazerem parte
do fazer humano, do seu arbítrio, e de uma realidade nunca antes refletida como
ciência: o mundo das nações. Essa realidade, esse saber metafísico-civil promovido
indiretamente pela providência divina, portanto, teologia civil, se demonstra
como a única possível de ser conhecida, pois é fruto direto da práxis humana:
Agora, uma vez que
este mundo de nações foi feito pelos homens, vejamos em que coisas
perpetuamente concordam e ainda concordam todos os homens, porque tais coisas
poderão fornecer-nos os princípios universais e eternos, tal como devem ser de
toda a ciência, sobre os quais surgiram todas as nações e todas se conservam. (VICO,
2005, p172)
Esses
princípios fazem parte dos costumes que as nações tiveram em comum, desde a
formação das coisas, dos hábitos, da cultura, da educação, das línguas, das
leis, dos governos humanos na sua Antiguidade. Esses elementos culturais comuns,
e do arbítrio humano, são os instrumentos utilizados para encontrar os princípios
da vida civil. Nessa reflexão Vico apresenta os três princípios geradores das
nações:
Observamos que
todas as nações, [...] se bem que fundadas separadamente, afastadas entre si
por imensos espaços de lugares e tempos, conservam estes três costumes humanos:
que todas têm alguma religião, todas contraem matrimónio solene, todas sepultam
os seus mortos; nem entre as nações, mesmo as selvagens e cruéis, se celebram
acções humanas com mais requintadas cerimonias e mais consagradas solenidades
do que religiões, matrimónios e sepulturas. (VICO, 2005, p.172-173)
Esses
três princípios concordam com a décima terceira máxima, ou dignidade, que
considera ideias uniformes de povos desconhecidos como princípio comum de
verdade. Portanto, sendo estes os três princípios das nações, eles são os três
princípios da Ciência Nova de Vico, e eles devem ser conservados por todas as
nações para manter-se como povo humano e como natureza sociável. Do contrário,
a negação de tais princípios levaria o ser humano ao seu estado barbárico. Em
relação à religião, é importante observar que se trata de uma experiência
pré-humana em pelo contato com a natureza o homem teve uma ideia inicial de
algo superior, pelo qual ele rearticulou toda a sua existência. A presença da
religião na história das nações é confirmada do seguinte modo:
Porque todas as
nações crêem numa divindade providente, pelo que se puderam encontrar quatro, e
não mais religiões primárias ao longo de todo o decurso dos tempos e por toda a
vastidão deste mundo civil: uma dos Hebreus e, portanto, outra dos Cristãos,
que acreditaram na divindade de uma mente infinita e livre; a terceira dos
gentios, que acreditaram na de vários deuses, imaginados compostos de corpo e
de mente livre, pelo que, quando pretendem significar a divindade que rege e
conserva o mundo, dizem deos immortales;
a quarta e última, dos Maometanos. (VICO, 2005, p.174)
Em
relação ao matrimónio Vico o apresenta como princípio fundante e conservador da
sociedade. Segundo a opinião de que haja uniões conjugais sem solenidades de
matrimónio Vico sustenta que tal ato na antiguidade foi “censurado
por todos os povos, pois, todas celebram religiosamente os matrimónios e por
eles definem” (VICO, 2005, p.175). Assim, tais concubinatos são naturalmente
repugnados em todas as nações, além de que não foram praticados por alguns
senão na sua ultima corrupção, como pelos Persas (VICO, 2005, p.176). O
matrimónio se constitui pelo caráter relacional e geração humana, de onde se
formou as primeiras comunidades e posteriormente a sociedade civil e política. Por
último Vico apresenta à sepultura. Esta faz parte dos costumes de todos os
povos. Para fundamenta-la como princípio, Vico faz a seguinte consideração:
Imagine-se
um estado ferino em que os cadáveres humanos permaneçam insepultos sobre a
terra, a servir de engodo aos corvos e cães; pois deve estar certamente de
acordo com este costume bestial não só aquele de ficarem os campos incultos,
mas também as cidades desabitadas, e o dos homens, à maneira dos porcos, irem
comer as bolotas, apanhadas por entre a podridão dos seus parentes mortos. (VICO,
2005, p.176).
Disso
se fundamenta a necessidade de todos os povos de ter como princípio universal a
sepultura, como procedimento da vida humana, do onde se observou os espaços do
sepultamento, a memória dos pais, a estabilidade nas propriedades, e etc. Outra
colocação referente a este princípio é a questão da imortalidade da alma, que
permaneceria errante em torno de seus corpos insepultos. Portanto, na Ciência
Nova esses são os três princípios que se fundamentam todas as nações, nos seus
costumes e que todas, sem nenhum contato entre si, procederam, por ordem da
providência divina, e deixaram o estado bestial. Esses princípios são
fundamentais na constituição e conservação de todos os povos, sendo que eles se
articulam entre si de tal modo de um influenciar o outro e o próprio percurso
das nações, desde seus primeiros momentos de humanidade.
Daí
se justifica as três barbáries explanadas por Vico, pois, no âmbito geral, cada
barbárie é uma negação da civilidade, sendo que na primeira observamos a
negação da racionalidade, da crença numa divindade, uma ausência de lei e
sociabilidade; enquanto que a segunda se classifica como uma negação das leis,
normas e culturas do status quo em processo de civilização; e a última se intui
como a deturpação dos mecanismos ou princípios da manutenção social comum, por
uma racionalidade perversa e negação das faculdades sensitivas da mente humana.
No que toca à relação entre barbárie e civilidade, é perceptível que a
humanidade se rebaixa ao seu estado barbárico quando negam os princípios
fundamentais e fundantes de todos os povos. Deste modo Vico justifica e
comprova cada princípio. Desses princípios metafísicos Vico apresenta outros princípios
que contribuem para que a humanidade subsista, se auto constitua e se mantenha
enquanto tal.
III) colocações crítico-reflexivas sobre a Ditadura
Militar e a atual crise política a partir da ideia viquiana de Barbárie e
Civilidade
Após
essa exposição sobre as três barbáries na história das nações, que se
classifica como negação dos princípios fundamentais, e dos subsequentes,
geradores de humanização, civilização, direito e equidade civil. Agora vamos
refletir sobre a situação política no Brasil entre 1964 e 1974. São dez anos
demarcados por uma repressão política militar, ações tirânicas que podem ser
classificadas como barbárica ou com características semelhantes as barbáries
apresentadas no pensamento viquiano. O período da Ditadura é característico de força repressiva e violenta contra os que lutavam pela liberdade, igualdade e equidade
de vida, de bens econômicos e bens comuns. Isto é, uma tirania violenta aos
setores populacionais que fora denominados ou acusados de “comunistas”. Ora, no
período de 1961 acontece o “episódio da renúncia de Jânio Quadro aos nove meses
de mandato presidencial, a legalidade foi quebrada e o estamento militar tentou
se assenhorar do poder” (MIRANDA, 2008, p.15). A partir de então temos os passos
do Golpe no Brasil.
É
na ascensão política e hegemonia dos militares pelo poder, que se iniciou na
história do Brasil uma repreensão, opressão, violência, tortura e assassinato aos
povos brasileiros (políticos), pobres, trabalhadores e militantes. Na obra dos filhos deste solo: mortos e
desaparecidos políticos durante a ditadura militar, a responsabilidade do
Estado (1999), observamos a crueldade com que os líderes políticos e militares
encarceraram, torturaram, prenderam e até mataram aqueles que não seguiam o status quo.
Os filhos do solo,
nas páginas do livro de Nilmario e Carlos, levantam-se do chão e, clamando por
justiça que lhes foi negada, apontam pelas responsabilidades de quantos,
durante cerca de vinte anos, prenderam ilicitamente, torturaram e mataram,
escudados numa impunidade permitida pela interpretação oficial da Lei de
Anistia [...]. A leitura dos 364 casos Dos
filhos deste solo aponta, sem dúvida – diante da imprescritibilidade dos
crimes contra a humanidade, em nada valendo a Lei de Anistia, [...]. (MIRANDA,
2008, p.14)
As
explanações desses casos de atrocidade humana destacam a realidade brasileira
sobre a égide de dominação de uma camada populacional elitista e tirana, sobre
um povo que fora censurado e torturado. Neste aspecto observamos que o
militarismo promoveu o Golpe de Abril de 1964 e a Ditadura (LEITÃO, 2013, p.15).
A deturpação da lei e manipulação da mesma para garantir a imposição
antidemocrática marca esse período barbárico. A falaciosa justificativa era de
que na referida época havia “no Brasil uma guerra de fato e de direito e,
nessas circunstâncias, não existiriam regras, cabendo aos agentes da repressão
atirar primeiro para matar. Era ‘matar ou morrer’” (MIRANDA, 2008, p.23). Nesse
viés:
A ditadura eliminou
garantias individuais e coletivas, cassou mandatos e direitos, censurou e
proibiu, instituiu punições drásticas para seus opositores, mas nunca poderia
ter conferido a seus agentes policiais e militares o poder de sequestrar,
torturar, matar e promover desaparecimentos forçados (MIRANDA, 2008, p.23).
Tais
ações ditatoriais são exemplos de corrupção das leis, uma destruição dos
direitos civis e humanos (LEITÃO, 2013, p.161) que na lógica viquiana seria uma
negação dos princípios fundamentais da humanidade. Esse tipo de barbárie se
aproxima daquelas apresentadas por Vico na história das nações, pois englobam:
a tirania das leis de humanidade, a proibição de escrito sobre qualquer ação desumana
dos militares, a atrocidade para com membros militantes ou críticos da
sociedade civil, isto é, a destruição do gênero humano, e o ceifamento de membros
do tecido familiar. A violação dos direitos humanos, isto é, da lei que resguarda
a dignidade humana, apresenta elementos característicos de uma barbárie
retornada, pois tais ações efetuadas na Ditadura rompem com a estrutura social
vigente e implanta um voltar ao liberalismo tirânico sem moral, portanto, ao
retorno do estado bestial de violência e morte humana.
A
barbárie que se realizou na Ditadura do Brasil se constituiu com atrocidades
multifacetárias e criativas, que são indicadas pelos laudos médicos dos corpos
que foram encontrados. Isso foi razão para um desnudamento da falsidade sobre
os acidentes ou mortes divulgadas pela mídia e meios de comunicação. “Ao invés
de ‘suicídios’ e mortes por atropelamento’, assassinatos sob torturas cruéis.
Ao invés de ‘fugas da prisão’, desaparecimento forçados. Ao invés de
‘tiroteios’, quase todos simulados, execuções à queima roupa” (MIRANDA, 2008,
p.23). Assim, exemplificamos essa barbárie com as atrocidades que praticaram ao
dominicano Frei Tito:
Frei Tito foi torturado durante
40 dias pela equipe do delegado Sérgio Fleury. [...] Torturado durante dois
dias, pendurado no pau-de-arara, recebendo choques elétricos na cabeça, nos
órgãos genitais, pés, mãos, ouvidos, com socos, pauladas, “telefones”,
palmatórias, “corredor polonês”, “cadeira-do-dragão”, queimaduras com cigarros,
tudo acompanhado de ameaças e insultos. A certa altura, o capitão Albernaz
ordenou-lhe que abrisse a boca para receber a hóstia sagrada, introduzindo-lhe
um fio elétrico que lhe queimou a boca [...] (MIRANDA, 2008, p.184).
A
Ditadura passou e o Brasil institucionalmente se democratizou, porém, a força
abusiva policial-militar, e o sistema político gerador de corrupção e violência
não acabaram, apenas perderam as forças e até certo ponto ficaram no anonimato
social. Porém, partir de 2015 o Brasil sofreu alteração na sua conjuntura. A crise
política, com seu sistema corrupto veio a tona, o setor policial recebeu força
e autonomia no governo Dilma para atuar nos casos de corrupção e desvio
públicos. Todavia seu objetivo ético não foi realizado, os setores
empresariais, institucionais, econômicos e políticos que estavam envolvidos na
corrupção, não foram jugados, mas poupados. Enquanto que certo setor militante
de esquerda (PT) se tornou alvo de uma rede de lideranças corruptas e fascistas
que estavam no poder e nas várias esferas do governo. Nesse contexto de crise
política, corrupção e fortificação policial, aconteceu, em 2016 o Impeachment
da até então presidente Dilma Rousseff, acusada de cometer crime de
irresponsabilidade.
A
partir de então entrou em curso uma onda fascista, de tradição ditatorial
barbárica, que implantou um “Golpe”. Este tem certa relação com Golpe de 1964.
O recente “Golpe” de Estado jurídico midiático parlamentar está negando o
Estado de Direito. Agora temos um Golpe que entrou em curso e já seguiu com
suas intervenções na vida populacional (principalmente dos mais pobres) e nos
movimentos político militantes de esquerda. Vemos seus efeitos nas reformas da
educação, nos cortes econômicos de assistência social pública, na reforma
trabalhista, no aumento de impostos nos produtos de consumo populacional, no
aumento de desemprego, na execução de Marielle Franco Anderson Pedro Gomes, e
na injusta prisão do ex-presidente Lula. Tais fatos nos leva a questionar se
não estamos diante do risco de uma terceira barbárie (da reflexão), mais
sofisticada e vestida disfarçadamente de justiça social e condenação da
corrupção personificada. O risco de um Estado de exceção não pode ser
descartado no nosso país.
Conclusão
Em suma é perceptível que as três barbáries, no projeto viquiano, são
marcadas por suas particularidades, sendo que enquanto na primeira há o
predomínio da não civilidade, pois os homens estão em um estado pré-reflexivo,
isto é, voltado sobre a força dos sentidos, da ausência de conatos e de qualquer moralidade interna, na segunda barbárie há
uma negação das leis, uma espécie de declínio nas normas civilizatórias, um
voltar-se sobre as paixões do corpo e uma prática desumana subversiva aos
princípios de humanidade, que faz declinar qualquer império. Neste universo se
observa que o homem se torna o lobo de si mesmo.
Todavia, a suspeita da terceira barbárie se encontra num estado mais
evoluído, quando todos os princípios de humanização e regulação social, como os
costumes, as leis, a língua, os governos, a política, a educação são orientados
ou instrumentalizados contra a própria humanidade. Assim seria a subversão
humana mediada juridicamente pelas leis de regência e conservação social. O
destaque de tal barbárie é a racionalidade que se volta contra a sua própria
geração humana, pois está pautada nos interesses particulares subversivos, nas
formas mais evoluídas de dominação, opressão e destruição humana. Rastros
destas três barbáries são encontrados no Brasil, no período da Ditadura
Militar.
Além disso, observamos uma intuição de uma terceira barbárie na
contemporânea crise política que se passa no Brasil. Sua configuração é mediada
pela lei, como imagem de justiça e legalidade constitucional, porém, os fatos e
a forma de intervenção política nos quatro poderes, a omissão e suavidade da
justiça para com os ricos e poderosos em detrimento da maior camada
populacional pobres, só destaca cada vez mais o Estado de Exceção onde se nega
o Estado de Direito e a urgente necessidade de apoio das esferas mais
debilitadas de nosso país como a educação, a saúde, a moradia e o desemprego. O
risco de intensificação da disparidade entre ricos e pobres pode intuitivamente
justificado como o resultado dessa barbárie da reflexão que descarta a
democracia, o bem comum e o grito dos mais pobres nas capitais, cidades, ruas,
praças e periferias de nosso país.
Referências
bibliográficas
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