sábado, 27 de outubro de 2018

Sustentabilidade: uma definição integradora para a Ecoteologia.


Isaias Mendes Barbosa, CSsR.
A Ecoteologia trata da inter-relação, interdependência, ou comunhão integral entre todos os seres – bióticos e abióticos – quem fazem parte do nosso planeta. Ela se situa no âmbito científico, ético, antropológico e ambiental, porém, inspirada na e a partir da fé cristã, sabedoria bíblico-religiosa, da Tradição e Doutrina eclesial.
Todavia, Sustentabilidade se classifica como outro termo (substantivado ou adjetivado) relevante para Ecoteologia no âmbito ético, político e ecológico, na relação transitiva e dialogal dentre a fé cristã, a comunidade de vida e humana que permeia o nosso ecossistema planetário. Ora, os governantes, as empresas e os meios de comunicação midiáticos não poucas vezes se apropriam de tal termo nas propagandas de marketing, sem saber ou desvirtuando o real e profundo significado de Sustentabilidade (BOFF, 2012, p.9).
O problema não está somente numa definição conceitual inapropriada, mas também na forma como ela é utilizada para iludir, inebriar o público alvo (a população), a fim de que este continue a consumir produtos ou apõe projetos que pouco ou nada têm haver com a Sustentabilidade no sentido original e essencial do termo.
Diante do falacioso uso do termo, da incoerência conceitual e prática dos modelos atuais de economia e política socioambiental, pretendemos apresentar onde está o problema sobre tais modelos – até então definidos como sustentáveis – e sobre os problemas de sua prática social na contemporaneidade. Por conseguinte, esboçamos uma definição integradora do referido termo em relação com as diversas dimensões da esfera humana e da comunidade de vida, assim como destacamos suscintamente a relevância dessas colocações para a Ecoteologia.
O Teólogo Leonardo Boff na obra “Sustentabilidade: O que é. O que não é” analisa criticamente os seis modelos atuais de Sustentabilidade utilizados pelos governos e empresários. O primeiro modelo (padrão de desenvolvimento sustentável) classificou-se como capitalista, industrial, mercantil exploratório. Os efeitos de tal modelo na política e prática empresarial foi a exploração da Terra, a produção de desigualdade humana, a pobreza e a miséria. O consumo e exploração constante dos bens naturais, que eram limitados, geraram a degradação ambiental e o desrespeito ao ritmo de desenvolvimento da natureza. O desenvolvimento sustentável viável, justo e ambientalmente correto não aconteceu, portanto, se classificou insustentável (BOFF, 2012, p.41-44).
O segundo modelo (neocapitalista) aceitou as regulações do Estado, mas deixou o Mercado livre para seguir sua lógica concorrencial. Isso gerou tensão e desequilíbrio na sociedade estadunidense. Daí continuou-se a extração dos insumos da natureza e criou-se uma perversa desigualdade social (BOFF, 2012, p.51-52). O terceiro modelo (do capital natural), contraditório no uso do termo, pretendeu incorporar ao processo econômico os fluxos biológicos. A finalidade era potencializar a natureza, por diversos meios técnicos, químicos e naturais, para que ela produzisse mais. Tais ações geraram reposição de recursos naturais, mas para fins econômicos em detrimento da dignidade, valor e ritmo que a natureza possuia em si mesma (BOFF, 2012, p.52-52).
O quarto modelo (de economia verde) que integra ecologia e economia de forma harmoniosa, pretendeu auxiliar os pobres e pequenos agricultores com os meios técnicos, sementes e créditos. Tentou-se uma redução da poluição ambiental por diversos meios. Porém, a mudança prevista não alterou os padrões de consumo e nem esclareceu sobre os meios (éticos ou não) para a produção “verde” e os efeitos agressivos ambientais de tais atividades. Nesse modelo a desigualdade não foi minimizada pela sua raiz social e cultural (BOFF, 2012, p.53-55).
O quinto modelo (ecossocialismo), ainda não concretizado, visou uma produção respeitosa da dinâmica da natureza e promoveu a economia humanitária fundada nos direitos e nos princípios éticos fundamentais humanos. Mas tal proposta está encerrada no antigo paradigma não relacional entre o humano, a terra e o universo (BOFF, 2012, p.56-57), tal modelo teve as limitações do fechamento da sustentabilidade exclusivamente antropológica. O sexto modelo (do ecodesenvolvimento ou da bioeconomia) subdividido em três expressões trata a) do decrescimento econômico; b) combina economia, ecologia, democracia, justiça, inclusão e equidade social; c) e busca uma democracia econômica na qual o crescimento deveria ser sustentável, suficiente, eficiente e equânime. Porém, tal modelo até agora não apresentou a força argumentativa da nova cosmologia e da ecologia da transformação (BOFF, 2012, p.60-61).
Em síntese Boff apresenta a razão ética de sua critica aos modelos políticos e empresariais de sustentabilidade:
Em conclusão podemos dizer: pouco importa a concepção que tivemos de sustentabilidade, a ideia motora é esta: não é correto, não é justo nem ético que, ao buscarmos os meios para a nossa subsistência, dilapidemos a natureza, destruamos biomas, envenenemos os solos, contaminemos as aguas, poluamos os ares e destruamos o sutil equilíbrio do Sistema Terra e do Sistema Vida. (BOFF, 2012, p.64)
            Se tais modelos apresentados demostram uma errada compreensão ou ilusória ideia sobre o termo Sustentabilidade, isso se dá por diversos motivos dentre os quais se destaca o sistema econômico, técnico e político vigente que se motiva a busca livre e irrefreável do capital acima de tudo e de todos, assim como tais lideranças políticas, empresariais e governamentais criam projetos, partem de “ideologias” ou pressupostos que pouco ou quase nada tem haver com o significado mais substantivo de Sustentabilidade e das dimensões que tal termo engloba ao pensamos no Bem Comum.
Neste sentido a compreensão e práxis do dito termo não alcançaram sua extensão e definição conceitual indicada por Boff: sustentar, segurar por baixo, suportar, servir de ancora, impedir que caia, impedir a ruína e a queda. Para Boff a compreensão prévia para uma definição original e eticamente necessária de Sustentabilidade se refere a tudo o que fizermos para que um ecossistema e a sua biodiversidade não decaia e se arruíne. Neste sentido se enfatiza o acréscimo de termos ou sentidos que fazem parte do mesmo campo semântico de Sustentabilidade: o conservar, o manter, o proteger, o nutrir, o alimentar, o fazer prosperar, o subsistir, o viver, o conservar-se sempre à mesma altura e conservar-se sempre bem (BOFF, 2012, p.31). “Estes sentidos são visados quando falamos hoje em dia de sustentabilidade, seja no universo, da Terra, dos ecossistemas e também de inteiras comunidades e sociedades: que continuem vivas e se conservem bem” (BOFF, 2012, p.32).
A partir da constatação do que não se denominou como sustentável nos projetos e ações governamentais e empresariais, vamos em busca de uma definição mais clarificada de tal termo. Ela deve abranger as relações entre os diversos setores de intervenção humana no sentido positivo do termo, assim com deve se relacionar com os âmbitos observados na Ecoteologia: cosmologia, antropologia, ética, ecologia. Neste sentido Boff nos atenta para alguns elementos presentes na história recente do conceito de Sustentabilidade. Ele sustenta que a preocupação do termo partiu da silvicultura, com o manejo das florestas, mas se originou conceitualmente na Alemanha. Se no início a questão estava relacionada com a preservação da floresta, pela limitação de corte para o consumo humano e produção de carvão mineral (BOFF, 2012, p.34-35), ao longo do tempo outras questões forma somando-se e se relacionando ao termo.
A preocupação de manutenção dos bens naturais para as futuras gerações, a limitação ou refreamento do crescimento económico, a radicação da pobreza, dos padrões desiguais de vida, a saúde do sistema ambiental, a reciclagem dos resíduos naturais, a busca por energia renovável (alternativa), a conservação da biodiversidade e a interdependências entre todos os seres, foram elementos ou questões que ampliaram e somaram-se na definição de Sustentabilidade e na busca de efetivação do termo nos programas de diversos países para a manutenção, o desenvolvimento e bem estar equitativo da vida humana e planetária.
Dois pressupostos são fundamentais para uma definição integradora de Sustentabilidade, a saber: o cosmológico e o antropológico.  O primeiro se reporta a “visão geral do universo, da Terra, da vida e do ser humano que serve de orientação para as pessoas e para a sociedade” (BOFF, 2012, p.77). Essa visão engloba a cosmogênese, o processo evolutivo e interdependente de todos os seres. Trata-se de um sistema aberto e em processo de transformação, harmonia, adaptação e etc. O universo é visto como um todo, a massa e a matéria são equivalentes, e na matéria está a informação como o resultado da interação entre todos os seres.
O segundo pressuposto, não sem relação com o primeiro, apresenta a gênese humana. O processo evolutivo complexo – de interiorização e interdependência – se transformou e nele surgiu à complexidade mais sofisticada da vida, a vida humana. Da interioridade surge o sistema nervoso central e um cérebro humano. Aqui desponta a consciência, a inteligência, a espontaneidade e a liberdade; a espiritualidade, a cordialidade, o cuidado e a vulnerabilidade (BOFF, 2012, p.82-83). Antropologia e cosmologia se integram e se relacionam como pressuposto da Sustentabilidade. Daí Boff apresenta uma definição integradora:
Sustentabilidade é toda ação destinada a manter as condições energéticas, informacionais, físico-químicas que sustentam todos os seres, especialmente a Terra viva, a comunidade de vida e a vida humana, visando sua continuidade e ainda atender as necessidades da geração presente e das futuras, de tal forma que o capital natural seja mantido e enriquecido em sua capacidade de regeneração, reprodução e coevolução. (BOFF, 2012, p.107)
As condições favoráveis da existência de todos os seres é a base que dar sentido ao emprego do termo. Desde o processo da cosmogênese e da biogênese que se observa o processo evolutivo e transformador dos seres pela conjugação de elementos energéticos, informacionais e físico-químicos. É o fundamento de tudo e passo inicial para que os diversos seres que compõe a comunidade de vida e vida humana subsistam e se conservem enquanto tal (BOFF, 2012, p. 107).
A sustentação vital de todos os seres supera o paradigma antropocêntrico moderno (estrito) que exerce a objetivação ou coisificação instrumental da comunidade de vida planetária e cósmica. Isso significa que independente da funcionalidade utilitarista e capitalista, a biodiversidade, todos os seres bióticos e abióticos que participam do nosso habitat são importantes para a Sustentabilidade.
Por outro lado, a Terra é mais do que um instrumento de extração e captação de bens, é uma célula viva que se autorregula, sofre, regenera-se, evolui. É a base de subsistências da comunidade de vida e vida humana. Da Mãe Terra sai todas as demais formas de vida e conservação dos seres. O meio ambiente é espaço basilar da nossa existência. Somos interdependentes. Sem essa cadeia ou rede de vida a existência fica fadada ao fracasso (BOFF, 2012, p.108). A comunidade de vida forma os biomas e a biodiversidade para a continuidade da vida no planeta.
Neste o ser humano habita e participa da rede de vida e se destaca por ser o ser mais complexo e portador de consciência, sensibilidade, inteligência, amor e cuidado para garantir a continuidade da vida e civilidade humana, além de possuir a liberdade de intervir positivamente ou destrutivamente na natureza, no ecossistema e na espécie humana. A continuidade se dá pela fonte originária de todo ser e pelo processo de autocriação e expansão do universo vital. A assistência das necessidades humanas faz parte desse processo de Sustentabilidade da vida em todas as suas formas, pois são os recursos emergenciais que o Cosmo e a Terra nos oferece (BOFF, 2012, 109).
A conservação da nova geração além das que continuarão a nossa é condicionada pela relação de sinergia e cooperação com a terra e distribuição equitativa dos bens e serviços. A solidariedade e o direito de condições favoráveis de existência são os percursos de preservação das novas gerações. A comunidade de vida, por sua vez, é recoberta na Sustentabilidade como espaço para a vida e convivência do ser humano. Porém, não se tem cuidado, subsistência e conservação sem a capacidade de conservar o capital natural para ser entregue as gerações futuras (BOFF, 2012, p.109).
Ora, até aqui constatamos que a Sustentabilidade é de grande contributo para a Ecoteologia porque amplia e relaciona de modo profundo e integral a dimensão antropológica e a cosmológica. Neste sentido, há uma interdependência, ligação, relação, interação entre os diversos temas ou questões tratadas na Ecoteologia. O vínculo dos seres humanos com os demais seres que compõem a nossa Casa Comum e a visão planetária como um sistema complexo, inter-relacional e em constante auto-criatividade, transformação e evolução.
As questões da degradação humana e do meio ambiente tem o respaldo da Ética Humana Ambiental, do cuidado humano com a Casa Comum e da ligação dos seres humanos com os demais seres que compõe no nosso sistema planetário. Isso tanto é observado na Ecoteologia como na compreensão integrante da Sustentabilidade. Todavia, assim como na Ecoteologia, aquela se dedica a resgada o valor de todos os seres, independente de utilidade comercial e capital.
Ao ser tratado como pertencente às diversas esferas da vida humana e existência planetária, a Sustentabilidade se relaciona com as questões da pobreza, da desigualdade, da exploração comercial e capital, da degradação ambiental, da destruição do nosso ecossistema planetário e do próprio gênero humano. Neste sentido há uma aproximação muito grande entre Sustentabilidade e Ecoteologia. Pois tais questões se cruzam e se complementam na hora de se observar a vida nas suas variações de formas pelo princípio holístico. O respaldo que aquela dá sobre as questões da ecologia, da cosmogêneses, da antropologia humana, da economia, é enriquecedor na Ecoteologia, pois amplia as pesquisas e formas de pensar relacional e interdependentemente.
O processo sustentável desenvolvimento concede uma maior explicação sobre a evolução de todos os seres, isso serve como complemento para a dimensão teologal do dia da criação e da doutrina social da Igreja. Por fim, as questões éticas pertinentes a continuidade da geração presente e futura contribui na Ecoteologia para uma visão mais histórico-social-imanente da escatologia.   

Ecoteologia: o que é, que método usa e que temas trabalha?

Isaias Mendes Barbosa, CSsR.
            Ao falarmos de teologia estamos tratando de um tipo de conhecimento ou saber que deriva da fé cristã, mas se distingue desta porque apresenta formas, linguagens e métodos próprios, mais articulados e elaborados para descrever a vida, a compreensão e a forma de práxis do ser cristão. Sobre essa distinção entre fé cristã e teologia, Murad (2016, p.207) nos ajuda a compreender que a fé, é intuitiva, sensitiva, comparativa, expressa por analogias e aproximações das situações do cotidiano. Não elaborada categoricamente, a fé cristã faz parte da vida simples ou do sentido comum dos crentes, é um dom divino.
Já a teologia é discursiva, racional, ela elabora os dados da fé, das sagradas escrituras e da tradição eclesial, em busca de maior clareza sobre a vida e missão do cristão. É uma ciência com um rigor reflexivo, pois dá razão àquilo que cremos (fé), esperamos (esperança) e praticamos (caridade). A teologia está voltada para a luz da fé revelada para compreender o mundo, a vontade de Deus e responder evangelicamente às exigências da realidade. Apesar desta distinção, tanto a fé cristã como a teologia se implicam, pois a teologia é a reflexão sobre a fé cristã ou a partir dela. Elas partem de objetos indispensáveis ao saber e vida cristã: Deus, a Revelação e autocomunicação de Deus na história, e relação de Deus com a Comunidade (humana) crente e a realidade vivenciada. Todavia fica a questão: o que é Ecoteologia? Qual sua relação com a teologia e a fé cristã? O que diferencia a Ecoteologia dessas duas formas de saber?
A Ecoteologia é uma saber ou ciência que deriva da teologia, é parte desta. É um tipo de teologia cristã que partilha de elementos constitutivos da ciência da fé, porém com um diferencial, dentre outros: “consiste em pensar a fé no horizonte da consciência planetária. Essa se caracteriza como a (re)descoberta de que o mundo torna-se um todo, o ser humano è membro da Terra e deve assumir a responsabilidade pelo futuro do planeta habitável” (MURAD, 2016, p.211).
A Ecoteologia trata de questões que relaciona a humanidade com a sua práxis e a realidade planetária que a cerca. É um saber de relação, de interconectividade, de intercambio e interdependência com tudo e em momentos variados. Assim, três âmbitos fazem parte das questões inter-relacionais da Ecoteologia: a ciência da interdependência do todos os seres, a ética do cuidado com o planeta e o paradigma pós-antropocêntrico (MURAD, 2016, p.212). Ela amplia a visão e consciência humana para além de um antropocentrismo, ou visão tradicional antropológica. Situa o ser humano na relação com os outros seres abióticos (solo, ar, energia solar) e bióticos (micro-organismos, plantas e animais) da nossa esfera planetária.
Apesar da Ecoteologia tratar de questões ou temas que pertencem à teologia como a fé, a revelação, o homem, a ética, os escritos bíblicos, a tradição, a experiência religiosa cristã, ela tem uma singularidade quanto ao método, a linguagem e ao conteúdo. Há um rompimento da separação tradicional entre corpo e alma, sujeito e objeto, realidade humana e realidade da natureza, é um saber que promove a integralidade nas relações entre os seres que compõe o nosso ecossistema. Não há uma redução metodológica conceitual como na teologia tradicional, mas também uma combinação de símbolos e imagens para tratar das questões ou realidade teológica.
Ela combina elementos que aparentemente não possuem nenhuma relação entre si, como a sabedoria da terra e a sabedoria humana, a degradação ambiental e a mobilidade humana, o aquecimento global e a economia, o bem estar humano e o cuidado com o planeta, revelação divina e o nosso ecossistema, a crise ambiental e a fragilidade do pobre. O método “combina vários acessos à comunhão da criação: tradição, experiência, ciência, sabedoria, dedução, intuição” (MURAD, 2016, p.216).
Se a teologia é uma prática teórica que considera o saber hermenêutico pré-teológico – como a filosofia, a literatura, a arqueologia, a medicina e a sociologia – para aprimorar ou amadurecer sua compreensão e posicionamento ético (não fundamentalista ou dogmático) sobre a realidade, a Ecoteologia, por sua vez, serve-se de outros saberes ou ciências (sociais e ambientais) – como a história, a economia, a agroecologia, o ecodesign, a engenharia civil e arquitetura sustentável, a geografia, a ecologia e o estudo dos solos, dentre outros – para sua postura moral ecológica cristã fundamental sobre a realidade relacional humana e ambiental integral. Para além de um discurso eclesial ou magisterial, da tradição bíblica ou das verdades reveladas da fé cristã, a Ecoteologia pensa a realidade humana, ambiental, planetária, social, estrutural, cultural e política á luz da fé. Ela tem uma função crítica, construtiva e se insere no movimento de continuidade, rupturas e avanços da teologia contemporânea:
[...] Não alimenta a ilusão de ser a grande chave hermenêutica para reconfigurar toda teologia. Tampouco é um pequeno setor, que se ocupa somente de questões ambientais ou da teologia da criação. Consiste em uma perspectiva, um enfoque, que permite reorganizar dados da fé, inferir, dialogar e aprofundar. Ela influencia a produção da teologia ao colocar perguntas decisivas no momento de realizar o intellectus fidei, a mediação hermenêutica própria ente teológica, que utiliza a Bíblia e a Tradição eclesial, sensível aos “Sinais dos Tempos” (MURAD, 2016, p.222).
            A Ecoteologia pode tratar dos mesmos temas, elementos ou referencial teórico da teologia. Todavia, o seu diferencial está em contribuir ou ampliar o patrimônio vivo do saber teológico contemporâneo e poder avançar nas reflexões em diferentes áreas disciplinares até então pouco ou quase nada exploradas. Para exemplifica, sustentamos que a Ecoteologia ora trabalha, ora recebe contribuição teológica sobre diversos temas.
O tema da Terra é focado numa visão cristã sobre o ser humano em relação com a natureza e Deus. Aqui o princípio cosmogênico de complexificação, interiorização/diferenciação e inter-relacionalidade se constitui como fundamental; o tema antropológico da Graça apresenta uma perspectiva cristã antropológica em relação com o processo evolutivo da matéria e história do cosmos. Há uma reflexão sobre a graça original e o pecado no horizonte evolutivo; observamos o tema do mistério de Deus sobre a relação una e trinitária de Deus conosco. Essa comunhão fundamenta a biodiversidade e a diversidade humana, a prioridade da cooperação e interdependência de todos os seres;
A Cristologia acentua o Cristo glorificado, aquele que é Palavra criadora, primogênito de toda criatura, o Cristo cósmico; na Pneumatologia a Ecoteologia acentua a função do Espírito Santo que cria, conserva, renova e consuma o projeto de Deus, atuando no crente, na Igreja e no universo; a Ética tem como conteúdo a conservação e continuidade da vida em toda sua extensão, a Ética do cuidado; a Teologia bíblica trás para a Ecoteologia a questão da criação e salvação, louvor, compromisso histórico, a sabedoria, a ética, o profetismo e etc, numa unidade integral; o tema dos estudos patrísticos resgata as intuições dos primeiros séculos referentes à ecologia e a relação do pecado, encarnação e redenção de Cristo na natureza. Por fim acentuamos:
[...], a ecoteologia trata de temas explicitamente ecológicos, em âmbito prático, para ajudar os cristãos a constituir uma sociedade sustentável, viável. Por isso, assuntos como água, resíduos sólidos, política energética, biodiversidade, governança global, consumismo e consumo responsável, mobilidade urbana, uso do solo, qualidade do ar torna-se também matéria-prima para a ciência da fé, como ética teológica. Em dialogo com as ciências ambientais, compreende-se cada questão no contexto da biosfera. A pontam-se as causas diversas que levam a degradação do meio ambiente e do ser humano. (MURAD, 2016, p. 229)

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Fé e Política



A e a Política sempre fizeram parte da vida do povo de Deus. No Antigo Testamento Moisés escreve os dez mandamentos para educar o povo na união com Deus (“Amar a Deus sobre todas as coisas”) e no compromisso de cuidado social do irmão (“não cobiçar as coisas alheias/ não levantar falso testemunho”), principalmente os mais abandonados: o órfão, a viúva, o migrante, o pobre.
Naquele tempo não havia separação entre Religião e Política. O profeta (o Ungido de Deus) era responsável para falar ao povo o que Deus queria, assim como tinha a obrigação de denunciar o Rei vigente (Saul, Salomão) quando este cometia injustiça para com o povo. A irresponsabilidade política era sempre condenada como o rompimento da “Aliança” de Deus. Pela boca do profeta Amós Deus denuncia os três crimes de Judá: “porque desprezaram a lei de Deus e não guardaram os seus mandamentos, tomando um caminho de mentiras” (Am 2,4). 
          Nos Evangelhos Jesus não é político, não se liga a nenhuma instância política do império romano, mas sua vida tem uma ação política que pode ser resumida em quatro posições: a) Jesus tinha uma visão realista da realidade: “‘sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam” (Mc 10,42); b) Jesus sabe que as autoridades políticas, apesar de serem importantes, não são deuses e nem podem assumir o lugar de Deus (“pois dêm a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 20); c) Jesus não nega o poder político ou função política de Pilatos, mas afirma que essa função é dada por Deus, e seu propósito deveria ser bom: “‘Não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dado do alto” (Jo 19,11); d) Jesus era livre (Jo 10,18) para decidir corretamente diante de qualquer realidade política.
        Ao longo da história a Igreja e o povo crente estiveram envolvidos com a Política. Na Idade Média a Igreja e Estado eram uma só coisa. As regras da fé eram adaptadas ou sintonizadas com as normas civis da vida política e social do povo. Para assumir um cargo político era preciso passar pelos sacramentos, pelos princípios cristãos do serviço e cuidado. Estes princípios deveriam ser praticados na política. Os ricos influenciavam e até decidiam sobre a Igreja (quem iria ser ordenado Presbítero, Bispo e até Papa) e a Igreja tinha parte nas decisões do Estado e do Império (Romano...).
Da Modernidade adiante, principalmente no Brasil, a Igreja se separou do Estado. Isso até certo ponto foi bom para que os interesses corruptos e injustos do Estado não interferissem na Igreja e na vida de boa vontade dos fieis. Porém, recentemente há nos membros da Igreja um distanciamento da política. A corrupção, a injustiça e diversos erros saltam aos nossos olhos e nos deixam sem motivação para assumir o compromisso cristão de praticar a fé na política, para o Bem Comum. Mesmo diante desses desafios, não podemos perder a esperança. Se o barco está defeituoso, isso quer dizer que pode ser consertado. Assim é com a Política. Depende de nós contribuir para concertar o barco defeituoso chamado Política. 
O Concílio Vaticano II afirmou que a Igreja e a Política deveriam agir para o Bem de todos. Isso acontece pela cooperação entre as duas instâncias de poder (GS, 1581). Segundo a doutrina eclesial: a educação civil e política, tão necessária hoje em dia, especialmente para os jovens, deve ser ministrada de modo a que todos possam exercer o seu papel na comunidade política. (1578). A participação política do cristão católico é uma exigência que faz parte da raiz essencial humana.
Todos os cidadãos (inclusive cristãos) têm a possibilidade de participar cada vez mais livre e efetivamente da Política, do governo das coisas públicas, das instituições e eleições de governantes. A Igreja considera digna de louvores e considerações às pessoas que se colocam a serviço dos outros, nas coisas públicas e assumindo os encargos (GS, 1573). A exceção está no corpo ministerial ordenado, a saber, o presbítero, o bispo e pontífice romano. Estes mesmo possuindo validade eclesial de uma ação política no exercício do ministério e podendo orientar os fieis cristãmente sobre a Política, não podem fazer parte da política, não podem se filiar a nenhum partido, não podem ser políticos.
Por fim, o Papa Francisco afirma na Cartilha de Orientação Política que “para o cristão, é uma obrigação envolver-se na política. Nós, cristãos, não podemos fazer como Pilatos: lavar as mãos. Não podemos! Devemos nos envolver na política, pois a política é uma das formas mais altas da caridade, porque busca o bem comum. E os leigos cristãos devem trabalhar na política”.  Quando uma casa está pra cair, os donos correm e fazem alguma coisa. O nosso mundo é essa Casa Comum que está desabando com a corrupção Política, você vai ficar ai parado ou vai começar a arregaçar as mangas pra cuidar da nossa Casa Terra? Comece hoje......

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Vida Religiosa: meditações, reflexões e luzes evangélicas para a Contemporaneidade.



Nos sinais dos tempos atuais, a Vida Religiosa continua sendo um dos mais particulares, radicais e proféticos modos de vida na Igreja e sociedade. Sua singularidade e importância não está somente por se diferenciar tanto da vida laical como da clerical (CONCÍLIO VATICANO II, 2007, p. 228 ), mas por comungar e dialogar com estes dois modos de vida e manifestar, de modo especial e na sua radicalidade de seguimento, a expressão atualizada e renovada do Rosto de Cristo para os nossos tempos. E para contribuir, aprofundar e degustar sobre a experiência misericordiosa e rica de esperança no itinerário da Vida Religiosa, faz-se oitos considerações, a partir do Evangelho de Lucas (5, 1-11), que podem iluminar-nos e inspirar-nos- Religiosos(as) Consagrados(as)- a contemplar nosso percurso de vida com gratidão, alegria, esperança e entusiasmo evangélico. Também observamos algumas ideias e interrogações que nos ajudarão a aprofundar e vivenciar a riqueza de ser religioso na contemporaneidade carente de misericórdia.

1)   A realidade do chamado à Vida Religiosa.

“Certa vez em que a multidão se comprimia ao redor dele para ouvir a palavra de Deus, à margem do lago de Genesaré, viu dois pequenos barcos à margem do lago os pescadores haviam desembarcado e lavavam as redes.”

Se o Concílio Vaticano II nos convidou a retomar as origens do carisma congregacional ou institucional (CONCILIO VATICANO II, 2007, p. 302), essa origem precisa também fazer eco na nossa história particular, nas nossas bases histórico-existenciais. Essa conexão entre vida pessoal e experiência congregacional é necessária para percebermos que há uma continuidade, conversão e renovação na nossa trajetória de vida. Isso nos é importante para relembrarmos com alegria o fator motivador e decisivo do nosso modo de viver atual: o chamado de Deus. Não foi vós que me escolhestes, mais fui eu que te escolhi disse Jesus (Jo.15,16). Esse chamado não é outra coisa do que a expressão de quem nos conhecer profundamente e nos ama verdadeiramente. Podemos observar que há mais de 2000 anos Deus continua chamando pessoas para segui-Lo, como fez conosco e isso não é por mérito nosso, mas pela sua misericórdia que é eterna (Sl 136).  
O chamado de Deus, na nossa vida, não aconteceu no deserto ou na solidão da vida, mas numa experiência concreta, em um local concreto: em uma comunidade que caminhava com Cristo. A nossa experiência de fé parte de um contexto em que existiam um povo: “a multidão se comprimia ao redor dele para ouvir a palavra de Deus”. Isso é tão certo que o chamado de Deus, a nós, não é intermediado só por uma pessoa, mas por várias que aos poucos vão lançado a semente da sua misericórdia no nosso coração e nos sinalizando a vontade de Deus. E isso aconteceu porque nos abrimos para essa experiência. Cabe agora duas interrogações: temos guardado no nosso coração, bem vivo internamente, a experiência do chamado de Jesus na nossa vida? Atualizamos concretamente, todo dia, esse chamado e resposta a Deus? Santo Afonso Maria de Ligório costumava rezar no seu interior todo santo dia: começo hoje! (SÉGALEN, 1996, p.25). Essa é a primeira luz que não pode sair do nosso coração.
Se foi em um local, contexto e realidade específica que fomos chamados, e nos encantamos com tal experiência, isso não aconteceu por acaso, mas porque o barco da nossa vida estava dando uma estacionada, desembarcando para lavarmos as redes da vida que até então estava sem sentido profundo, sem caminho seguro, ou a espera de algo maior. Daí, como o chamado não é nosso, mas de Deus e também de seu Filho Jesus, foi este que “viu dois pequenos barcos à margem do lago”. Foi Jesus que nos viu. Portanto, podemos perceber novamente a ação primária e misericordiosa de Deus, que nos viu, nos amou por primeiro e foi ao nosso encontro de diversas formas e por diversas pessoas, como ele mesmo fez com seus discípulos. Outra questão se faz importante na Vida Religiosa: estamos deixando-nos ver (totalmente) e se encontrar por Jesus?

2)   A centralidade do Cristo e o distanciamento necessário da dinâmicas do mundo, na Vida Religiosa.

“Subindo num dos barcos, o de Simão, pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra”

Se temos a certeza de fé, rezada e vivenciada, isso implica uma pergunta de fundo que fizeram todos os profetas e apóstolos: o Senhor nos chamou para que? A resposta de Deus é tão simples e tão difícil que podemos nos surpreender. Eles nos chamou para sermos Um com Ele, como Ele e o Pai são Um (Jo.17,22). E esse é o passo fundamental de toda a Vida Religiosa. Não há misericórdia maior do que estar unido com Cristo, com quem nos ama por primeiro e acima de tudo. Outros dois questionamentos se fazem necessários para nós: Estamos desejando, buscando, e tentando concretizar, nos nossos projetos e ações, ser Um, radicalmente, com Cristo? Os nossos trabalhos, pastorais, missão, instrumentos de evangelização, estão nos mantendo unidos a Ele?
Essa experiência é tão importante, que todo o nosso caminho histórico-humano-espiritual depende dessa união com Ele, pois Ele mesmo nos disse: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo.15, 4). Nesse sentido precisamos orientar o barco da nossa vida, pois assim como Jesus subiu “num dos barcos, o de Simeão”, Ele quer fazer a mesma coisa com o nosso barco. Na verdade essa é a coisa que Deus mais quer. Todo o intento de Deus - deste o tempo dos primeiros povos na literatura-espiritual-poética adâmica até ressurreição do seu Filho, seguindo até hoje (com a mediação, aparições e intercessão de Nossa Senhora; a vida, persistência e testemunho dos Santos, Mártires, Beatos e Servos de Deus) - é para manter a comunhão conosco, porque nos ama.
Não foi por outra coisa que nós entramos na Vida Religiosa, se não por uma abertura à vontade de Deus. Para tanto, é preciso termos como opção fundamental o Cristo. Se na Vida Religiosa nós estamos com crise de identidade, isso é pela descentralização que fazemos da pessoas humana e divina de Jesus na nossa vida. Pela fraqueza humana e falta de fé, pelo fechamento à obra de Deus. Portanto é importante outra duas questões: Jesus Cristo está sendo a motivação fundamental, central e primeira na nossa vida, na nossa ação evangélica, nos nossos estudos e trabalhos? As outras motivações, as secundárias e assim por diante, estão sendo vivenciadas e realizadas para completar a motivação primeira e fundamental?  Quando deixamos outras coisas tomarem o lugar de Cristo então, aos poucos vamos nos separando, desligando e se afastando da identidade, vida e missão religiosa.
Para tal fim o próprio Jesus orienta a pessoa que Ele ama, pois ele mesmo, “pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra”, isto é, que mantivesse uma distância razoável do jeito de pensar e viver dos demais modos de vida, e principalmente, dos que não caminham com Cristo. É importante destacarmos que os primeiros homens e mulheres (Monges, virgens,..) que se inspiraram para a criação da Vida Religiosa, levaram esse afastamento ao pé da letra e foram para o deserto. Apesar de tal radicalidade ter surtido efeitos positivos, porém, não foi um corte da realidade que Nosso Senhor nos pediu, não foi um virar as costas para a nossa realidade histórica, para o mundo, como se este não existisse ou fosse algo de condenável, como a tradição medieval pensou. Na verdade o que Jesus pediu, ou melhor dizendo, nos pede é um afastamento razoável, para adentrarmos no seu mistério e provarmos de sua misericórdia. É um abandonar a mentalidade do mundo humano egocêntrico, autossuficiente, independente, não solidário, não generoso, injusto e fechado ao cuidado com o gênero humano e todos os seres que compõe o nosso sistema planetário, para deixar-se guiar pela mentalidade de Jesus, pela inspiração concedida por Deus na pessoa de Jesus.
A entrada nas casas religiosas e o processo de formação é para termos esse afastamento a fim de que Ele nos fale, nos ensine e nos oriente ao que fazer na caminhada. Não se trata somente de um afastamento espacial-geográfico, pois podemos deixar os locais onde estávamos (muitas vezes incompatíveis com a opção de vida religiosa), sem deixar dentro de nós o modo antigo, ou as outras formas de vida que não nos ajudar a se encontrar e se identificar com Cristo radicalmente. Portanto, esse distanciamento interior e até certo ponto espacial é o que Cristo nos pede. O distanciamento de modos de vida que não promovem a felicidade humana, mas destrói a cada dia o nosso semelhante e explora initerruptamente as criaturas do nosso meio planetário. Então uma pergunta se faz presente: estamos nos distanciando de modos de pensar e viver que não competem a nós enquanto religiosos (as)? Olhemos a nossa consciência, pois, segundo falou Santo Afonso: ela é o sacrário de Deus, onde podemos encontrar a VERDADE MAIS PROFUNDA E ILUMINADA DO CORAÇÃO HUMANO.  É importante destacar que quando mais assumimos a nossa vocação religiosa, mais nos tornamos humanos, mais nos aprofundamos na experiência do amor agápico: amor incondicional, amor que busca e luta pela vida, dignidade e felicidade do outro.

3)   Uma escuta atenta e comunhão com Deus na Vida Religiosa.

           “depois, sentando-se ensinava do barco às multidões”

Se a experiência com Jesus nos leva há uma abertura para o seu chamado, ela exige de nós um afastamento razoável do estilo de vida e mentalidade do mundo. Isso significa que precisamos partir de outro ponto de vista que não seja o do ter, do prazer e do poder egoísta. Pois tais mentalidades são estimuladas, promovidas e disseminadas na cultural e na conjuntura contemporânea.
Podemos observar, então, que o chamado divino cristocêntrico é para nos envolver mais profundamente, mais de perto e realizar a comunhão com Jesus. E se não tentarmos nos esvaziar das coisas que nos afastam de Deus, ficará difícil fazer comunhão com Ele. Esse esvaziamento exemplificado pelo próprio Cristo (Fl 2,7) é fundamental para ouvir a vós de Deus, como fez o profeta Samuel (Sm 3,10). Assim como Jesus “ensinava do barco às multidões”, do mesmo modo Ele quer nos ensinar a Vontade do Pai misericordioso, para bem vivermos enquanto religiosos (as).
A Palavra de Deus, Além da Eucaristia, torna-se, então, um dos principais veículos de comunicação com o Pai e com o seu projeto misericordioso. Enquanto humanos imersos no amor, mentalidade e práxis profunda de Deus. Porém, não se trata de um ato de leitura somente, mas de interiorização. É um esforço continuo para guardar a Palavra de Deus no coração. Dois são os meios mais comuns para isso: a meditação e contemplação. Para realizarmos tal intento, é preciso condições favoráveis. No nosso itinerário religioso podemos nos questionar: estamos rezando a Palavra de Deus? Estamos criando condições para nos encontrar com Jesus? Estamos nos abrindo para acolher Deus que age na nossa vida nas luzes e trevas que vivenciamos? Essa experiência com Jesus é mais do que um formalismo. É um encontro com alguém que nos conhece e nos ama mais do que tudo. Portanto, deve estar preenchida pelo afeto e amor verdadeiro e sincero. Santo Afonso exemplifica que o encontro com Deus é semelhante há um encontro com alguém que deixou um Reino, um país, só para estar e falar conosco, e que anseia nos ver dia e noite (LIGÓRIO, 2014, p.84-85). Portanto, trata-se de uma intimidade profunda. Muitos religiosos caem na vida e se extraviam como ovelhas perdidas, porque perderam essa noção profunda de intimidade com a Palavra de Deus e com sua Pessoa misericordiosa, na oração e no cotidiano. Há também outros meios para fazermos comunhão com Deus. Porém depende de nossa persistência e abertura constante para não perdermos essa unidade e comunhão.

4)   Desprendimento de si: uma abertura para a profundidade do seguimento de Deus na Vida Religiosa.

“Quando acabou de falar, disse a Simão: ‘Faze-te ao largo; lançai vossas redes para pescar’. Simão respondeu: ‘Mestre, trabalhamos a noite inteiro sem nada apanhar; mas, porque mandas lançareis as redes’”.

Ter Jesus no barco da nossa vida e escutar a sua voz, que toca a nossa mente e o coração, requer que deixemos de lado uma tentação que acontece quando estamos progredindo, dando os primeiros passos no seguimento de Cristo, ou até quando nos tornamos propriamente religiosos (as): é a tentação de querer guiar a vida por si próprio, ou simplesmente, querer ter Jesus conosco, porém, como passageiro, ou objeto dos nossos interesses. Quando isso acontece fazemos muito, nos esforçamos e nos preocupamos cansativamente, porém, não encontramos tanto resultados. Esse é um risco que muitos religiosos correm, pois muitos vezes achamos que estamos sempre certos, e chegamos até a cair no erro de se achar portadores da salvação, ou, radicalmente, chegamos até a se tornar monopolizadores da Verdade.
Essa experiência pode acontecer desde a formação introdutória para a Vida Religiosa, pois normalmente se entra no seminário, com algumas ideias já mais ou menos formadas de como será o seguimento, porém, no caminhar da carruagem Deus vai exigindo mais de nós e nos mostrando o caminho que devemos percorrer. Ele nos diz: “‘Faze-te ao largo”, ou seja, avance por aquele lado. Assim Ele continua: “lançai vossas redes para pescar”, ou seja, segui por esse caminho, superai esse obstáculo, desprendei disso ou daquilo para continuar navegando. Então quanto mais nos fechamos e resistimos com nossas opiniões já prontas e acabadas, com nossa visão pequena e as vezes mesquinha de seguimento, mais sentimos dificuldade e sofremos para seguir. É como Pedro disse: “Mestre, trabalhamos a noite inteiro sem nada apanhar”.
Ora, enquanto religiosos precisamos nos abrir por alguns caminhos inusitados e que muitas vezes depende mais da confiança em Deus, do que da nossa própria segurança. Muitas vezes a comunidade religiosa passa por transformações e o Espírito diz é por aqui, porém, quando alguns membros emperram a caminhada, então, a caminhada religiosa entra em crise. Na verdade toda a crise é fruto da falta de comunhão com o espírito de Deus, quando boa parcela dos seus membros estão perdendo a direção do Espírito ou estão resistindo a tal ação divina, porque estão apegados há alguma coisa, ideia, ou pessoa, que não liberta-os para o movimento do Espírito.
Nessas circunstâncias é preciso muita oração, discernimento, e abertura para o bem comum. E isso se dá tanto no âmbito pessoal como no âmbito comunitário, pois o Espírito é um só, e Ele se manifesta em todos como no pentecoste (At.2,1-11). Nesse sentido é preciso obedecer as investidas do Espírito, aniquilar o egocentrismo que gira em nós e dizermos como Pedro: “mas, porque mandas lançareis as redes’”, ou melhor dizendo, “em atenção a tua Palavra lançarei as redes”. Então podemos refletir: que coisas em nós estão dificultando a identidade e ação da Vida Religiosa no seguimento de Cristo? Diante das exigências do Espírito, que se apresenta na vida e no trabalho seja religioso, seja apostólico: onde estamos tendo mais dificuldade, ou o que nos prende, não nos deixa seguir, na opção de Vida que respondemos? É preciso uma confiança em Deus e muita coragem para manter a nossa comunhão com Jesus, pois cada dia, Ele nos surpreende com um novo caminho ou uma nova exigência.  

5)   A exigência do Reino na Vida Religiosa para além do individualismo e personalismo.

“Fizeram isso e apanharam tamanha quantidade de peixes que suas redes se rompiam. Fizeram então sinais aos sócios do outro barco para virem em seu auxílio. Eles vieram e encheram os dois barcos, a ponto de quase afundarem”


            É possível percebermos que no itinerário da Vida Religiosa temos dificuldades e desafios, porém também temos muitos ganhos, crescimento e amadurecimento espiritual-humano. Mas boa parte depende da forma como nos doamos para realizar a vontade de Deus. Se fizemos isso conforme as exigências do Espírito, pois os discípulos “Fizeram isso e apanharam tamanha quantidade de peixes que suas redes se rompiam”, isto é, a abertura e obediência para as moções do Espírito foram tão profundas e confiantes, que os frutos de tal seguimento foram maiores do que eles esperavam. Assim também pode acontecer conosco, quando estamos disponíveis, confiamos e seguimos.
Mas tal ação do Espírito exige que nós superemos as inclinações ao egoísmo em nós, aquilo que a contemporaneidade chama de Individualismo. E a resposta para tais entraves é iluminada pela Exortação Apostólica Evangelii Gaudium do Papa Francisco em que ele afirma: “[...] hoje somos todos chamados a esta ‘saída’ missionária. Cada cristão e cada comunidade há de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar essa chamada: sair da própria comodidade [...]” (FRANCISCO, 2013, p. 20). Só acontece o frutífero sinal de Cristo se sairmos de nós mesmo e entramos numa outra dinâmicas: a dinâmica da comunidade que se deixa iluminar por Deus, a dinâmica do Reino. Possuir uma personalidade própria não é negar o Evangelho, porém é preciso superar o nosso caminhar pessoal, pois, quando dizemos “sim” para Deus, não se trata somente de um “sim” pessoal, mas que engloba um projeto que vai além de nossas forças. Por isso, que os apóstolos “Fizeram então sinais aos sócios do outro barco para virem em seu auxílio. Eles vieram e encheram os dois barcos, a ponto de quase afundarem”. Portanto, o projeto do Reino na Vida Religiosa é comunitário, e vai além do que pensamos ou queremos decidir com a comunidade. Podemos então nos perguntar: estamos identificando o projeto da nossa comunidade de fé como algo também nosso? Estamos contribuindo para tal projeto? Estamos nos abrindo para as novidades que nos aparecem?

6) O reconhecimento das limitações, fragilidade e dependência humana na Vida Religiosa, na comunhão com Deus.

“À vista disso Simão Pedro atirou-se aos pés de Jesus, dizendo: ‘Afasta-te de mim, Senhor que sou pecador!’”


A experiência com Cristo deve nos levar a uma consciência de nós mesmos, de nossas limitações, pecados e fragilidades. Isso é reflexo dessa amizade que nos revela a verdade que é Deus e nossa total dependência Dele para concretude do Projeto.
A maturidade de que precisamos Dele para efetivação do projeto é a prova de verdadeira humildade. Para tanto essa maturidade também se realiza na comunidade onde cada membro se ver como ligados, feitos comunhão, entre si. Assim quanto mais reconhecemos essa verdade de nossa fragilidade e pecado diante de Deus, mais Deus se derrama de amor por nós e nos acolhe na sua misericórdia como aconteceu com o Filho pródigo (Lc.15, 11-32). Por isso São Paulo nos afirma que quanto mais fracos, ai é que somos fortes (2Cor.12, 9-10).
Reconhecer a fragilidade e olhar com misericórdia diante da fragilidade do irmão é o passo inicial para agirmos maduramente e a partir da nossa condição humana: dependentes da Graça de Deus, deixando Deus agir, confiando em Deus que conduz o nosso barco e o barco dos outros, mesmo que tais barcos estejam um pouco quebrados, desorganizados ou sujos. Ai está a beleza da vida religiosa: não buscamos a Deus pelo que de ruim existe em nós e nos outros, não buscamos a Deus porque somos mais ou melhores que os outros. Não buscamos a Deus porque só nós fazemos diferente ou somos melhores que os outros. Isso tudo é vão pensamento e modo de viver de acordo com o mundo.
Escolhemos essa vida porque cada dia mais reconhecemos que é Deus que nos quis, é Deus que nos chamou, é Deus que nos faz amadurecer e ser melhor, é Deus que age em todos (mesmo que estes criem resistências a Graça), é Deus que usa até do mais miserável de todos os homens para mostrar o seu grande poder, a sua bondade infinita. Mas isso só acontece no momento de Deus e não no nosso.   

7) A experiência do temor de Deus na Vida Religiosa.

“O espanto, com efeito, se apoderara dele e de todos os que estavam em sua companhia, por causas da pesca que haviam acabado de fazer; e também de Tiago e João, filhos de Zebedeu, que eram companheiros de Simão”


            O temor é outro elemento que pode aparecer no itinerário da Vida Religiosa, desde a entrada nas casas de formação. Maria e muitos outros Santos passaram pela mesma experiência. Até certo ponto o temos é construtivo na Vida Religiosa, desde que ele nos motive para justamente avançar para águas mais profundas e depositar a confiança em Deus. Isso implica uma questão de fé, de dar crédito a Deus. O temor pode também seguir uma orientação de respeito com o Sagrado e com a exigência da caminhada religiosa.
Daí poderíamos nos perguntar: a experiência de nossa fé está entrelaçada pelo temor a Deus, como confiança Nele e no temor como impulso para caminhar no seguimento de Cristo? O grande risco dos radicais é crer que tudo é ruim ou que tudo é bom. Mas a coisa mais difícil na discernir o que de fato é ruim e o que de fato é bom.  E perceber que o que era ruim antigamente hoje pode ser bom assim como o que era bom antes hoje pode ser prejudicial a nossa vida cristã.
A lógica ética é que o bem deve ser praticado e o mal evitado. Porém, essa não necessariamente é a lógica de Deus. É só olhar as palavras difíceis de serem entendidas por Jesus: é preciso morrer para nascer de novo; do pobre é o Reino do Céu; aquele que não perder a vida por mim, não entrará no Reino; eu vim para os doentes e pecadores. Se olharmos o modo como Deus salvou a humanidade vamos nos deparar com um escândalo ético: Deus nos salva, assumindo a nossa condição humana, Deus nos salva perdoando a nossa maldade ou pecado, Deus nos salva estando perto dos publicamente incorretos, Deus nos dá a vida eterna perdendo a sua vida, Deus nos salva se tornando um condenado, Deus nos abre a possibilidade de tudo (eternidade) perdendo tudo. Por isso que até o temor, visto aparentemente com algo da fraqueza humana nem sempre é um problema. Muitas vezes é a solução. E se torna eticamente correto.  

8) Identidade e missão na Vida Religiosa.

“Jesus, porém, disse a Simão: “Não tenhas medo! Doravante serás pescador de homens”. Então, reconduziu os barcos à terra e deixando tudo, eles o seguiam”


Por fim, todo esse processo de reflexão, meditação e observação por alguns pontos de inspiração evangélica devem nos conduzir para a nossa identidade religiosa, enquanto radicalidade, profundidade e maturidade no seguimento de Cristo. Essa experiência rezada e vivida no cotidiano da vida tem a finalidade de tornar-nos na Vida Religiosa, “pescadores de homens” para e na realidade em que nos encontramos. Daí o movimento é de distanciamento do anti-reino para profundidade evangélica, a fim de realizar a missão profética como religiosos (as) no mundo contemporâneo, sendo uma expressão da misericórdia de Deus e conduzindo todos para o fim eterno: a união com o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

sexta-feira, 25 de maio de 2018

DAS BARBÁRIES PARA A CIVILIDADE NA HISTÓRIA DAS NAÇÕES EM GIAMBATTISTA VICO: LUZES PARA REFLEXÃO SOBRE DOIS MOMENTOS DE TENSÃO NO BRASIL.


Comunicação apresentada no XI colóquio vaziano "Democracia e Sociedade: Conquistas e Desafios. Entre os dia 24 e 25 de maio. (comunicação em processo de publicação)
Isaias mendes Barbosa[1]
isaiasredentorista@hotmail.com
RESUMO: A presente comunicação objetiva tratar das barbáries no processo de constituição e civilização humana, na história das nações, segundo o pensamento de Giambattista Vico (1696-1774), na sua mais brilhante obra: a Ciência Nova (1744). Por conseguinte, essa exposição será relacionada com dois pontos históricos de tensão humana no Brasil, a saber, a ditadura militar e a contemporaneidade. Ora, a concepção do “percurso das nações”, enquanto “Ciência da Vida Civil” ou Ciência Humana, é marca inovadora e característica do filósofo napolitano no seu projeto de nova ciência distinta daquela tratada na tradição, isto é, a ciência (metafísica) do mundo natural. Tal história ideal das nações passa por um processo de humanização em três idades que podem se entrelaçar historicamente: a idade dos deuses, a idade dos heróis e a idade dos homens. Porém, cada momento histórico de autoconstituição do ser humano, – pelos seus costumes, línguas, direitos, leis, governos, culturas e mentalidades – passa por duas barbáries (a barbárie dos sentidos, a barbárie da retornada) e o risco iminente de uma terceira barbárie, a da reflexão. Todavia, cada estado de barbárie não é estaque em si, mas aberto, sob a luz da providência divina, como possibilidade para a civilidade, conservação e preservação humana nos seus princípios fundamentais, sem os quais ela não pode subsistir. Assim as três barbáries estão em relação estreita com a civilidade e os princípios metafísicos de existência humanitária, política e civil. Isso nos serve de inspiração para a nossa sucinta e breve reflexão sobre a história e situação social – política do Brasil, entre 1964 e 1974, assim como na situação de crise que passa o país. Tendo como base metodológica uma reflexão analítica e exposição sobre a temática referida, apresentamos as seguintes considerações: i) as três barbáries na Ciência Nova de Giambattista Vico; ii) os três princípios universais e necessários para a civilidade humana; iii) colocações crítico-reflexiva sobra a ditadura Militar e a atual  crise política (um estado de exceção?) a partir da ideia viquiana de barbárie e civilidade. A pesquisa conclui que as três barbáries se definem geralmente como ausência ou negação de civilidade, do mundo criado pela humanidade, o mundo Civil. Elas são um desvio ou negação dos costumes ou princípios metafísicos do humano – religião, matrimónio e sepultura –, e dos demais princípios que se deduzem a partir deles. Porém, cada barbárie é marcada por um processo, ou possibilidade (de retorno) de humanização. A partir disso, refletimos sobre as situações de barbáries que se deram na Ditadura Militar, com certa relação àquela apresentada no pensamento viquiano. Por conseguinte, refletindo sobre alguns fatos e acontecimentos da nossa conjuntura brasileira, destacamos que um certo tipo de barbárie perdura no nosso país, por diversas vias, de modo velado ou descrito como força do ocaso, no âmbito social e político brasileiro. Por fim, em vista das ultimas decisões, ora antiética (Impeachment de Dilma Rousseff), ora inconstitucional (prisão do ex-presidente Lula), dentre outras, destacamos o risco de uma barbárie indicada por Vico: a barbárie da reflexão. Quando o homem utiliza-se da racionalidade e intelecto para fazer mal à humanidade. Quando não há uma sensibilidade para com a sociedade e o bem comum, mas a paulatina desumanização e destruição de civilização humana.    
PALAVRAS – CHAVE: Percurso das nações; Metafísica civil; Barbáries; Reflexão; Brasil.
Introdução
          O projeto viquiano de pensar e descrever a história humana enquanto Ciência é uma das propostas mais geniais deste pensador que estava à frente de seu tempo. Tal projeto é uma resposta para o problema da ciência (metafísica) do mundo natural que, segundo Vico, tenta, sem êxito, apresentar os princípios universais e necessários de onde se fundamenta a realidade do cosmo. A propedêutica da proposta viquiana, sobre o mundo humano, está na afirmação de que a única realidade conhecida para o ser humano é aquela que ele mesmo cria, isto é, o mundo humano, o mundo das nações. Daí podemos observar uma história ideal de todos os povos, uma ciência do “mundo civil”. Porém, o curso das nações começa na origem de todos os povos, na distinção entre dois tipos de história: a história sagrada e a história profana. É pela negação daquela que o homem decai na sua humanidade e, no meio da selva, sem nenhuma lei, racionalidade, divindade, que o governe, se torna bárbaro (1º ponto).
          O contato com o mundo natural e a providência divina faz esses bárbaros terem uma ideia de Deus e adentrar na primeira idade, a saber, a dos deuses. Daí começa um processo de criação de si, de humanização que se faz pelos três princípios da civilidade: a religião, o matrimónio e a sepultura (2º ponto). O processo de civilidade segue mais duas idades: a dos heróis e a dos homens. Porém, pode acontecer que tal processo seja interrompido, quando, retorna no tempo as características da primeira barbárie. Assim acontece a barbárie retornada, enquanto que uma suposta terceira barbárie (da reflexão) é intuída como o grande risco de negação e destruição humana, num tempo posterior, em que a sociedade está no seu estado humano e civil equilibrado. Ora, tal base filosófica nos é útil para refletir sobre a barbárie que se deu no Brasil no período da Ditatura Militar e na atual crise que passamos, pois suspeitamos que contemporaneamente corremos o risco de uma terceira barbárie que se relaciona diretamente com o atual estado de exceção (3º ponto).
I) as três barbáries na Ciência Nova de Giambattista Vico
O findar do século XVII e o início do século XVIII é um período transitivo de mudanças paradigmáticas no universo da educação, da cultura, da religião e da política napolitana. Essa viragem cultural tem como preocupação os diversos saberes da época e da vida civil, o destaque está na novidade de um método cartesiano – física cartesiana –(VICO, 1998, p.102), que predomina como condição de saber verdadeiro, e a exaltação das ciências geométricas e instrumentais em detrimento dos saberes relacionados aos studios humanitatis: a história, a retórica, as letras, a literatura e a poesia. É nesse universo conflitivo que Giambattista Vico (1668 – 1744) desenvolve, de modo revolucionário, o projeto de uma nova Ciência. Não aquela ciência que segue o método matemático para descrever a realidade humana, não mais aquela ciência do mundo natural, a quem só Deus conhece porque é o autor que a fez (VICO, 2005, p.172), mas a ciência das nações, a ciência do mundo civil, pois esta foi feita pela própria humanidade, por força da Providência divina. Na obra Ciência Nova (1744) Vico trata de um saber enciclopédico e metafísico sobre a humanidade, desde sua originalidade necessária, comum e útil. Sua proposta de Ciência da Vida Civil considera todos os saberes da tradição literária antiga, renascentista e moderna, desprezados em sua época, que são úteis, enquanto material de pesquisa, para conhecer o único mundo construído pelo arbítrio e fazer humano, o mundo civil.
Tais saberes descrevem as nações nos seus costumes, nas suas línguas, nos seus governos originários e gestativos. No resgate dessa literatura, pela abordagem filosófica e filológica, Vico descreve a história ideal das nações, desde seus princípios metafísicos do mundo civil. Porém, para categorizar tal ciência histórica, o autor defende que o percurso das nações passa por um ciclo histórico elítico, conforme a “divisão das três idades que os Egípcios diziam terem transcorrido antes do seu mundo, a dos deuses, a dos heróis e a dos homens” (VICO, 2005, p.667). A primeira idade é precedida, na história pelo povo que recusou a tradição adâmica – do povo hebreu – e negando a religião de seus pais, e os princípios de humanidade, se debandaram num errar ferino. Daí surge o estado pré-humano distinto daquele presente na história sagrada:
[...] para as nações de todo o restante do mundo a questão devia passar-se de outra maneira. Porquanto a raça de Cão e Jafeth devem ter-se dispersado pela grande selva desta terra, num errar ferino de duzentos anos; e assim, vagabundas e solitárias, devem ter produzido os filhos, com uma ferina educação, desnudada de todo o costume humano e privadas de toda a fala humana e, por quanto num estado de animais selvagens. (VICO, 2005, p.65)
Ora, esse primeiro momento prévio, de negação da história sagrada, trata do estado primitivo humano, a saber, o da primeira barbárie. Esse estado é o momento propedêutico da primeira idade a que percorreram todas as nações (gentis). Os bárbaros eram os “primeiros homens, estúpidos, insensatos e horríveis bestiagas” (VICO, 2005, p.211), denominados de bárbaros, pois estavam ausentes de qualquer pensamento racional, sem nenhum temor a qualquer divindade ou aos seus pais. Nesse sentido a barbárie primeira se reporta àqueles primeiros homens de natureza cruel, povos não domesticados pelas leis, que viviam de uma natureza ferina, pois “devem ter andado num errar bestial, porque, ao fugirem das feras (que deviam abundar sobejamente na grande selva da terra) e ao perseguirem as mulheres esquivas e relutantes [...], deviam encontrar-se dispersos por toda a terra” (VICO, 2005, p.160). São aqueles que:
[...] sem qualquer temor de deuses, de pais ou mestres, que esfria o excesso exuberante da idade da idade juvenil-, devem ter aumentado desmesuradamente as carnes e os ossos, crescido vigorosamente robusto e, assim, terem se tornado gigantes. Esta é a ferina educação, e num grau mais feroz daquela em que [...], César e Tácito fundam a causa da gigantesca estatura dos antigos Germanos, como foi a dos Godos. (VICO, 2005, p.206)
Vico sustenta que esta primeira barbárie configura o percurso inicial humano gentílico para que o homem adentrasse nas selvas da terra e resistisse ás forças da natureza. O contato com a natureza, o medo dos fenômenos naturais, levaram tais bestiagas a possuírem “um pavoroso pensamento de uma qualquer divindade” (VICO, 2005, p.180). É a partir de então que os primeiros homens, no seu estado barbárico, iniciam os primeiros passos para sua humanidade. Nesse processo, segundo Vico, o homem passou por um ciclo de natureza, costumes, direitos, estados, línguas e jurisprudência, caraterístico das três idades, a saber: a dos deuses, a dos heróis e a dos homens. Quando se encerram as três idades, a história humana retoma, porém, ao seu início, ou seja, retoma ao seu curso (ricorso), quando os homens voltam para o seu estado bestial. Todavia, no percurso ideal das nações pode acontecer uma segunda barbárie, quando a humanidade chega a retroceder ao seu estado de natureza primitivo e inumano.
Trata-se, portanto, de um retrocesso na história, uma negação das leis fundamentais, seus princípios universais e necessários, que geram, regem e mantem a humanidade civilizada. Vico sustenta que na história humana tal barbárie aconteceu na Idade Média, no declínio do Império Romano. Essa segunda barbárie é chamada de regressada, porque descreve a retomada de alguns elementos da primeira barbárie, porém, no contexto já civilizatório, socializado, formado com suas leis, estados, governos e culturas. Se a barbárie primitiva se situa na fundação da humanidade (ainda no seu estado de irracionalidade, imerso nas paixões, preenchida pelas faculdades pré-reflexivas, com uma qualquer ideia de divindade, e com atos bestiais), na barbárie retornada esses elementos se manifestam novamente:
Regressaram certas espécies de juízos divinos, que foram denominados “purgações canónicas”; demonstramos, acima, que uma espécie de tais juízos, nos tempos bárbaros primeiros, foram os duelos, que, porém, não foram reconhecidos pelos cânones sagrados. Regressaram os latrocínios heroicos; dos quais vimos acima que, tal como os heróis se tinha atribuído a honra de serem chamados “ladrões”, assim foi título de senhoria aquele, que de “corsários”. Regressaram as represarias heroicas, que observamos acima terem durado aos tempos de Bártolo. E porque as guerras dos tempos bárbaros últimos foram como aquelas dos primeiros, todas religiosas, tal como vimos há pouco, regressaram as escravaturas heroicas, que duraram muito tempo entre essas mesmas nações cristãs. (VICO, 2005, p.795)
Assim se sucedeu em Roma, após ter sido assolada pelos bárbaros. Foi o declínio dos princípios metafísicos civilizatório do povo romano. A negação ou deturpação da lei, o voltar para imersão dos sentidos, das paixões bestiais. Daí, na história romana, após a segunda barbárie, aconteceu um novo ciclo, de acordo com a sucessão das três idades, dos três estágios de línguas, de culturas, de educação, de política e governos. Disso resulta o retorno de vários elementos presentes na primeira barbárie, como certas espécies de juízo divino, os latrocínios, as represarias, a tirania das leis e a violência, dentre outras coisas no processo de declínio humano. E desse modo houve o retorno dos feudos divinos, que na primeira barbárie foi a selva que Hercules ateou fogo para o cultivado. Do mesmo modo se deu com os feudos de Roma. Porque sucedeu por toda a parte “as violências, as rapinas, os assassínios, pela suprema ferocidade e arrogância daqueles séculos barbaríssimo; [...] não existindo outro meio eficaz de refrear os homens, desobrigados quer de todas as leis humanas, quer da divina” (VICO, 2005, p.796). Deste retorno, observamos a retomada inicial do curso das coisas humanas e civis conforme os três Estados, a saber, aristocrático, democrático e monárquico.
No entanto, após esse tipo de barbárie, Vico apresentar os riscos de uma terceira barbárie, que decorre do afastamento dos seus princípios fundantes e fundamentais da humanidade. Nesse sentido, ele apresenta a terceira barbárie como sendo pior que a segunda, isto é: a barbárie da reflexão. Trata-se não somente da negação dos princípios da humanidade, no âmbito da educação, da cultura, da ética e da política que rege a civilidade, mas da própria negação das faculdades de base do entendimento humano, pré-reflexivo: o engenho, a imaginação e a fantasia. Além disso, podemos sustentar que trata-se de um excesso de racionalidade que nega a própria existência humana.
[...] uma vez que tais povos, à maneira dos animais, se tinham acostumado a não pensar em mais nada se não nos seus próprios interesses particulares, e cada um tinha atingido o cume das comodidades, ou para melhor dizer, do orgulho, á maneira das feras que, ao serem minimamente contrariadas, se ressentem e se enfurecem, e assim [...], por tudo com obstinada facções e desesperadas guerras civil, passam a fazer das cidades selvas e das selvas covis de homens; e desse modo, ao longo de vários séculos de barbárie, vão-se enferrujar as grosseiras subtilezas dos engenhos maliciosos, que tinham feito deles feras mais imanes com a barbárie da reflexão. (VICO, 2005, p.842)
A intuição desta terceira barbárie é marcada pela frivolidade e pelo descuido em relação aos saberes, culturas e práticas fundamentais à humanidade. Se a barbárie da reflexão ocorrer, os seres humanos desumanizados se tornarão basicamente selvagens, vivendo sob a aparência amável, porém imersos na má fé e ação desumana. Daí, deste estado perigoso, as nações terminarão sucumbindo, vítimas da sua própria debilidade e corrupção. Acontecerão, assim, guerras terríveis contra os inimigos internos e externos. Por sua vez, a civilização decairia e os homens se espalhariam, as cidades cairiam, e sobre as suas ruínas cresceria novamente a floresta. Desse modo, um ciclo se completaria na história e daria início a outro novo.  
II) os três princípios universais e necessários para a Civilidade Humana
Ao tratar do percurso das nações enquanto ciência do mundo civil, Vico apresenta na Ciência Nova (1744) os princípios metafísicos pelos quais a humanidade no seu estado originário, deixou o estado bestial, portanto, barbárico, para se formar, ou se constituir enquanto humana, sociável, civil. O material cronológico das nações está na primeira parte de sua obra. É a partir deste material, com uma abordagem filosófica e filológica, que Vico destaca os princípios pelos quais todas as nações tiveram sua origem, desenvolvimento e formação. Estes princípios são conhecidos por fazerem parte do fazer humano, do seu arbítrio, e de uma realidade nunca antes refletida como ciência: o mundo das nações. Essa realidade, esse saber metafísico-civil promovido indiretamente pela providência divina, portanto, teologia civil, se demonstra como a única possível de ser conhecida, pois é fruto direto da práxis humana:
Agora, uma vez que este mundo de nações foi feito pelos homens, vejamos em que coisas perpetuamente concordam e ainda concordam todos os homens, porque tais coisas poderão fornecer-nos os princípios universais e eternos, tal como devem ser de toda a ciência, sobre os quais surgiram todas as nações e todas se conservam. (VICO, 2005, p172)
Esses princípios fazem parte dos costumes que as nações tiveram em comum, desde a formação das coisas, dos hábitos, da cultura, da educação, das línguas, das leis, dos governos humanos na sua Antiguidade. Esses elementos culturais comuns, e do arbítrio humano, são os instrumentos utilizados para encontrar os princípios da vida civil. Nessa reflexão Vico apresenta os três princípios geradores das nações:
Observamos que todas as nações, [...] se bem que fundadas separadamente, afastadas entre si por imensos espaços de lugares e tempos, conservam estes três costumes humanos: que todas têm alguma religião, todas contraem matrimónio solene, todas sepultam os seus mortos; nem entre as nações, mesmo as selvagens e cruéis, se celebram acções humanas com mais requintadas cerimonias e mais consagradas solenidades do que religiões, matrimónios e sepulturas. (VICO, 2005, p.172-173)
Esses três princípios concordam com a décima terceira máxima, ou dignidade, que considera ideias uniformes de povos desconhecidos como princípio comum de verdade. Portanto, sendo estes os três princípios das nações, eles são os três princípios da Ciência Nova de Vico, e eles devem ser conservados por todas as nações para manter-se como povo humano e como natureza sociável. Do contrário, a negação de tais princípios levaria o ser humano ao seu estado barbárico. Em relação à religião, é importante observar que se trata de uma experiência pré-humana em pelo contato com a natureza o homem teve uma ideia inicial de algo superior, pelo qual ele rearticulou toda a sua existência. A presença da religião na história das nações é confirmada do seguinte modo:
Porque todas as nações crêem numa divindade providente, pelo que se puderam encontrar quatro, e não mais religiões primárias ao longo de todo o decurso dos tempos e por toda a vastidão deste mundo civil: uma dos Hebreus e, portanto, outra dos Cristãos, que acreditaram na divindade de uma mente infinita e livre; a terceira dos gentios, que acreditaram na de vários deuses, imaginados compostos de corpo e de mente livre, pelo que, quando pretendem significar a divindade que rege e conserva o mundo, dizem deos immortales; a quarta e última, dos Maometanos. (VICO, 2005, p.174)
            Em relação ao matrimónio Vico o apresenta como princípio fundante e conservador da sociedade. Segundo a opinião de que haja uniões conjugais sem solenidades de matrimónio Vico sustenta que tal ato na antiguidade foi “censurado por todos os povos, pois, todas celebram religiosamente os matrimónios e por eles definem” (VICO, 2005, p.175). Assim, tais concubinatos são naturalmente repugnados em todas as nações, além de que não foram praticados por alguns senão na sua ultima corrupção, como pelos Persas (VICO, 2005, p.176). O matrimónio se constitui pelo caráter relacional e geração humana, de onde se formou as primeiras comunidades e posteriormente a sociedade civil e política. Por último Vico apresenta à sepultura. Esta faz parte dos costumes de todos os povos. Para fundamenta-la como princípio, Vico faz a seguinte consideração:
Imagine-se um estado ferino em que os cadáveres humanos permaneçam insepultos sobre a terra, a servir de engodo aos corvos e cães; pois deve estar certamente de acordo com este costume bestial não só aquele de ficarem os campos incultos, mas também as cidades desabitadas, e o dos homens, à maneira dos porcos, irem comer as bolotas, apanhadas por entre a podridão dos seus parentes mortos. (VICO, 2005, p.176).
            Disso se fundamenta a necessidade de todos os povos de ter como princípio universal a sepultura, como procedimento da vida humana, do onde se observou os espaços do sepultamento, a memória dos pais, a estabilidade nas propriedades, e etc. Outra colocação referente a este princípio é a questão da imortalidade da alma, que permaneceria errante em torno de seus corpos insepultos. Portanto, na Ciência Nova esses são os três princípios que se fundamentam todas as nações, nos seus costumes e que todas, sem nenhum contato entre si, procederam, por ordem da providência divina, e deixaram o estado bestial. Esses princípios são fundamentais na constituição e conservação de todos os povos, sendo que eles se articulam entre si de tal modo de um influenciar o outro e o próprio percurso das nações, desde seus primeiros momentos de humanidade.
Daí se justifica as três barbáries explanadas por Vico, pois, no âmbito geral, cada barbárie é uma negação da civilidade, sendo que na primeira observamos a negação da racionalidade, da crença numa divindade, uma ausência de lei e sociabilidade; enquanto que a segunda se classifica como uma negação das leis, normas e culturas do status quo em processo de civilização; e a última se intui como a deturpação dos mecanismos ou princípios da manutenção social comum, por uma racionalidade perversa e negação das faculdades sensitivas da mente humana. No que toca à relação entre barbárie e civilidade, é perceptível que a humanidade se rebaixa ao seu estado barbárico quando negam os princípios fundamentais e fundantes de todos os povos. Deste modo Vico justifica e comprova cada princípio. Desses princípios metafísicos Vico apresenta outros princípios que contribuem para que a humanidade subsista, se auto constitua e se mantenha enquanto tal.
III) colocações crítico-reflexivas sobre a Ditadura Militar e a atual crise política a partir da ideia viquiana de Barbárie e Civilidade
Após essa exposição sobre as três barbáries na história das nações, que se classifica como negação dos princípios fundamentais, e dos subsequentes, geradores de humanização, civilização, direito e equidade civil. Agora vamos refletir sobre a situação política no Brasil entre 1964 e 1974. São dez anos demarcados por uma repressão política militar, ações tirânicas que podem ser classificadas como barbárica ou com características semelhantes as barbáries apresentadas no pensamento viquiano. O período da Ditadura é característico de força repressiva e violenta contra os que lutavam pela liberdade, igualdade e equidade de vida, de bens econômicos e bens comuns. Isto é, uma tirania violenta aos setores populacionais que fora denominados ou acusados de “comunistas”. Ora, no período de 1961 acontece o “episódio da renúncia de Jânio Quadro aos nove meses de mandato presidencial, a legalidade foi quebrada e o estamento militar tentou se assenhorar do poder” (MIRANDA, 2008, p.15). A partir de então temos os passos do Golpe no Brasil.
É na ascensão política e hegemonia dos militares pelo poder, que se iniciou na história do Brasil uma repreensão, opressão, violência, tortura e assassinato aos povos brasileiros (políticos), pobres, trabalhadores e militantes. Na obra dos filhos deste solo: mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar, a responsabilidade do Estado (1999), observamos a crueldade com que os líderes políticos e militares encarceraram, torturaram, prenderam e até mataram aqueles que não seguiam o status quo.
Os filhos do solo, nas páginas do livro de Nilmario e Carlos, levantam-se do chão e, clamando por justiça que lhes foi negada, apontam pelas responsabilidades de quantos, durante cerca de vinte anos, prenderam ilicitamente, torturaram e mataram, escudados numa impunidade permitida pela interpretação oficial da Lei de Anistia [...]. A leitura dos 364 casos Dos filhos deste solo aponta, sem dúvida – diante da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, em nada valendo a Lei de Anistia, [...]. (MIRANDA, 2008, p.14)
As explanações desses casos de atrocidade humana destacam a realidade brasileira sobre a égide de dominação de uma camada populacional elitista e tirana, sobre um povo que fora censurado e torturado. Neste aspecto observamos que o militarismo promoveu o Golpe de Abril de 1964 e a Ditadura (LEITÃO, 2013, p.15). A deturpação da lei e manipulação da mesma para garantir a imposição antidemocrática marca esse período barbárico. A falaciosa justificativa era de que na referida época havia “no Brasil uma guerra de fato e de direito e, nessas circunstâncias, não existiriam regras, cabendo aos agentes da repressão atirar primeiro para matar. Era ‘matar ou morrer’” (MIRANDA, 2008, p.23). Nesse viés:
A ditadura eliminou garantias individuais e coletivas, cassou mandatos e direitos, censurou e proibiu, instituiu punições drásticas para seus opositores, mas nunca poderia ter conferido a seus agentes policiais e militares o poder de sequestrar, torturar, matar e promover desaparecimentos forçados (MIRANDA, 2008, p.23).
Tais ações ditatoriais são exemplos de corrupção das leis, uma destruição dos direitos civis e humanos (LEITÃO, 2013, p.161) que na lógica viquiana seria uma negação dos princípios fundamentais da humanidade. Esse tipo de barbárie se aproxima daquelas apresentadas por Vico na história das nações, pois englobam: a tirania das leis de humanidade, a proibição de escrito sobre qualquer ação desumana dos militares, a atrocidade para com membros militantes ou críticos da sociedade civil, isto é, a destruição do gênero humano, e o ceifamento de membros do tecido familiar. A violação dos direitos humanos, isto é, da lei que resguarda a dignidade humana, apresenta elementos característicos de uma barbárie retornada, pois tais ações efetuadas na Ditadura rompem com a estrutura social vigente e implanta um voltar ao liberalismo tirânico sem moral, portanto, ao retorno do estado bestial de violência e morte humana.  
A barbárie que se realizou na Ditadura do Brasil se constituiu com atrocidades multifacetárias e criativas, que são indicadas pelos laudos médicos dos corpos que foram encontrados. Isso foi razão para um desnudamento da falsidade sobre os acidentes ou mortes divulgadas pela mídia e meios de comunicação. “Ao invés de ‘suicídios’ e mortes por atropelamento’, assassinatos sob torturas cruéis. Ao invés de ‘fugas da prisão’, desaparecimento forçados. Ao invés de ‘tiroteios’, quase todos simulados, execuções à queima roupa” (MIRANDA, 2008, p.23). Assim, exemplificamos essa barbárie com as atrocidades que praticaram ao dominicano Frei Tito:
Frei Tito foi torturado durante 40 dias pela equipe do delegado Sérgio Fleury. [...] Torturado durante dois dias, pendurado no pau-de-arara, recebendo choques elétricos na cabeça, nos órgãos genitais, pés, mãos, ouvidos, com socos, pauladas, “telefones”, palmatórias, “corredor polonês”, “cadeira-do-dragão”, queimaduras com cigarros, tudo acompanhado de ameaças e insultos. A certa altura, o capitão Albernaz ordenou-lhe que abrisse a boca para receber a hóstia sagrada, introduzindo-lhe um fio elétrico que lhe queimou a boca [...] (MIRANDA, 2008, p.184).
A Ditadura passou e o Brasil institucionalmente se democratizou, porém, a força abusiva policial-militar, e o sistema político gerador de corrupção e violência não acabaram, apenas perderam as forças e até certo ponto ficaram no anonimato social. Porém, partir de 2015 o Brasil sofreu alteração na sua conjuntura. A crise política, com seu sistema corrupto veio a tona, o setor policial recebeu força e autonomia no governo Dilma para atuar nos casos de corrupção e desvio públicos. Todavia seu objetivo ético não foi realizado, os setores empresariais, institucionais, econômicos e políticos que estavam envolvidos na corrupção, não foram jugados, mas poupados. Enquanto que certo setor militante de esquerda (PT) se tornou alvo de uma rede de lideranças corruptas e fascistas que estavam no poder e nas várias esferas do governo. Nesse contexto de crise política, corrupção e fortificação policial, aconteceu, em 2016 o Impeachment da até então presidente Dilma Rousseff, acusada de cometer crime de irresponsabilidade.
A partir de então entrou em curso uma onda fascista, de tradição ditatorial barbárica, que implantou um “Golpe”. Este tem certa relação com Golpe de 1964. O recente “Golpe” de Estado jurídico midiático parlamentar está negando o Estado de Direito. Agora temos um Golpe que entrou em curso e já seguiu com suas intervenções na vida populacional (principalmente dos mais pobres) e nos movimentos político militantes de esquerda. Vemos seus efeitos nas reformas da educação, nos cortes econômicos de assistência social pública, na reforma trabalhista, no aumento de impostos nos produtos de consumo populacional, no aumento de desemprego, na execução de Marielle Franco Anderson Pedro Gomes, e na injusta prisão do ex-presidente Lula. Tais fatos nos leva a questionar se não estamos diante do risco de uma terceira barbárie (da reflexão), mais sofisticada e vestida disfarçadamente de justiça social e condenação da corrupção personificada. O risco de um Estado de exceção não pode ser descartado no nosso país.
Conclusão
Em suma é perceptível que as três barbáries, no projeto viquiano, são marcadas por suas particularidades, sendo que enquanto na primeira há o predomínio da não civilidade, pois os homens estão em um estado pré-reflexivo, isto é, voltado sobre a força dos sentidos, da ausência de conatos e de qualquer moralidade interna, na segunda barbárie há uma negação das leis, uma espécie de declínio nas normas civilizatórias, um voltar-se sobre as paixões do corpo e uma prática desumana subversiva aos princípios de humanidade, que faz declinar qualquer império. Neste universo se observa que o homem se torna o lobo de si mesmo.
Todavia, a suspeita da terceira barbárie se encontra num estado mais evoluído, quando todos os princípios de humanização e regulação social, como os costumes, as leis, a língua, os governos, a política, a educação são orientados ou instrumentalizados contra a própria humanidade. Assim seria a subversão humana mediada juridicamente pelas leis de regência e conservação social. O destaque de tal barbárie é a racionalidade que se volta contra a sua própria geração humana, pois está pautada nos interesses particulares subversivos, nas formas mais evoluídas de dominação, opressão e destruição humana. Rastros destas três barbáries são encontrados no Brasil, no período da Ditadura Militar.
Além disso, observamos uma intuição de uma terceira barbárie na contemporânea crise política que se passa no Brasil. Sua configuração é mediada pela lei, como imagem de justiça e legalidade constitucional, porém, os fatos e a forma de intervenção política nos quatro poderes, a omissão e suavidade da justiça para com os ricos e poderosos em detrimento da maior camada populacional pobres, só destaca cada vez mais o Estado de Exceção onde se nega o Estado de Direito e a urgente necessidade de apoio das esferas mais debilitadas de nosso país como a educação, a saúde, a moradia e o desemprego. O risco de intensificação da disparidade entre ricos e pobres pode intuitivamente justificado como o resultado dessa barbárie da reflexão que descarta a democracia, o bem comum e o grito dos mais pobres nas capitais, cidades, ruas, praças e periferias de nosso país.
Referências bibliográficas
ARNS, D. P. E. (org). Brasil: nunca mais. Vozes: Petrópolis, 2014.

LEITÃO, R. C.1968 – O grito de uma geração. Eduepb: Campina Grande, 2013.

MIRANDA, N. Dos filhos deste solo: mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar, a responsabilidade do Estado. Boitempo Editorial/Editora Fundação Perseu: São Paulo, 2008.
VICO, G. Autobiografía de Giambattista Vico [1725-1728]. Trad. Esp. Moisés González García y Josep Martínez Bisbal. Madrird: Siglo XXI de España, 1998.

_____. Ciência Nova [1744]. Trad. port. Jorge Vaz de Carvalho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.


[1]  Graduado em Filosofia na Universidade Estadual do Ceará (UECE), discente do curso de Teologia na Faculdade Jesuíta Filosofia e Teologia (FAJE).