sexta-feira, 25 de maio de 2018

DAS BARBÁRIES PARA A CIVILIDADE NA HISTÓRIA DAS NAÇÕES EM GIAMBATTISTA VICO: LUZES PARA REFLEXÃO SOBRE DOIS MOMENTOS DE TENSÃO NO BRASIL.


Comunicação apresentada no XI colóquio vaziano "Democracia e Sociedade: Conquistas e Desafios. Entre os dia 24 e 25 de maio. (comunicação em processo de publicação)
Isaias mendes Barbosa[1]
isaiasredentorista@hotmail.com
RESUMO: A presente comunicação objetiva tratar das barbáries no processo de constituição e civilização humana, na história das nações, segundo o pensamento de Giambattista Vico (1696-1774), na sua mais brilhante obra: a Ciência Nova (1744). Por conseguinte, essa exposição será relacionada com dois pontos históricos de tensão humana no Brasil, a saber, a ditadura militar e a contemporaneidade. Ora, a concepção do “percurso das nações”, enquanto “Ciência da Vida Civil” ou Ciência Humana, é marca inovadora e característica do filósofo napolitano no seu projeto de nova ciência distinta daquela tratada na tradição, isto é, a ciência (metafísica) do mundo natural. Tal história ideal das nações passa por um processo de humanização em três idades que podem se entrelaçar historicamente: a idade dos deuses, a idade dos heróis e a idade dos homens. Porém, cada momento histórico de autoconstituição do ser humano, – pelos seus costumes, línguas, direitos, leis, governos, culturas e mentalidades – passa por duas barbáries (a barbárie dos sentidos, a barbárie da retornada) e o risco iminente de uma terceira barbárie, a da reflexão. Todavia, cada estado de barbárie não é estaque em si, mas aberto, sob a luz da providência divina, como possibilidade para a civilidade, conservação e preservação humana nos seus princípios fundamentais, sem os quais ela não pode subsistir. Assim as três barbáries estão em relação estreita com a civilidade e os princípios metafísicos de existência humanitária, política e civil. Isso nos serve de inspiração para a nossa sucinta e breve reflexão sobre a história e situação social – política do Brasil, entre 1964 e 1974, assim como na situação de crise que passa o país. Tendo como base metodológica uma reflexão analítica e exposição sobre a temática referida, apresentamos as seguintes considerações: i) as três barbáries na Ciência Nova de Giambattista Vico; ii) os três princípios universais e necessários para a civilidade humana; iii) colocações crítico-reflexiva sobra a ditadura Militar e a atual  crise política (um estado de exceção?) a partir da ideia viquiana de barbárie e civilidade. A pesquisa conclui que as três barbáries se definem geralmente como ausência ou negação de civilidade, do mundo criado pela humanidade, o mundo Civil. Elas são um desvio ou negação dos costumes ou princípios metafísicos do humano – religião, matrimónio e sepultura –, e dos demais princípios que se deduzem a partir deles. Porém, cada barbárie é marcada por um processo, ou possibilidade (de retorno) de humanização. A partir disso, refletimos sobre as situações de barbáries que se deram na Ditadura Militar, com certa relação àquela apresentada no pensamento viquiano. Por conseguinte, refletindo sobre alguns fatos e acontecimentos da nossa conjuntura brasileira, destacamos que um certo tipo de barbárie perdura no nosso país, por diversas vias, de modo velado ou descrito como força do ocaso, no âmbito social e político brasileiro. Por fim, em vista das ultimas decisões, ora antiética (Impeachment de Dilma Rousseff), ora inconstitucional (prisão do ex-presidente Lula), dentre outras, destacamos o risco de uma barbárie indicada por Vico: a barbárie da reflexão. Quando o homem utiliza-se da racionalidade e intelecto para fazer mal à humanidade. Quando não há uma sensibilidade para com a sociedade e o bem comum, mas a paulatina desumanização e destruição de civilização humana.    
PALAVRAS – CHAVE: Percurso das nações; Metafísica civil; Barbáries; Reflexão; Brasil.
Introdução
          O projeto viquiano de pensar e descrever a história humana enquanto Ciência é uma das propostas mais geniais deste pensador que estava à frente de seu tempo. Tal projeto é uma resposta para o problema da ciência (metafísica) do mundo natural que, segundo Vico, tenta, sem êxito, apresentar os princípios universais e necessários de onde se fundamenta a realidade do cosmo. A propedêutica da proposta viquiana, sobre o mundo humano, está na afirmação de que a única realidade conhecida para o ser humano é aquela que ele mesmo cria, isto é, o mundo humano, o mundo das nações. Daí podemos observar uma história ideal de todos os povos, uma ciência do “mundo civil”. Porém, o curso das nações começa na origem de todos os povos, na distinção entre dois tipos de história: a história sagrada e a história profana. É pela negação daquela que o homem decai na sua humanidade e, no meio da selva, sem nenhuma lei, racionalidade, divindade, que o governe, se torna bárbaro (1º ponto).
          O contato com o mundo natural e a providência divina faz esses bárbaros terem uma ideia de Deus e adentrar na primeira idade, a saber, a dos deuses. Daí começa um processo de criação de si, de humanização que se faz pelos três princípios da civilidade: a religião, o matrimónio e a sepultura (2º ponto). O processo de civilidade segue mais duas idades: a dos heróis e a dos homens. Porém, pode acontecer que tal processo seja interrompido, quando, retorna no tempo as características da primeira barbárie. Assim acontece a barbárie retornada, enquanto que uma suposta terceira barbárie (da reflexão) é intuída como o grande risco de negação e destruição humana, num tempo posterior, em que a sociedade está no seu estado humano e civil equilibrado. Ora, tal base filosófica nos é útil para refletir sobre a barbárie que se deu no Brasil no período da Ditatura Militar e na atual crise que passamos, pois suspeitamos que contemporaneamente corremos o risco de uma terceira barbárie que se relaciona diretamente com o atual estado de exceção (3º ponto).
I) as três barbáries na Ciência Nova de Giambattista Vico
O findar do século XVII e o início do século XVIII é um período transitivo de mudanças paradigmáticas no universo da educação, da cultura, da religião e da política napolitana. Essa viragem cultural tem como preocupação os diversos saberes da época e da vida civil, o destaque está na novidade de um método cartesiano – física cartesiana –(VICO, 1998, p.102), que predomina como condição de saber verdadeiro, e a exaltação das ciências geométricas e instrumentais em detrimento dos saberes relacionados aos studios humanitatis: a história, a retórica, as letras, a literatura e a poesia. É nesse universo conflitivo que Giambattista Vico (1668 – 1744) desenvolve, de modo revolucionário, o projeto de uma nova Ciência. Não aquela ciência que segue o método matemático para descrever a realidade humana, não mais aquela ciência do mundo natural, a quem só Deus conhece porque é o autor que a fez (VICO, 2005, p.172), mas a ciência das nações, a ciência do mundo civil, pois esta foi feita pela própria humanidade, por força da Providência divina. Na obra Ciência Nova (1744) Vico trata de um saber enciclopédico e metafísico sobre a humanidade, desde sua originalidade necessária, comum e útil. Sua proposta de Ciência da Vida Civil considera todos os saberes da tradição literária antiga, renascentista e moderna, desprezados em sua época, que são úteis, enquanto material de pesquisa, para conhecer o único mundo construído pelo arbítrio e fazer humano, o mundo civil.
Tais saberes descrevem as nações nos seus costumes, nas suas línguas, nos seus governos originários e gestativos. No resgate dessa literatura, pela abordagem filosófica e filológica, Vico descreve a história ideal das nações, desde seus princípios metafísicos do mundo civil. Porém, para categorizar tal ciência histórica, o autor defende que o percurso das nações passa por um ciclo histórico elítico, conforme a “divisão das três idades que os Egípcios diziam terem transcorrido antes do seu mundo, a dos deuses, a dos heróis e a dos homens” (VICO, 2005, p.667). A primeira idade é precedida, na história pelo povo que recusou a tradição adâmica – do povo hebreu – e negando a religião de seus pais, e os princípios de humanidade, se debandaram num errar ferino. Daí surge o estado pré-humano distinto daquele presente na história sagrada:
[...] para as nações de todo o restante do mundo a questão devia passar-se de outra maneira. Porquanto a raça de Cão e Jafeth devem ter-se dispersado pela grande selva desta terra, num errar ferino de duzentos anos; e assim, vagabundas e solitárias, devem ter produzido os filhos, com uma ferina educação, desnudada de todo o costume humano e privadas de toda a fala humana e, por quanto num estado de animais selvagens. (VICO, 2005, p.65)
Ora, esse primeiro momento prévio, de negação da história sagrada, trata do estado primitivo humano, a saber, o da primeira barbárie. Esse estado é o momento propedêutico da primeira idade a que percorreram todas as nações (gentis). Os bárbaros eram os “primeiros homens, estúpidos, insensatos e horríveis bestiagas” (VICO, 2005, p.211), denominados de bárbaros, pois estavam ausentes de qualquer pensamento racional, sem nenhum temor a qualquer divindade ou aos seus pais. Nesse sentido a barbárie primeira se reporta àqueles primeiros homens de natureza cruel, povos não domesticados pelas leis, que viviam de uma natureza ferina, pois “devem ter andado num errar bestial, porque, ao fugirem das feras (que deviam abundar sobejamente na grande selva da terra) e ao perseguirem as mulheres esquivas e relutantes [...], deviam encontrar-se dispersos por toda a terra” (VICO, 2005, p.160). São aqueles que:
[...] sem qualquer temor de deuses, de pais ou mestres, que esfria o excesso exuberante da idade da idade juvenil-, devem ter aumentado desmesuradamente as carnes e os ossos, crescido vigorosamente robusto e, assim, terem se tornado gigantes. Esta é a ferina educação, e num grau mais feroz daquela em que [...], César e Tácito fundam a causa da gigantesca estatura dos antigos Germanos, como foi a dos Godos. (VICO, 2005, p.206)
Vico sustenta que esta primeira barbárie configura o percurso inicial humano gentílico para que o homem adentrasse nas selvas da terra e resistisse ás forças da natureza. O contato com a natureza, o medo dos fenômenos naturais, levaram tais bestiagas a possuírem “um pavoroso pensamento de uma qualquer divindade” (VICO, 2005, p.180). É a partir de então que os primeiros homens, no seu estado barbárico, iniciam os primeiros passos para sua humanidade. Nesse processo, segundo Vico, o homem passou por um ciclo de natureza, costumes, direitos, estados, línguas e jurisprudência, caraterístico das três idades, a saber: a dos deuses, a dos heróis e a dos homens. Quando se encerram as três idades, a história humana retoma, porém, ao seu início, ou seja, retoma ao seu curso (ricorso), quando os homens voltam para o seu estado bestial. Todavia, no percurso ideal das nações pode acontecer uma segunda barbárie, quando a humanidade chega a retroceder ao seu estado de natureza primitivo e inumano.
Trata-se, portanto, de um retrocesso na história, uma negação das leis fundamentais, seus princípios universais e necessários, que geram, regem e mantem a humanidade civilizada. Vico sustenta que na história humana tal barbárie aconteceu na Idade Média, no declínio do Império Romano. Essa segunda barbárie é chamada de regressada, porque descreve a retomada de alguns elementos da primeira barbárie, porém, no contexto já civilizatório, socializado, formado com suas leis, estados, governos e culturas. Se a barbárie primitiva se situa na fundação da humanidade (ainda no seu estado de irracionalidade, imerso nas paixões, preenchida pelas faculdades pré-reflexivas, com uma qualquer ideia de divindade, e com atos bestiais), na barbárie retornada esses elementos se manifestam novamente:
Regressaram certas espécies de juízos divinos, que foram denominados “purgações canónicas”; demonstramos, acima, que uma espécie de tais juízos, nos tempos bárbaros primeiros, foram os duelos, que, porém, não foram reconhecidos pelos cânones sagrados. Regressaram os latrocínios heroicos; dos quais vimos acima que, tal como os heróis se tinha atribuído a honra de serem chamados “ladrões”, assim foi título de senhoria aquele, que de “corsários”. Regressaram as represarias heroicas, que observamos acima terem durado aos tempos de Bártolo. E porque as guerras dos tempos bárbaros últimos foram como aquelas dos primeiros, todas religiosas, tal como vimos há pouco, regressaram as escravaturas heroicas, que duraram muito tempo entre essas mesmas nações cristãs. (VICO, 2005, p.795)
Assim se sucedeu em Roma, após ter sido assolada pelos bárbaros. Foi o declínio dos princípios metafísicos civilizatório do povo romano. A negação ou deturpação da lei, o voltar para imersão dos sentidos, das paixões bestiais. Daí, na história romana, após a segunda barbárie, aconteceu um novo ciclo, de acordo com a sucessão das três idades, dos três estágios de línguas, de culturas, de educação, de política e governos. Disso resulta o retorno de vários elementos presentes na primeira barbárie, como certas espécies de juízo divino, os latrocínios, as represarias, a tirania das leis e a violência, dentre outras coisas no processo de declínio humano. E desse modo houve o retorno dos feudos divinos, que na primeira barbárie foi a selva que Hercules ateou fogo para o cultivado. Do mesmo modo se deu com os feudos de Roma. Porque sucedeu por toda a parte “as violências, as rapinas, os assassínios, pela suprema ferocidade e arrogância daqueles séculos barbaríssimo; [...] não existindo outro meio eficaz de refrear os homens, desobrigados quer de todas as leis humanas, quer da divina” (VICO, 2005, p.796). Deste retorno, observamos a retomada inicial do curso das coisas humanas e civis conforme os três Estados, a saber, aristocrático, democrático e monárquico.
No entanto, após esse tipo de barbárie, Vico apresentar os riscos de uma terceira barbárie, que decorre do afastamento dos seus princípios fundantes e fundamentais da humanidade. Nesse sentido, ele apresenta a terceira barbárie como sendo pior que a segunda, isto é: a barbárie da reflexão. Trata-se não somente da negação dos princípios da humanidade, no âmbito da educação, da cultura, da ética e da política que rege a civilidade, mas da própria negação das faculdades de base do entendimento humano, pré-reflexivo: o engenho, a imaginação e a fantasia. Além disso, podemos sustentar que trata-se de um excesso de racionalidade que nega a própria existência humana.
[...] uma vez que tais povos, à maneira dos animais, se tinham acostumado a não pensar em mais nada se não nos seus próprios interesses particulares, e cada um tinha atingido o cume das comodidades, ou para melhor dizer, do orgulho, á maneira das feras que, ao serem minimamente contrariadas, se ressentem e se enfurecem, e assim [...], por tudo com obstinada facções e desesperadas guerras civil, passam a fazer das cidades selvas e das selvas covis de homens; e desse modo, ao longo de vários séculos de barbárie, vão-se enferrujar as grosseiras subtilezas dos engenhos maliciosos, que tinham feito deles feras mais imanes com a barbárie da reflexão. (VICO, 2005, p.842)
A intuição desta terceira barbárie é marcada pela frivolidade e pelo descuido em relação aos saberes, culturas e práticas fundamentais à humanidade. Se a barbárie da reflexão ocorrer, os seres humanos desumanizados se tornarão basicamente selvagens, vivendo sob a aparência amável, porém imersos na má fé e ação desumana. Daí, deste estado perigoso, as nações terminarão sucumbindo, vítimas da sua própria debilidade e corrupção. Acontecerão, assim, guerras terríveis contra os inimigos internos e externos. Por sua vez, a civilização decairia e os homens se espalhariam, as cidades cairiam, e sobre as suas ruínas cresceria novamente a floresta. Desse modo, um ciclo se completaria na história e daria início a outro novo.  
II) os três princípios universais e necessários para a Civilidade Humana
Ao tratar do percurso das nações enquanto ciência do mundo civil, Vico apresenta na Ciência Nova (1744) os princípios metafísicos pelos quais a humanidade no seu estado originário, deixou o estado bestial, portanto, barbárico, para se formar, ou se constituir enquanto humana, sociável, civil. O material cronológico das nações está na primeira parte de sua obra. É a partir deste material, com uma abordagem filosófica e filológica, que Vico destaca os princípios pelos quais todas as nações tiveram sua origem, desenvolvimento e formação. Estes princípios são conhecidos por fazerem parte do fazer humano, do seu arbítrio, e de uma realidade nunca antes refletida como ciência: o mundo das nações. Essa realidade, esse saber metafísico-civil promovido indiretamente pela providência divina, portanto, teologia civil, se demonstra como a única possível de ser conhecida, pois é fruto direto da práxis humana:
Agora, uma vez que este mundo de nações foi feito pelos homens, vejamos em que coisas perpetuamente concordam e ainda concordam todos os homens, porque tais coisas poderão fornecer-nos os princípios universais e eternos, tal como devem ser de toda a ciência, sobre os quais surgiram todas as nações e todas se conservam. (VICO, 2005, p172)
Esses princípios fazem parte dos costumes que as nações tiveram em comum, desde a formação das coisas, dos hábitos, da cultura, da educação, das línguas, das leis, dos governos humanos na sua Antiguidade. Esses elementos culturais comuns, e do arbítrio humano, são os instrumentos utilizados para encontrar os princípios da vida civil. Nessa reflexão Vico apresenta os três princípios geradores das nações:
Observamos que todas as nações, [...] se bem que fundadas separadamente, afastadas entre si por imensos espaços de lugares e tempos, conservam estes três costumes humanos: que todas têm alguma religião, todas contraem matrimónio solene, todas sepultam os seus mortos; nem entre as nações, mesmo as selvagens e cruéis, se celebram acções humanas com mais requintadas cerimonias e mais consagradas solenidades do que religiões, matrimónios e sepulturas. (VICO, 2005, p.172-173)
Esses três princípios concordam com a décima terceira máxima, ou dignidade, que considera ideias uniformes de povos desconhecidos como princípio comum de verdade. Portanto, sendo estes os três princípios das nações, eles são os três princípios da Ciência Nova de Vico, e eles devem ser conservados por todas as nações para manter-se como povo humano e como natureza sociável. Do contrário, a negação de tais princípios levaria o ser humano ao seu estado barbárico. Em relação à religião, é importante observar que se trata de uma experiência pré-humana em pelo contato com a natureza o homem teve uma ideia inicial de algo superior, pelo qual ele rearticulou toda a sua existência. A presença da religião na história das nações é confirmada do seguinte modo:
Porque todas as nações crêem numa divindade providente, pelo que se puderam encontrar quatro, e não mais religiões primárias ao longo de todo o decurso dos tempos e por toda a vastidão deste mundo civil: uma dos Hebreus e, portanto, outra dos Cristãos, que acreditaram na divindade de uma mente infinita e livre; a terceira dos gentios, que acreditaram na de vários deuses, imaginados compostos de corpo e de mente livre, pelo que, quando pretendem significar a divindade que rege e conserva o mundo, dizem deos immortales; a quarta e última, dos Maometanos. (VICO, 2005, p.174)
            Em relação ao matrimónio Vico o apresenta como princípio fundante e conservador da sociedade. Segundo a opinião de que haja uniões conjugais sem solenidades de matrimónio Vico sustenta que tal ato na antiguidade foi “censurado por todos os povos, pois, todas celebram religiosamente os matrimónios e por eles definem” (VICO, 2005, p.175). Assim, tais concubinatos são naturalmente repugnados em todas as nações, além de que não foram praticados por alguns senão na sua ultima corrupção, como pelos Persas (VICO, 2005, p.176). O matrimónio se constitui pelo caráter relacional e geração humana, de onde se formou as primeiras comunidades e posteriormente a sociedade civil e política. Por último Vico apresenta à sepultura. Esta faz parte dos costumes de todos os povos. Para fundamenta-la como princípio, Vico faz a seguinte consideração:
Imagine-se um estado ferino em que os cadáveres humanos permaneçam insepultos sobre a terra, a servir de engodo aos corvos e cães; pois deve estar certamente de acordo com este costume bestial não só aquele de ficarem os campos incultos, mas também as cidades desabitadas, e o dos homens, à maneira dos porcos, irem comer as bolotas, apanhadas por entre a podridão dos seus parentes mortos. (VICO, 2005, p.176).
            Disso se fundamenta a necessidade de todos os povos de ter como princípio universal a sepultura, como procedimento da vida humana, do onde se observou os espaços do sepultamento, a memória dos pais, a estabilidade nas propriedades, e etc. Outra colocação referente a este princípio é a questão da imortalidade da alma, que permaneceria errante em torno de seus corpos insepultos. Portanto, na Ciência Nova esses são os três princípios que se fundamentam todas as nações, nos seus costumes e que todas, sem nenhum contato entre si, procederam, por ordem da providência divina, e deixaram o estado bestial. Esses princípios são fundamentais na constituição e conservação de todos os povos, sendo que eles se articulam entre si de tal modo de um influenciar o outro e o próprio percurso das nações, desde seus primeiros momentos de humanidade.
Daí se justifica as três barbáries explanadas por Vico, pois, no âmbito geral, cada barbárie é uma negação da civilidade, sendo que na primeira observamos a negação da racionalidade, da crença numa divindade, uma ausência de lei e sociabilidade; enquanto que a segunda se classifica como uma negação das leis, normas e culturas do status quo em processo de civilização; e a última se intui como a deturpação dos mecanismos ou princípios da manutenção social comum, por uma racionalidade perversa e negação das faculdades sensitivas da mente humana. No que toca à relação entre barbárie e civilidade, é perceptível que a humanidade se rebaixa ao seu estado barbárico quando negam os princípios fundamentais e fundantes de todos os povos. Deste modo Vico justifica e comprova cada princípio. Desses princípios metafísicos Vico apresenta outros princípios que contribuem para que a humanidade subsista, se auto constitua e se mantenha enquanto tal.
III) colocações crítico-reflexivas sobre a Ditadura Militar e a atual crise política a partir da ideia viquiana de Barbárie e Civilidade
Após essa exposição sobre as três barbáries na história das nações, que se classifica como negação dos princípios fundamentais, e dos subsequentes, geradores de humanização, civilização, direito e equidade civil. Agora vamos refletir sobre a situação política no Brasil entre 1964 e 1974. São dez anos demarcados por uma repressão política militar, ações tirânicas que podem ser classificadas como barbárica ou com características semelhantes as barbáries apresentadas no pensamento viquiano. O período da Ditadura é característico de força repressiva e violenta contra os que lutavam pela liberdade, igualdade e equidade de vida, de bens econômicos e bens comuns. Isto é, uma tirania violenta aos setores populacionais que fora denominados ou acusados de “comunistas”. Ora, no período de 1961 acontece o “episódio da renúncia de Jânio Quadro aos nove meses de mandato presidencial, a legalidade foi quebrada e o estamento militar tentou se assenhorar do poder” (MIRANDA, 2008, p.15). A partir de então temos os passos do Golpe no Brasil.
É na ascensão política e hegemonia dos militares pelo poder, que se iniciou na história do Brasil uma repreensão, opressão, violência, tortura e assassinato aos povos brasileiros (políticos), pobres, trabalhadores e militantes. Na obra dos filhos deste solo: mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar, a responsabilidade do Estado (1999), observamos a crueldade com que os líderes políticos e militares encarceraram, torturaram, prenderam e até mataram aqueles que não seguiam o status quo.
Os filhos do solo, nas páginas do livro de Nilmario e Carlos, levantam-se do chão e, clamando por justiça que lhes foi negada, apontam pelas responsabilidades de quantos, durante cerca de vinte anos, prenderam ilicitamente, torturaram e mataram, escudados numa impunidade permitida pela interpretação oficial da Lei de Anistia [...]. A leitura dos 364 casos Dos filhos deste solo aponta, sem dúvida – diante da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, em nada valendo a Lei de Anistia, [...]. (MIRANDA, 2008, p.14)
As explanações desses casos de atrocidade humana destacam a realidade brasileira sobre a égide de dominação de uma camada populacional elitista e tirana, sobre um povo que fora censurado e torturado. Neste aspecto observamos que o militarismo promoveu o Golpe de Abril de 1964 e a Ditadura (LEITÃO, 2013, p.15). A deturpação da lei e manipulação da mesma para garantir a imposição antidemocrática marca esse período barbárico. A falaciosa justificativa era de que na referida época havia “no Brasil uma guerra de fato e de direito e, nessas circunstâncias, não existiriam regras, cabendo aos agentes da repressão atirar primeiro para matar. Era ‘matar ou morrer’” (MIRANDA, 2008, p.23). Nesse viés:
A ditadura eliminou garantias individuais e coletivas, cassou mandatos e direitos, censurou e proibiu, instituiu punições drásticas para seus opositores, mas nunca poderia ter conferido a seus agentes policiais e militares o poder de sequestrar, torturar, matar e promover desaparecimentos forçados (MIRANDA, 2008, p.23).
Tais ações ditatoriais são exemplos de corrupção das leis, uma destruição dos direitos civis e humanos (LEITÃO, 2013, p.161) que na lógica viquiana seria uma negação dos princípios fundamentais da humanidade. Esse tipo de barbárie se aproxima daquelas apresentadas por Vico na história das nações, pois englobam: a tirania das leis de humanidade, a proibição de escrito sobre qualquer ação desumana dos militares, a atrocidade para com membros militantes ou críticos da sociedade civil, isto é, a destruição do gênero humano, e o ceifamento de membros do tecido familiar. A violação dos direitos humanos, isto é, da lei que resguarda a dignidade humana, apresenta elementos característicos de uma barbárie retornada, pois tais ações efetuadas na Ditadura rompem com a estrutura social vigente e implanta um voltar ao liberalismo tirânico sem moral, portanto, ao retorno do estado bestial de violência e morte humana.  
A barbárie que se realizou na Ditadura do Brasil se constituiu com atrocidades multifacetárias e criativas, que são indicadas pelos laudos médicos dos corpos que foram encontrados. Isso foi razão para um desnudamento da falsidade sobre os acidentes ou mortes divulgadas pela mídia e meios de comunicação. “Ao invés de ‘suicídios’ e mortes por atropelamento’, assassinatos sob torturas cruéis. Ao invés de ‘fugas da prisão’, desaparecimento forçados. Ao invés de ‘tiroteios’, quase todos simulados, execuções à queima roupa” (MIRANDA, 2008, p.23). Assim, exemplificamos essa barbárie com as atrocidades que praticaram ao dominicano Frei Tito:
Frei Tito foi torturado durante 40 dias pela equipe do delegado Sérgio Fleury. [...] Torturado durante dois dias, pendurado no pau-de-arara, recebendo choques elétricos na cabeça, nos órgãos genitais, pés, mãos, ouvidos, com socos, pauladas, “telefones”, palmatórias, “corredor polonês”, “cadeira-do-dragão”, queimaduras com cigarros, tudo acompanhado de ameaças e insultos. A certa altura, o capitão Albernaz ordenou-lhe que abrisse a boca para receber a hóstia sagrada, introduzindo-lhe um fio elétrico que lhe queimou a boca [...] (MIRANDA, 2008, p.184).
A Ditadura passou e o Brasil institucionalmente se democratizou, porém, a força abusiva policial-militar, e o sistema político gerador de corrupção e violência não acabaram, apenas perderam as forças e até certo ponto ficaram no anonimato social. Porém, partir de 2015 o Brasil sofreu alteração na sua conjuntura. A crise política, com seu sistema corrupto veio a tona, o setor policial recebeu força e autonomia no governo Dilma para atuar nos casos de corrupção e desvio públicos. Todavia seu objetivo ético não foi realizado, os setores empresariais, institucionais, econômicos e políticos que estavam envolvidos na corrupção, não foram jugados, mas poupados. Enquanto que certo setor militante de esquerda (PT) se tornou alvo de uma rede de lideranças corruptas e fascistas que estavam no poder e nas várias esferas do governo. Nesse contexto de crise política, corrupção e fortificação policial, aconteceu, em 2016 o Impeachment da até então presidente Dilma Rousseff, acusada de cometer crime de irresponsabilidade.
A partir de então entrou em curso uma onda fascista, de tradição ditatorial barbárica, que implantou um “Golpe”. Este tem certa relação com Golpe de 1964. O recente “Golpe” de Estado jurídico midiático parlamentar está negando o Estado de Direito. Agora temos um Golpe que entrou em curso e já seguiu com suas intervenções na vida populacional (principalmente dos mais pobres) e nos movimentos político militantes de esquerda. Vemos seus efeitos nas reformas da educação, nos cortes econômicos de assistência social pública, na reforma trabalhista, no aumento de impostos nos produtos de consumo populacional, no aumento de desemprego, na execução de Marielle Franco Anderson Pedro Gomes, e na injusta prisão do ex-presidente Lula. Tais fatos nos leva a questionar se não estamos diante do risco de uma terceira barbárie (da reflexão), mais sofisticada e vestida disfarçadamente de justiça social e condenação da corrupção personificada. O risco de um Estado de exceção não pode ser descartado no nosso país.
Conclusão
Em suma é perceptível que as três barbáries, no projeto viquiano, são marcadas por suas particularidades, sendo que enquanto na primeira há o predomínio da não civilidade, pois os homens estão em um estado pré-reflexivo, isto é, voltado sobre a força dos sentidos, da ausência de conatos e de qualquer moralidade interna, na segunda barbárie há uma negação das leis, uma espécie de declínio nas normas civilizatórias, um voltar-se sobre as paixões do corpo e uma prática desumana subversiva aos princípios de humanidade, que faz declinar qualquer império. Neste universo se observa que o homem se torna o lobo de si mesmo.
Todavia, a suspeita da terceira barbárie se encontra num estado mais evoluído, quando todos os princípios de humanização e regulação social, como os costumes, as leis, a língua, os governos, a política, a educação são orientados ou instrumentalizados contra a própria humanidade. Assim seria a subversão humana mediada juridicamente pelas leis de regência e conservação social. O destaque de tal barbárie é a racionalidade que se volta contra a sua própria geração humana, pois está pautada nos interesses particulares subversivos, nas formas mais evoluídas de dominação, opressão e destruição humana. Rastros destas três barbáries são encontrados no Brasil, no período da Ditadura Militar.
Além disso, observamos uma intuição de uma terceira barbárie na contemporânea crise política que se passa no Brasil. Sua configuração é mediada pela lei, como imagem de justiça e legalidade constitucional, porém, os fatos e a forma de intervenção política nos quatro poderes, a omissão e suavidade da justiça para com os ricos e poderosos em detrimento da maior camada populacional pobres, só destaca cada vez mais o Estado de Exceção onde se nega o Estado de Direito e a urgente necessidade de apoio das esferas mais debilitadas de nosso país como a educação, a saúde, a moradia e o desemprego. O risco de intensificação da disparidade entre ricos e pobres pode intuitivamente justificado como o resultado dessa barbárie da reflexão que descarta a democracia, o bem comum e o grito dos mais pobres nas capitais, cidades, ruas, praças e periferias de nosso país.
Referências bibliográficas
ARNS, D. P. E. (org). Brasil: nunca mais. Vozes: Petrópolis, 2014.

LEITÃO, R. C.1968 – O grito de uma geração. Eduepb: Campina Grande, 2013.

MIRANDA, N. Dos filhos deste solo: mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar, a responsabilidade do Estado. Boitempo Editorial/Editora Fundação Perseu: São Paulo, 2008.
VICO, G. Autobiografía de Giambattista Vico [1725-1728]. Trad. Esp. Moisés González García y Josep Martínez Bisbal. Madrird: Siglo XXI de España, 1998.

_____. Ciência Nova [1744]. Trad. port. Jorge Vaz de Carvalho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.


[1]  Graduado em Filosofia na Universidade Estadual do Ceará (UECE), discente do curso de Teologia na Faculdade Jesuíta Filosofia e Teologia (FAJE). 

Nenhum comentário:

Postar um comentário