É comum falarmos sobre Santo Afonso em três dimensões,
a saber: a clerical, a episcopal e a moral. Porém, pouco ou quase nada se fala
sobre Santo Afonso numa perspectiva profética. Diante dessa lacuna, o presente
texto pretende expor um olhar profético sobre tal santo para desvelar esse
aspecto pouco explorado. Porém, para justificar corretamente essa perspectiva
partimos, no primeiro tópico, de alguns pontos que classificam e delineiam de
modo geral o profetismo bíblico, tendo como destaque os escritos proféticos que
se remetem ao(s) profeta(s) Isaias. A partir de então destacamos alguns postos
– chave da vida, ação e mensagem afonsiana que sinalizam, concordam e
apresenta certa continuidade com o profetismo bíblico. Para além de uma simples
justificação e exposição do profetismo afonsiano, sustentamos a continuidade de
tal dimensão na contemporaneidade a partir dos documentos finais do 25º Capítulo
Geral.
O fenômeno profético nos escritos
bíblicos e os textos proféticos dos três Isaias.
Etimologicamente a palavra “profeta” provém do hebraico
Nabí e do grego Profétes. Ela se refere às personalidades de destaque no movimento
profético clássico bíblico e extra – bíblico. No profetismo bíblico o profeta é
caracterizado por quatro pontos: a) ser
interpelado por Deus para orientar o povo, como ocorreu com Abraão (Ex
3,10). Neste aspecto o profeta é um vocacionado de Deus para uma missão; b) o profeta é aquele que estar nas ruas,
inserido na realidade pública e social, nas periferias existenciais. Os
oráculos de Jeremias contra Joaquim, a casa real e as nações (Jr 21-25), denotam
sua inserção na realidade de Israel, no séc.VI, quando o império babilônico
dominou Israel e deportou seus líderes; c) o
profeta passa por perseguição, prisão e até morte, devido à mensagem que
anuncia. Em 1Rs 18,4 vemos que Jezabel, a esposa do rei Acab, mandou massacrar
os profetas de Iahweh; d) o profeta
possui um carisma que transcende o tempo histórico. Deus chama homens (Abraão,
Samuel, Ezequiel...) e mulheres (Débora, Hulda...) para serem a ‘boca de Deus’.
O profeta extrapola as classes sociais, as barreiras religiosas e políticas; e)
a ação profética visa realizar a vontade
de Deus, retomar a fidelidade da “Aliança” e direcionar o povo para Deus;
f) o profeta é uma pessoa da Palavra.
Ele transmite-a por diversos meios.
Dito
isto, podemos delinear alguns pontos proféticos importantes que marcam os
textos isaianos. Segundo os historiadores e biblistas o livro de Isaias (1-66)
é atribuído a três Isaias (ou grupos proféticos): o Proto-Isaias, o Dêutero-Isaias
e o Trito-Isaias. O primeiro se situa
no tempo que vai de Amós até o exílio, enquanto que os dois últimos se situam
no pós-exílio.
No
Proto-Isaias (Is 1-39) o profeta se
situa no séc. VIII a.C. e participa de dois momentos fortes: 1) o momento em
que os assírios entram em ação na Síria-Palestina e querem atacar a Israel, a
Judá e a circunvizinhança, 2) e o momento em que o rei de Jerusalém (Faceia, um
rei golpista) quer confrontar contra o rei da Assíria (Teglat-Falasar III)
(ASURMENDI, 1988, p.42). Mas para que seu grupo se torne mais forte, ele terá
que fazer coligação com o Rei de Judá, Acaz, ou destituí-lo do trono.
Deste
modo Acaz se ver diante do perigo de ser atacado pelos assírios, ou ser
destituído do poder pelo rei de Israel. Acaz é pressionado a fazer coligação
política com um dos grupos poderosos (Is 7). Neste percurso vemos – como
primeiro ponto do profeta Isaias – a sua postura diante da realidade. O profeta
vai orientar Acaz a confiar somente na promessa de Deus e não fazer a coligação
com nenhum dos dois. O discernimento do
confiar em Deus é acompanhado pela profecia
da vinda de um menino que iria salvaguardar o trono e continuar o reinado de
Davi. “Isaias crer na fidelidade de Deus e, em um momento especialmente
crítico, lembra ao rei a promessa que é a origem de sua realeza” (Ibid., p.46).
O
segundo ponto da profecia de Isaias está relacionado com a ética e o culto (Is 1, 10-20) de Israel e Judá, ou melhor dizendo:
contra Sodoma e Gomorra. A religião bíblica tem uma marca ética. Porém, no
contexto referido e fé o povo de Deus passa pela supervalorização do culto
desvinculada do seu aspecto ético – social. A postura do profeta se situa na
crítica ao culto, vazio de sentido, isto é, fora da luta pela justiça e pelo
direito do povo. Por esse desvinculo Isaias denuncia que os líderes religiosos
e políticos, e suas mulheres, não observam a justiça que deveria provir do
culto: desprezam os órfãos, as viúvas e os pobres. Assim profetiza Isaias:
“Ouvi a palavra de Iahweh [...] Estou farto de holocaustos de carneiros e da
gordura de bezerro. [...] Basta de trazer-me ofertas vãs [...]. Tirai de mim as
vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem!” (Is 1,
10-17).
No
Dêutero – Isaias (Is 40-55) nos situamos no séc.VI a.C., período em que o
Império Babilônico está em decadência e o Império Persa se torna uma potência.
Se com as invasões inimigas parte significativa de Israel foi deportada para
Babilônia, isso gerou, no povo, uma sensação de que Deus lhes abandonara. Se
Israel estava fora da terra natal e sob o domínio Babilônico era porque Deus
estava castigando-os. Porém com a presença de Ciro, o rei persa, o povo inicia
uma expectativa de libertação da Babilônia e Retorno para casa natal. Nesse
contexto de transição – de prisão e abandono para a libertação e esperança – o profeta
desenvolve uma teologia marcada por uma
mensagem profética consoladora: “Consolai, consolai meu povo, diz vosso
Deus” (Is 40,1). Na teologia profética o
tema da misericórdia aparece e segue a mesma dinâmica do tema da redenção.
A
Redenção também se relaciona com o Goel
tratado no Antigo testamento. Trata-se do personagem do direito veterotestamentário. O Goel
tinha a tarefa de “tomar as dores do seu protegido e fazê-lo recuperar a liberdade,
reaver a propriedade ou, em caso de morte, vinga-lo. De modo especial, os mais
fragilizados da sociedade deveria ser protegido, de forma a não sofrerem abusos
e serem aviltados de sua dignidade” (VITÓRIO, 2016, p.14-15). Na profecia isaiana (Is 41, 14) Deus assume
essa identidade de Goel-redentor para o resgate do povo de Israel que
estava no exílio: “Não temas, vermezinho de Jacó, e vós, pobres pessoas de
Israel. Eu mesmo te ajudarei, oráculo de Iahweh; o teu redentor é o Santo de
Israel”.
Outro
ponto que se assenta na profecia do Dêutero-Isaias é a dinâmica do servo sofredor (Is 42,l-9; 49,1-7; 50,4-11;
52,13-53,12). No contexto do exílio e libertação de Israel a temática do servo
sofredor se relaciona com a fidelidade a Deus para a plena libertação, salvação
e realização humana. Nesta dinâmica vemos o
valor redentor que há no sofrimento. Essa dinâmica tem relevância na
mensagem cristã em que se o grão de trigo não morrer, não poderá produzir fruto.
No sentido que as dores existências feitas pela opção de Deus e sua mensagem
tem um valor santificador e contribuinte para a redenção humana.
Outro
ponto da teologia profética isaiana é o endurecimento do coração (Is 6,10; 29,
9-11). O profeta sabe que a sua missão não será fácil. Porém, o profeta também
é um anunciador da esperança e da alegria.
Mas não se trata de qualquer alegria: mas da alegria, que mesmo passando pela
dor, progride incessantemente para um futuro melhor. O próprio nome Messias já é uma abertura para a esperança.
Os textos do Dêutero- Isaias (Is 7, 3; 8, 23b -9, 6; e 11, 1-9) são da
esperança.
O
Trito-Isaias (Is 56-66) se encaixa na temática profética da justiça. A proposta divina é: “Observai o direito e praticais
a justiça, porque minha salvação está prestes a chegar e minha justiça, a se
revelar” (Is 56,1). Mas não se trata da
justiça pela justiça, mas de uma justiça
que liberta e gera felicidade aos que estão oprimidos e excluídos: “O
espírito do Senhor Iahweh está sobre mim, porque Iahweh me ungiu; enviou-me a
anunciar a boa nova aos pobres; a cura os quebrantados de coração e proclamar a
liberdade aos cativos, a libertação aos que estão presos, e proclamar um ano
aceitável a Iahweh” (Is 61,1-2).
Os pontos – chave da vida, ação e mensagem
afonsiana na perspectiva profética.
Após apresentarmos um esboço sintético sobre o
profetismo e a figura emblemática do profeta e da mensagem isaiana (s), podemos
observar alguns pontos – chaves que identificam a vida, a ação e a mensagem
afonsiana como profética. Primeiramente consideramos que a infância religiosa
afonsiana é marcada profeticamente pela
experiência de Deus. A educação de Santo Afonso tem essa marca espiritual
profunda mediada pela presença de sua mãe Ana Catarina Cavaliere: “Foi sua
própria mãe quem assumiu inteiramente essa responsabilidade, e exclusivamente” (REY-MERMET,
1984, p. 47). Além desta, o Pe. Tomás Pagano, dentre outros, foram pessoas que
contribuíram para a maturidade espiritual de Santo Afonso.
Tais mediações ajudaram Santo Afonso na sua
espiritualidade e experiência de Deus. Com doze anos, Afonso é chamado, por um
amigo, para jogar. Tal menino perde várias partidas e chega a ofender Afonso.
Após o conflito este vai parar num parque a contemplar a imagem de Nossa
Senhora: “Ele a traz sempre consigo. [...] Está tão absorto em sua oração, tão
surdo ao mundo sensível, que é preciso um momento para que o barulho à sua
volta o retire de seu êxtase” (Ibid.,
p. 53). Os sinais proféticos dessa experiência se encontra na própria vocação
ao chamado de Deus: “viu-se de repente envolto por uma grande luz, o
edifício lhe pareceu completamente abalado, e seu coração ouviu uma voz,
distintamente: – Deixe o mundo e entregue-se a mim. Afonso se detém,
interiormente aterrado: – Meu Deus, diz
chorando, resisti demais a vossa graça. Eis-me aqui: fazei de mim o que
quiserdes...”(Ibid., p. 133).
Outro elemento profético afonsiano se apresenta no
seu itinerário de vida, que aos poucos vai incutindo em Afonso uma especial atenção profética aos últimos
de Nápoles: os desassistidos sociocultural e espiritualmente. Sua vida,
inicialmente delineada pela nobreza generosa, é marcada processualmente por um
ritmo de vida em adesão aos prediletos de Jesus. “Esse aristocrata [, Afonso,] em
quem habitará a angustia dos pobres seguiu por instinto o ritmo de trabalho dos
pobres” (Ibid., p.97) (Acréscimo
nosso). O sinal profético da aproximação
com os excluídos é perceptível quando ele vai trabalhar no hospital dos incuráveis. Na Congregação da Visitação Afonso vai
“tocar com suas mãos, todas as semanas, durante anos, o homem no chão,
despojado, esfoliado, que geme na fossa, à beira do caminho do rico. Durante
oito anos vai ‘se inclinar’ sobre ele, com amor, [...]. Este pobre, este
crucificado, é o Cristo” (Ibid., p.
116). “Aos pobres, dedica-se ainda nosso advogado numa outra confraria com a
qual os Ligórios se acham muito comprometidos: a de Santa Maria da
Misericórdia” (Ibid., p. 117). A
experiência com os pobres cabreiros em Scala é um dos mais altos pontos que
demarcam fortemente a proximidade profética de Santo Afonso com os últimos.
“Afonso só tem olhos, ouvidos e língua para os habitantes daqueles lugares
afastados; sua decisão será de consagrar sua própria à sua ajuda” (Ibid., p.229).
Outro elemento profético em Santo Afonso é a inspiração bíblica (Palavra de Deus) pela
qual ele fundou a Congregação e desenvolveu o carisma redentorista. O texto
chave é de Lc (4, 16-9) em que Jesus inicia o seu itinerário querigmático
público e começa fazendo referência ao profeta Isaias (61, 1-2): “O
espírito do Senhor Iahweh está sobre mim, porque Iahweh me ungiu; enviou-me a
anunciar a boa nova aos pobres; a cura os quebrantados de coração e proclamar a
liberdade aos cativos, a libertação aos que estão presos, e proclamar um ano
aceitável a Iahweh” (Is 61,1-2). Essa passagem explicita a razão profética
redentora, esperançosa e libertadora da Congregação Redentorista. Nela está a
retomada profética a luz da Revelação, encarnação, morte, ressurreição e
eucaristização de Jesus Cristo: os inúmeros meios pelo qual Jesus demonstrou a
amor inesgotável do Pai para conosco, e de modo especial, para com os pobres.
Por
último, encontramos em Santo Afonso elementos que fazem referência aos textos
proféticos isaianos. O mais significativo deles está na aproximação e equivalência entre o termo “Goel” e “Redentor”, como
explicitado anteriormente no primeiro tópico. Outro termo de ação equivalente á
a “justiça”. Podemos conjeturar que tais palavras se relacionam diretamente com
a vida de Santo Afonso. O termo “Goel” é propriamente do âmbito jurídico e
Santo Afonso aos 16 anos se torna advogado. A
luta pela justiça (sobretudo de Deus) perpassa o ideal afonsiano: “Afinal
de contas, as virtudes que constituem o advogado são a ciência, a aplicação
(diligenza), a verdade, a fidelidade e a justiça” (Ibid., p.104). Santo Afonso atua nos tribunais ao mesmo tempo que
também se aproxima dos pobres e excluídos. Há uma relação nisso, que não cabe
aqui aprofundar. Porém, se Afonso
abandona os tribunais, isso não implica deixar de lados tais princípios
jurídicos como a justiça e a goelança (redentora), mas observá-los sobre uma
experiência mais profunda e essencial, isto é, no âmbito da experiência com
Deus e da prática humana, no âmbito da moral. Pois a história confirma uma
busca mais aprofunda da justiça e da dinâmica do “Goel” fora do âmbito
jurídico: trata-se do anuncio da Redenção, da justiça e da misericórdia para
com a causa dos pobres e excluídos da sociedade da presença de Deus. Tais
pontos são continuados e se delineiam com mais clareza, e sob outro contexto,
na contemporaneidade com os Missionários Redentoristas.
Documentos
finais do 25º Capítulo Geral: continuação profética.
Após
destacarmos alguns elementos que marcam o profetismo afonsiano, podemos dizer
que, na contemporaneidade, tal inspiração permeia os trabalhos dos Missionários
Redentoristas. Principalmente nos documentos finais do 25º capítulo Geral (DF25ºCG)
cujo o tema do sexênio foi: “Testemunhas do Redentor: Solidários para a Missão
em um mundo ferido”. Uma das motivações desses documentos é fazer com que
sejamos “‘testemunhas do Evangelho da graça de Deus’ (Const. 7). E profetas da
redenção abundante que Deus oferece ao mundo” (DF25ºCG, 2016, p. 8).
O
primeiro elemento importante é a compreensão geral da realidade contemporânea a
qual somos interpelados profeticamente: “Vivemos em um mundo ferido pelo
pecado, pela violência, pelas injustiças e, hoje mais fortemente, pelo medo. A
degradação ambiental feriu nosso planeta, e são os pobres os que mais
dramaticamente sentem o impacto dessa degradação” (Ibid., p.7).
O
segundo se reporta aos espaços de atuação profética ao qual somos desafiados: “a
ir para as periferias do mundo. [...] abandonemos nossa comodidade e eliminemos
tudo que nos impede de ser livres e proféticos” (Ibid., p.14). Para descentralização do nosso egoísmo é preciso converter e “revitalizar nossa
vida consagrada” para o serviço a Deus e aos irmãos. A motivação é que
“Sejamos profecia para nosso mundo com nosso estilo de vida, com nossa denúncia
das estruturas de pecado, e com o anúncio da copiosa redenção em Jesus Cristo,
que liberta e dignifica o ser humano” (Ibid.,
p.18). A Reestruturação interna e para a Missão (Ibd., p. 22-24) faz parte do novo suspiro profético que estamos
tendo para ser de modo original, porém renovado, profetas dos novos tempos.
Sem
mais delongas: a práxis profética se situa no âmbito da urgência da
solidariedade, na dinâmica de um só corpo missionário (Ibid., p.16), em missão compartilhada com toda a família
redentorista (Ibid., p.17).
“Aceitemos o desafio de viver e construir solidariedade: solidariedade com
nosso mundo, com a criação e com os homens e mulheres de nosso tempo;
solidariedade com os menos favorecidos da nossa sociedade” (Ibid., p. 17).
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