Isaias Mendes
Barbosa.
A Vida Religiosa (VR) iniciou-se, nas raízes da história humana,
por uma inquietação e busca; uma falta e necessidade de completude; uma
insatisfação e desejo profundo de nova vida até então não trilhada. É a
experiência e o anseio da nova criatura (2Cor 5,17) que quis emergir e brota de
dentro do humano à imagem e em comunhão com o Sagrado. Foi o
descontentamento com o modo cultural, social, religioso-cívico de viver de
épocas remotas (nas proximidades do século IV) e, ao mesmo tempo, uma sede por
novas e radicais experiências com e para Deus, renovadamente na luz da fé, que
fizeram com que homens e mulheres (os ascetas, os cenobitas, os mártires
e as virgens, os padres do deserto, os cônegos regulares e as ordens
mendicantes, os frades menores, as ordens dos pregadores, as congregações
clericais e laicais, femininas e masculinas, os institutos seculares...) até
hoje trilhassem caminhos inusitados, inéditos e esperançosos, de entrega
radical e particular a Deus na Vida Religiosa Consagrada (VRC).
É de comum acordo, para Contemporaneidade, que o período bastante significativo
na história da Igreja e da Vida Religiosa Consagrada foi o Concílio Vaticano
II. Nos documentos do Concílio, especificadamente no VI capítulo da
constituição Lumen Gentium (Cf. CONCÍLIO VATICANO, 2007, p 222-231)
e no decreto Perfectae
Caritatis (Ibidem, p.
301-313), pode-se observar as significativas declarações e
orientações que mudaram o itinerário da Vida Religiosa Consagrada até os tempos
atuais. Tal evento é tão significativo que o Papa Francisco o retoma, na Carta
Apostólica às Pessoas
Consagradas (2014, p. 8), afirmando que: “[...] graças ao Concílio, de
fato, a vida consagrada empreendeu um fecundo caminho renovado, o qual, com
suas luzes e sombras, foi um tempo de graça marcado pela presença do Espírito”.
Pode-se dizer que esse tempo de mudaças positivas, de graças divinas, na Vida Religiosa
Pós-conciliar, foi marcado por autos e baixos, prós e contras. Esse extremismo
provocou duas direções perniciosas que dificultaram a renovação, o caminhar e o
progresso da Vida Religiosa, a saber, a) uma orientação que estava a favor das
mudanças imediatamente e sem escrúpulo de discernimento moderado, b) e outra
que estava contra qualquer mudança, preferindo se sustentar exclusivamente na
segurança das estruturas antigas e dos meios tradicionais de vida consagrada. Entre
os antagonismos extremistas, pode-se considerar que o meio termo, o equilíbrio
e a equidade foram sempre os mais razoáveis, valioso e melhores caminhos
trilhados na VRC. Em meio a tais mudanças positivas e negativas que ainda hoje se
repercute nesse itinerário religioso, pontua-se alguns elementos reflexivos considerados
relevantes para a identidade, a dignidade, o caminhar e a finalidade da Vida
Religiosa Consagrada, e algumas questões para tal seguimento.
Se no Concílio se afirmou que a santidade era para todos, isto é,
nas diversas profissões e formas de vida (Cf. CONCÍLIO VATICANO, 2007, p. 223), tal
declaração, apesar de ter acarretado reações diversas na mentalidade dos (as)
religiosos (as) da época, não diminuiu o valor e a importância da VRC tanto para
Igreja, a qual ela faz parte, como para a Humanidade, a qual ela dá testemunho evangélico
e exemplo de santidade (Ibidem, p 222). Em razão da dignidade da Vida Religiosa,
“as diversas famílias religiosas desenvolveram-se, tanto para o proveito de
seus membros como de todo o corpo de Cristo” (Ibidem, p.227). E de uma forma distinta,
especial e radial, a VRC constituiu, e ainda se constitui um “entrega[r]-se
inteiramente a Deus amado acima de tudo, ligando-se a ele e a seu serviço de
maneira nova e toda especial” (Ibidem, p.228). Para destacar sua importância em
meios aos diversos modos de vida e santidade o Concílio afirmou que:
A vida religiosa imita e representa para
sempre na Igreja, de maneira mais direta, a forma de vida adotada pelo Filho de
Deus quando veio ao mundo, cumprindo a vontade do Pai e que ele mesmo propôs aos
discípulos que o queria seguir. Manifesta, de maneira toda especial, as
supremas exigências do reino de Deus, que está acima de todas as coisas
terrestres. Demonstra enfim, a todos os homens, a força superior do reino de
Cristo e o poder infinito do Espírito Santo, que atua admiravelmente na Igreja
(Ibidem, p. 229).
Para uma reflexão mais coerente sobre a caminhada religiosa, se
observou que a herança da tradição Antiga- clássica, grega e neoplatônica- cristianizada
incutiu na Idade Média uma visão ideal cristã de busca pela “perfeição”, essa
herança perdurou na Vida Religiosa durante muito tempo (quem sabe até hoje?).
Isso se apresenta na Lumen Gentium quando se
afirmou sobre as famílias religiosas do seguinte modo: “Essas famílias proporcionam
a seus membros um apoio estável, um modo de vida firme, caminho já bastante experimentado para a busca da perfeição [...]”
(Ibidem, p.228, grifo nosso). Porém, tal afirmativa “caminho experimentado para
a busca da perfeição” é um erro, isto é, um ideal ilusório. Está mais que claro,
nos tempos atuais, que a perfeição em si é algo impossível para o ser humano. A
História da Igreja é prova de que tal escrúpulo pela “perfeição” só trousse
problemas inumeráveis para o progresso, maturidade e revitalização da VRC. Neste
sentido, como solução para um renovado seguimento religioso, pode-se dá ênfase
assertiva àquilo que aparece nas entrelinhas do próprio documento, a saber,
“[...] o amor para com Deus e para com o próximo [...]” (Ibidem, p. 229). Essa
afirmativa esquecida, mas já presente na tradição dos primeiros religiosos
(monges), é essencial para a identidade, caminho e missão mais radical da VR. Sobre
essa postura, o Teólogo Missionário Redentorista Pe. Lourenço, na A Teologia da Vida Consagrada, afirma:
O projeto original da vida consagrada no
século quarto é tão simples que chega a ser chocante. É tão evangélico que
revela como esquecemos o essencial, indo atrás de tantas coisas secundárias com
nossas estruturas. Os Padres do deserto, e mais tarde as primeiras comunidades
religiosas, somente queriam uma coisa: viver a aliança do seu batismo numa
forma radical. Mais nada! E qual é a essência dessa aliança do batismo? Ela
fala de amor: amor a Deus de “todo o coração, com toda a sua alma, com todo o
seu entendimento e com toda a sua força”(Dt 6, 4-9; Mc 12,28-30). [...] A
segunda parte é que queremos amar ao próximo de uma forma radical (Mc 12,31)
(LOURENÇO, 1999, p.18-19).
Outro ponto, no percurso religioso, que se poderia destacar como erros
de caminhada foram às posturas unilaterais que se tomou, como o aspecto
estritamente vertical da espiritualidade e missão da VRC. A tradição medieval e
até moderna, nos seus primeiros séculos, persistiu muito na busca da santidade
e salvação pela via estritamente espiritual, muitas vezes, sem a colaboração da
comunidade religiosa e sem se considerar o seu aspecto humanitário. Isso foi
problemático. Por outro lado no final da Modernidade, até os tempos atuais, se
considerou radicalmete o aspecto humanitário da VRC, pelo aprofundamento e
abertura às novas ciências humanas que surgiram, como a sociologia e a
psicologia. A limitação de postura em relação a este aspecto humanitário foi a
restrição do humano em detrimento do aspecto espiritual e transcendente que
confugurou parte da natureza religiosa e humana. Neste sentido o problema de
tais posturas unilaterais é à exclusividade e exageros, que ora valoriza um
aspecto em detrimento do outro. O seguimento de Cristo Jesus (100% humano e
divino) nos atesta a melhor forma de viver a vida religiosa, pelo sinal da CRUZ.
Nela se observa o entrelaçamento entre dois pontos: o vertical e horizontal. O
valor pelo aspecto espiritual, de fé e transcendental, e uma integração
harmônica com o aspecto humanitário e suas limitações, constituem o caminhos
mais plausível, necessário, renovador e progressivo para a VRC.
Uma orientação iluminante e essencial para nosso tempo, que é
indicada para VRC, é “uma volta constante às fontes de toda a vida cristã, à
inspiração original de cada um dos institutos religiosos e à sua adaptação às
condições dos tempos que mudaram” (CONCÍLIO VATICANO, 2007, p. 302). A retomada
das fontes originárias de cada Instituto possibilita para os (as) religisos
(as) um reavivamento e consciência da sua própria história. Segundo acentua
sobre isso, o Papa Francisco: tal percurso ajuda a “manter viva a identidade e
também robustecer a unidade da família e o sentido de pertença dos seus
membros” (FRANCISCO, Papa. 2014, p. 8). Não se trata, portanto, de uma
arqueologia, mas de uma retomada dos elementos essenciais do carisma e o
encontro de inspirações para as novas realidades contemporâneas. Outro ponto a
considerar é uma renovação espiritual como elemento chave da VRC. “As
adaptações às necessidades do tempo podem não resultar em nada, se não forem
animadas por uma renovação espiritual, que deve ser considerada primordial em
relação a tudo mais” (CONCÍLIO VATICANO, 2007, p. 303).
A reestruturação é algo que precisa se revisto na caminhada da
VRC. É importante fazer um discernimento seguro e comunitário das estruturas utilizadas
no modo de vida e missão religiosa. Algumas coisas, métodos e instrumentos de
evangelização, não respondem mais aos tempos atuais. Todavia, não se trata de
desconsiderar toda a estrutura, mas somente aquilo que não propicia o processo
e progresso do carisma e não responde com testemunho profético aos tempos
atuais.
O modo de viver, orar e agir será aquele
que melhor convenha às condições atuais, físicas e psíquicas de seus membros,
de acordo com a índole e a natureza de cada instituto, as necessidades
apostólicas, as exigências culturais e as circunstâncias sociais e econômicas;
isso em toda parte, mas, de modo especial, nas missões (Ibidem.).
Sabe-se que: pelos conselhos evangélicos a vida religiosa está
ordenada a fim de que todos os seus membros sigam Cristo e se unam a Deus
(Ibidem, p.303). Tais votos são meios desse seguimento radical, porém, pode-se
observar que os conselhos evangélicos não estão desvinculados de outros fatores
fundamentais na própria vida cristã e na sua interação e testemunho profético na
sociedade. O que a tradição anterior ao concílio Vaticano II observou sobre os
conselhos evangélicos não respondeu definitivamente as questões surgidas na
Modernidade e Contemporaneidade. E no pós-Concilio, salvo progressos
significativos, teve-se grandes dificuldades para ressignificar os novos
horizontes e radicalidades dos votos.
É importante perceber que se teve aprofundamento em relação aos
votos, no radical seguimento de Cristo e a sua doação total para o Reino. Isso
foi de inspiração magnífica. Porém, faltou e ainda falta até certo ponto, uma maturidade
e abertura para com outros elementos essenciais da Vida Religiosa como, a vida
de fraternidade, a comunhão com a referida comunidade e a amizade religiosa. A
fraternidade na VR é o coração da Igreja. Segundo Giuseppe Colombero (2003, p. 9), sustenta:
[...] é sobre esse aspecto da vida
religiosa que se assenta concretamente a sua autenticidade e credibilidade. Mas
é nessa área também que repousa a alternativa de sermos felizes ou infelizes,
de fruirmos o sentimento prazeroso de ter feito a escolha certa, entrando num
instituto religioso, ou de ter cometido um grande erro. Há escolhas na vida
sobre as quais jogamos realmente tudo.
A comunidade é o lugar decisivo para a vida religiosa. “Quem
escolhe a vida consagrada decide viver com outros, seus semelhantes, numa
comunidade. Como consequência, crescer na vida espiritual implica também
crescer no modo de estar com os outros [...]” (Ibidem, p.11). A própria
Santíssima Trindade é exemplar para se viver na a dinâmica da ‘comunhão’ em
comunidade.
Todavia outro fator que auxilia não só a maturidade dos votos,
como a castidade, mas também a integração e realização na própria vida pessoal
e comunitária religiosa, enquanto entrega e doação de si ao projeto do Reino, é
a amizade na comunidade e até entre religiosos (as) . Isso se observa como
fundamental na própria experiência de Cristo que quis seus discípulos juntos de
si como amigos (Jo 15, 15). Este elemento é de suma importância na sustentação
e testemunho da Vida Religiosa. Portanto,
[...] há a
necessidade de cultivar amizades profundas e afetuosas com nossos coirmãos na
comunidade religiosa e apostólica. A maioria já experimentou como essas
amizades são preciosas. Há muita riqueza e realização humana nesses
relacionamentos, em que a intimidade é até muito maior do que com nossos
próprios familiares. Amamos e somos amados no contexto comunitário, que realiza
toda a nossa sexualidade humana e espiritual (LOURENÇO, 1999, p.180).
É importante percebermos que tais elementos citados só têm a
contribuir para maturidade e radicalidade da opção de vida do (a) consagrado
(a). Atualmente poderia se observar com alegria que as outras formas de vida
cristã, a saber, laical e eclesiástica, podem contribuir muito para a vida
religiosa, pois até certo ponto a caminhada religiosa não está distante ou
separada das outras formas de vida. Pelo contrário, a VR se frutifica, apresenta
ao mundo sua identidade específica e expande seu horizonte de radicalidade à
Jesus Cristo, na medida em que ela se insere e se compromete com a realidade do
diferente e do distinto, de modo profético. Não se trata, portanto, de uma
perda de identidade, mas de uma caminhada fraterna naquilo que toca o comum das
diversas opções de vida, desafios e missões evangelizadoras. Um discernimento
aprofundado e maduro, um diálogo transparente, a um equilíbrio para os limites
da vida religiosa sempre é necessário para a caminhada e radicalidade do
compromisso batismal e dos votos evangélicos.
Pode-se observar que no percurso da vida religiosa, após o Concílio
Vaticano II, houve alguns percalços no seguimento da VRC. Até certo tempo, tanto
o ativismo missionário e apostólico, assim como, após os escândalos da Igreja,
uma busca por seguranças nas estruturas fechadas da Igreja, um reducionismo
religioso ao aspecto contemplativo e exclusivamente espiritual, foram formas de
Vida Religiosa Consagrada que trouxeram problemas, frustações, contra
testemunho profético e até desistências lamentáveis. A moderação diante dos
exageros de vida é um caminho que até os tempos atuais contribui para a
observância do essencial, original e fundamental da VRC.
O último ponto a considerar no caminhar da VRC é a questão da
formação preparatória. É evidente que não se tem bons (boas) religiosos (as),
com um índice maduro de capacidade, sem se promover uma boa, qualificada e
digna formação. Nesse aspecto é preciso
observar se o processo formativo, com suas estruturas, está auxiliando na
radicalidade e maturidade da VRC. Segundo o documento de Aparecida afirma sobre
isso:
A realidade atual exige de nós maior
atenção aos projetos de formação dos Seminários, pois os jovens são vítimas da
influência negativa da cultura pós-moderna, especialmente dos meios de
comunicação, trazendo consigo a fragmentação da personalidade, a incapacidade
de assumir compromissos definitivos, a ausência de maturidade humana, o
enfraquecimento da identidade espiritual, entre outros, que dificultam o
processo de formação de autênticos discípulos e missionários. (DOCUMENTO DE
APARECIDA, 2007, p.145.).
Diante de lacunas que se pode encontrar atualmente e até futuramente
na Vida Religiosa, se faz necessário cada vez mais um projeto formativo
integral: “humano, espiritual, intelectual e pastoral, centrado em Jesus Cristo
Bom Pastor” (Ibidem, p.146). E atualmente poderia se considera como necessária
uma compreensão sobre a realidade estrutural, política e social, do país onde
se situa a vida e atividade religiosa. No caso do Brasil, atualmente, se faz
necessário uma compreensão e maturidade nesse sentido. Tais elementos contribuem para situar a VR na
sua resposta profética e radical ao Reino de Deus.
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