Artigo comunicado no Colóquio de Teologia e Pastoral, nos "50 anos de Medellín: de Medellín a Francisco" entre os dias 07 e 09 de maio. Texto em processo de publicação.
Autor: Isaias Mendes
Barbosa[1]
RESUMO:
A presente comunicação apresenta a relação intrínseca entre os temas ou elementos
teológicos presente na obra Conclusões da
Conferência de Medellín e aqueles explanados, sustentados e apresentados
pelo Papa Francisco nas obras Carta Circular Ás Pessoas Consagradas (2014),
Misericordiae Vutus
(2015), Evangelii Gaudium e Laudato Si’: sobre o cuidado da casa
comum (2015), dentre outros documentos como apoio. Partindo de uma hermenêutica
argumentativa sobre a relação entre tais documentos, conforme a temática
proposta, apesentamos as seguintes questões: i) algumas pontuações teológicas
características e específicas da América Latina na Conferência de Medellín e ii)
algumas pontuações teológicas da Conferência de Medellín que foram, até certo
ponto, retomadas ou desenvolvidas por Francisco. Nas Conclusões de Medellín
pontuamos como predominante, na América Latina, a hermenêutica teológica a
partir do método (indutivo) que parte da realidade; a opção preferencial pelos
pobres; a busca pela justiça e pela paz; a inspiração bíblica; a prevalência do
aspecto teológico pastoral e a denúncia da idolatria do dinheiro, no aspecto da
economia e dignidade, dentre outras coisas. Em estreita relação com isso, está às
pontuações teológicas e pastorais apresentadas por Francisco nos seus variados documentos.
Concluímos que tal personalidade pontifícia se apresenta como um referencial
cristão que continua e desenvolve revolucionariamente as pontuações teológicas
explanadas na Conferência. Além disso, observa-se nele uma luz e esperança para
a Igreja Católica e sociedade contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE:
Medellín; Papa Francisco; Continuidade.
Introdução
A
Conferência de Medellín não pode ser pensada sem uma retomada ao Concílio
Vaticano II. Pois este foi a porta de abertura para o desenvolvimento de uma
teologia original na América Latina. Teologia esta que foi se moldando após
Medellín. Neste evento observamos os primeiros passos de uma teologia que se
libertava das amarras da teologia europeia colonial e assumia um novo caráter
criativo, revolucionário e libertário.
Vemos
os traços de tal teologia nos documentos de Medellín. Não que as Conclusões da Conferência de
Medellín tenham sido classificadas como uma obra estruturada
e reflexiva de uma nova teologia (fundamental, sistemática), pois esta não era
a sua pretensão. Ao contrário de um manual de teologia, as Conclusões são o resultado de uma visão pastoral que
tenta responder aos sinais e desafios do seu tempo de modo criativo e
espiritualmente responsável, assumindo o compromisso com a realidade desigual,
de exclusão e injusta da América Latina. É sobre esse foco que abstraímos os
elementos, termos ou características principais que marcaram e definiram
especificadamente a teologia latino-americana. Se este momento é caracterizado
por uma intensificação de ruptura do pré-concilio, ele resgatou as raízes mais
originais, lúcidas e fundamentais da fé cristã. Observamos isso,
especificadamente e com mais propriedade teológica, nos documentos do Papa
Francisco.
Ele
surpreendentemente é uma síntese mais profunda e desenvolvida do Concílio
Vaticano II e de Medellín. Seus documentos resgatam os elementos principais da
teologia latino-americana, a saber: a análise crítica social, a transformação
evangélica da mesma, a opção pelos pobres, a busca pela paz, a crítica á
economia, a luta pela justiça e a inspiração evangélica. Tais pontuações são
expressadas em Francisco com uma criatividade e maturidade inigualável. Isso o
classifica como um sinal e inspiração para o povo latino americano nas suas
lutas e desafios.
Algumas pontuações teológicas características e
específicas da América Latina na Conferência de Medellín
Para
falar de Medellín é preciso retornar a metade do século XX, quando aconteceu o
Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). Isso porque tal evento se
constituiu como inspiração, luz, para a história singular da América Latina[2]. A
motivação da Conferência foi o Concílio, pois “Em busca da fidelidade ao
Espírito, ao concluir o Vat.II, Mons. Manuel Larraín, em nome dos bispos
latino-americanos, pediu à S.S. Paulo VI que convocasse a segunda conferencia
geral do episcopado latino-americano” (OLIVEIRA, 1992, p.105). Em vista dessa inspiração, observamos que duas
pontuações foram fundamentais, no Concílio, para compreendermos a razão da
Conferência de Medellín ter apresentado uma posição teológica distinta do que
vinha na tradição da Igreja na Europa: 1) O Concílio motivou toda a Igreja ao aggiornamento criativo da mensagem
cristã a partir de uma profundidade e inspiração evangélica reveladora e
querigmática; 2) O Concílio foi uma abertura dialogal para o mundo moderno que
dava seus passos autônomos[3]. Esse
dois pontos deu abertura para que a América Latina pudesse dar os passos de uma
teologia própria, portanto, não mais pautada a partir das “iluminações”
dedutivas e dogmáticas da fé, mas da própria realidade contextual histórica que
passava. Foi nessa dinâmica de abertura dialogal para o mundo e de retomada
evangélico escriturística, em relação com as ciências sociais (história e
sociologia), que a Conferência de Medellín se tornou um marco histórico
relevante na América Latina.
Essa
nova postura foi de ruptura para o que havia na tradição até antes do concílio.
Podemos observar que Medellín intensificou essa ruptura, dando novos passos
para um novo modo de perceber, pensar e teologizar a fé cristã. Na relação
entre o pré-concilio e Medellín pós-conciliar destacamos essas novas
demarcações em que atua a teologia latino-americana: a) de uma teologia moral
de caráter tomista-aristotélica-escolástica para uma nova forma criativa de
pensar teológico; b) do abandono de um rigorismo perfeccionista, ou moral
laxista, para a abertura ao aspecto mais equitativo e contextual da vida
cristã; c) de uma transição da heteronomia da consciência e prática humana para
a autonomia da mesma; d) da troca dos silogismos dedutivos e abstratos como
fundamento da teologia moral, pelo “sinais dos tempos” e pela Palavra revelada
(Jesus Cristo) como base inspiradora para a vida cristã. Desses pressupostos
podemos compreender os elementos ou termos fundamentais que perpassa a teologia
da América Latina em Medellín.
A
Conferência de Medellín teve como objetivo eclesial compreender a missão e
desafio da Igreja em um continente particular e de uma realidade específica.
Desse norte podemos abstrair seus elementos principais. Não podemos descrever sobre
a teologia, enquanto estrutura teorética e elaborada, nos documentos de
Medellín, pois não se trata de um manual de teologia, mas destacamos os
elementos, termos ou conteúdos presentes nas Conclusões da Conferência de Medellín[4] (CCM) que nos
apresentam o pano de fundo da teologia da América Latina nos seus primeiros
passos de gestação original.
A
primeira questão elementar que apresentamos está no método teológico. Não era
mais o dedutivo, mas o indutivo. Partia da reflexão sobre a realidade, para
depois propor caminhos pastorais. É o “ver-julgar-agir”. Medellín segue esse
método. De fato, na Introdução às
conclusões de Medellín, os bispos exprimem essa nova ótica nestes termos:
Não podemos deixar de interpretar
este gigantesco esforço por uma rápida transformação e desenvolvimento como
evidente sinal da presença do Espírito que conduz a história dos homens e dos
povos para sua vocação. Não podemos deixar de descobrir nesta vontade, [...] os
vestígios da imagem de Deus no homem, como um poderoso dinamismo. [...] Nós,
cristãos, não podemos, com efeito, deixar de pressentir a presença de Deus que
quer salvar o homem todo, alma e corpo. [...] Assim como outrora Israel, o
Antigo Povo, sentia a presença salvífica de Deus quando o libertava da opressão
do Egito, [...] assim também nós, o novo Povo de Deus, não podemos deixar de
sentir seu passo que salva, quando se dá o “verdadeiro desenvolvimento”
[...](CCM, n.4-6, p.38).
O
segundo elemento é a teleologia do método. O método indutivo implica uma práxis
transformadora. As palavras introdutórias da Conferência tem relevância efetiva
e pastoral no caráter de orientação da teologia latino-americana: “Não basta,
certamente, refletir, conseguir mais clarividência e falar. É necessário agir.
A hora atual não deixou de ser a hora da palavra, mas já se tornou, com
dramática urgência, a hora da ação” (CCM, n.3, p.38).
O
terceiro aspecto dessa teologia está no “espaço teológico”. Não mais partia
apenas de silogismos ou de um pressuposto dedutivo das escrituras, mas da
própria realidade contextual histórica. A Conferência levou a cabo tal
orientação ao descrever pontualmente a situação a que se encontrava a maioria
do povo latino-americano:
As diversas formas de
marginalização, socioeconômicas, políticas, culturais, raciais, religiosas,
tanto nas zonas urbanas como nas rurais. Desigualdade excessiva entre as
classes sociais, especialmente, embora não de forma exclusiva, naqueles países
que se caracterizam por um acentuado bi-classismo: poucos têm muito (cultura,
riqueza, poder, prestígio) enquanto muitos nada têm. [..] Frustrações
crescentes: o fenômeno universal das expectativas crescentes assume na América
Latina uma dimensão particularmente agressiva. [...] Formas de opressão de
grupos e setores dominantes [...] (CCM, n.2-5, p.59-60).
Tal
conjuntura social é a base se onde se situa a experiência humana
latino-americana. Em outras palavras, o momento histórico se caracterizou “por
uma situação de subdesenvolvimento, revelada por fenômenos maciços de
marginalidade, alienação e pobreza, e condicionada, em última instância, por
estrutura de dependência econômica, política e cultural” (CCM, n.2, p.147).
O
destinatário da práxis cristã não ficou relegado ao cristo teológico assumido pela
tradição antiga. A consciência teológica não se deteve numa postura egoísta da
salvação individual e na prática da caridade para com os mais pobres como meio
de salvação. Os pobres e sua situação tornou-se referencial-destino da evangelização,
pois estes eram e ainda são os escolhidos por Jesus, aqueles a quem Jesus quis
se identificar, e que, na América Latina, passavam por uma situação de miséria.
Ao
abrir os olhos a realidade histórica, se encontraram com a maioria empobrecida
e crente da América Latina: os indígenas, os camponeses, os moradores das
periferias urbanas. A experiência dos pobres e a situação inumana em que
sobrevivem sobre saiu em reuniões preparatórias. Assim mesmo, se irá
refletindo, a luz da fé, que nos dizia o Senhor nessa realidade (OLIVEROS,
1992, p.106).
A opção preferencial
pelos pobres se tornou o marco da teologia na América Latina. Ela já estava nos
documentos do Concílio como a Gaudium et
Spes. Porém em Medellín essa opção se radicaliza. “A opção pelos pobres era a grande preocupação e
como que uma resposta dos bispos aos clamores de justiça e de libertação que,
nos anos 1960, se espalhavam por todo o continente” (BARROS, 2017, p.128).
Observamos isso nos documentos:
O mandato particular do Senhor,
que prevê a evangelização dos pobres, deve levar-nos a uma distribuição tal de
esforços e de pessoal apostólico, que deve visar, preferencialmente, os setores
mais pobres e necessitados e os povos segregados por uma causa ou outra [...].
Queremos, como bispos, nos aproximar cada vez com maior simplicidade e sincera
fraternidade, dos pobres, tornando possível e acolhedor o seu acesso até nós
(CMM, n.9-10, p.199).
A
justiça se tornou um elemento presente na Conferência. Foi o título do primeiro
capítulo. O documento apresenta que “O Episcopado latino-americano não pode
ficar indiferente ante as tremendas injustiças sociais existentes na América
Latina, que mantêm a maioria de nossos povos numa situação dolorosa de pobreza,
que muitos casos chegam a ser miséria desumana” (CMM, n.1, p.195). Tal justiça
é como uma resposta ao clamor do povo, pois:
As famílias, muitas vezes, não
encontram possibilidades concretas de educação para seus filhos; a juventude
reclama seus direitos de entrar nas universidades ou em centros superiores de
aperfeiçoamento intelectual ou técnico-profissional; a mulher reivindica sua
igualdade, de direito e de fato, com os homens; os camponeses pedem melhores
condições de vida; [...] (CMM, n.1, p.45).
A
justiça não é somente uma exigência urgente humana, mas fazia parte do próprio
imperativo profético bíblico: “A busca cristã da justiça é uma exigência do
ensinamento bíblico. [...] Cremos que o amor a Cristo e aos nossos irmãos será
não só a grande força libertadora da injustiça e da opressão, mas também e
principalmente a inspiradora da justiça social” (CMM, n.5, p.48).
A
justiça se relaciona direto com a paz. Como disse Dom Helder Câmara: se queres
a paz, lute pela justiça. Essa referência está no segundo capítulo do
documento: “A paz é, antes de mais nada, obra da justiça. Ela supõe e exige a
instauração de uma ordem justa na qual todos os homens possam realizar-se como
homens” (CMM, n.14, p.65). É nessa lógica de relação que se afirma no
documento: “Defender segundo o mandato evangélico o direito dos pobres e oprimidos,
urgindo nossos governos e classes dirigentes a que eliminem tudo quanto destrói
a paz social: injustiça, inércia, venalidade, insensibilidade” (CMM, n.22,
p.71).
A
referência à sagrada escritura, apesar de pouca, como uma fonte de inspiração teológica
marca outro elemento da teologia em Medellín. A sagrada escritura ou Palavra de
Deus é recomendada pastoralmente como caminho para formação humana e cristã:
“Procurar a formação do maior número de comunidades eclesiais nas paróquias,
especialmente nas zonas rurais ou entre os marginalizados urbanos. Comunidades
que se devem basear na Palavra de Deus” (CMM, n.13, p.115). Essa postura de
inspiração bíblica terá sua maturidade nas próximas conferências da América
Latina, porém, destacaremos sua maior expressão nos documentos de Francisco.
Por
fim, outro elemento que percorre a teologia da América Latina está na questão
da Economia em relação com a dignidade humana. É nesse entrelaçamento que o
documento pontua sobre o problema do capital, ou capitalismo liberal:
No mundo de hoje, a produção
encontra sua expressão concreta na empresa, tanto industrial como rural, que
constitui a base fundamental e dinâmica do processo econômico global. O sistema
empresarial latino-americana e, devido a ele, a economia atual, corresponde a
uma concepção errada sobre o direito da propriedade dos meios de produção e
sobre a finalidade da economia. A empresa, numa economia verdadeiramente
humana, não se identifica com os donos do capital, [...] (CMM, n.10, p.50).
Neste
sentido a teologia presente na Conferência denúncia o “sistema liberal
capitalista” (CMM, n.10, p.51), porque tal sistema atenta “contra a dignidade
da pessoa humana”, pois tem como pressuposto “a primazia do capital, seu poder
e sua utilização discriminatória em função do lucro” (CMM, n.10, p.51). Tal
sistema cria “tremendas injustiças sociais existentes na América latina, que
mantêm a maioria de nossos povos numa dolorosa pobreza, que em muitos casos
chega a ser miséria desumana” (CMM, n.1, p. 195).
Algumas pontuações teológicas da Conferência de
Medellín que foram, até certo ponto, retomadas ou desenvolvidas por Francisco.
Os
elementos teológicos presentes na Conferência de Medellín possuem sua
inspiração a partir da abertura e orientações do Concílio Vaticano. A criatividade
teológica teve impasses e desafios até hoje, porém, mais do que uma invenção
inovadora e uma inspiração divina, tais pontuações ou elementos teológicos
foram retomados e amadurecidos nas demais Conferências (de Puebla, de Santo
Domingo e de Aparecida) da América Latina a tal ponto de configura esse
continente com uma teologia própria e singular, distinta da europeia e,
libertária da pessoa humana. Não sem riscos, falhas e progressos, tais
elementos teológicos perduram na nossa realidade e configuram as especificidades
da nossa teologia. Percebe-se que aproximadamente entre o ano 1985 e 2008 tal
teologia diminuiu o seu passo e teve seu momento de deserto, por diversas
razões que não vem ao caso. Todavia, é percebido, no pontificado do Papa Francisco
a retomada e continuidade de tais elementos. É neste sentido que, pela objetividade
da proposta temática, tentaremos demonstrar que nos documentos produzidos por
Francisco, permeiam alguns dos conteúdos, elementos ou e orientações teológicas
que se gestaram em Medellín.
A
primeira consideração está na observação prévia sobre a realidade contextual
contemporânea que Francisco faz em todas as suas obras. A Evangelii Gaudium[5] e a Laudato Si’[6] estão entre os
textos que mais expressam uma compreensão da realidade a partir das duas partes
do método utilizado por Medellín, a saber, o ver e julga. Para exemplificar mais
destacamos a Carta Circular Ás Pessoas
Consagradas (2014)[7].
Nas orientações para os religiosos ele explana profeticamente sobre a situação
da sociedade atual “que ostenta o culto da eficiência, da saúde, do sucesso”
(APC, n.1, p.17). A teologia de pano de
fundo segue a dinâmica da apreensão da realidade, “a capacidade de perscrutar a
história em que vive e interpretar os acontecimentos: é como uma sentinela que
vigia durante a noite e sabe quando chega a aurora” (APC, n.2, p.18). Neste
sentido a captação da realidade é uma constante no seu discurso teológico, isso
tem influência de Medellín. Mas a leitura dos sinais dos tempos está
entrelaçada pelo aspecto prático:
Viver com paixão o presente
significa tornar-se ‘peritos em comunhão’, ou seja, ‘testemunhas e artífices
daquele ‘projeto de comunhão’ que está no vértice da história do homem segundo
Deus’. Numa sociedade marcada por conflito, convivência difícil entre culturas
diversas, prepotência sobre os mais fracos, desigualdades, somos chamados a
oferecer um modelo concreto de comunidade [...] (APC, n.2, p.12).
A
epistemologia da atual situação não se fecha no puro conhecimento, mas está em
função do aspecto pastoral da teologia, do aspecto da práxis cristã. A
característica peculiar da praticidade está na Evangelii Gaudium quando Francisco exorta os fiéis para ser uma
igreja em saída:
[...] hoje todos nós somos
chamados a esta nova “saída” missionária. Cada cristão e cada comunidade há de
discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a
aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar
todas as periferias [...] (EG, n.20, p.20).
“Com
obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros” (EG, n.24,
p.22). Aqui percebemos o aspecto prático teológico que Francisco nos exortar a
realizar. Uma saída da mesmice e do de sempre para renovar-se com a práxis.
Porém, ao contrário de um ativismo, a prática cristã está ligada com uma
experiência fundamental já expressada em Medellín: a experiência de Deus, a
escuta da Palavra de Deus, a retomada inspiradora do Evangelho. Todos os
escritos de Francisco são marcados por essa base bíblica, mas não se trata
apena de um fundamento ou base teológica das escrituras, mas sim de uma
experiência com alguém que se manifesta pela Escritura:
A pergunta que somos chamados a
fazer neste Ano é se e como nos deixamos, também nós, interpelar pelo
Evangelho; se este é verdadeiramente o vade-mécum para a vida de cada dia e
para as opções que somos chamados a fazer. Isso é exigente e pede para ser
vivido com radicalismo e sinceridade. Não basta lê-lo (e, no entanto, a leitura
e o estudo permanecem de extrema importância), nem basta meditá-lo (e fazemo-lo
com alegria todos os dias), Jesus pede-nos para pô-lo em prática, para viver as
suas palavras (APC, n.2, p.10).
Quanto
à opção preferencial pelos pobres, observamos em Francisco tal elemento
teológico que perdura e amadurece na sua reflexão cada vez mais. Na Misericordiae Vutus[8] Francisco apresenta um pequeno trecho que
expressa essa preferência teológica. A linha reflexiva está relacionada com a o
valor da “misericórdia” e a crítica aos ricos que são indiferentes aos pobres.
Junto dos pobres está o seu contexto existencial: as periferias.
Neste Ano Santo, poderemos fazer a experiência
de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais,
que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas
situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo atual! Quantas
feridas gravadas na carne de muitos que já não tem voz, porque o seu grito foi
esmorecendo e se apagou por causa da indiferença dos povos ricos. Neste Jubileu
a Igreja sentir-se-á chamada ainda mais a cuidar destas feridas, aliviá-las,
[...]. É meu vivo desejo que o povo cristão reflita, durante o Jubileu, sobre
as obras de misericórdia corporal e espiritual. Será uma maneira de acordar a
nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de
entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os
privilegiados [...](MV, n.14-15, p.16-17).
Outro elemento teológico é a “justiça”. Francisco explicita-a
nos seus diversos documentos. “Deus não rejeita a justiça. Ele a engloba e a
supera em um evento superior em que se experimenta o amor, que está na base de
uma verdadeira justiça” (MV, n.21, p.25). “A justiça de Deus torna-se agora a libertação para quantos
estão oprimidos [...]” (MV, n.20, p. 24). Na Evangelii Gaudium Francisco explana sobre a justiça como imperativo
eclesial:
[...] a Igreja ‘não pode nem deve
ficar à margem na luta pela justiça’. Todos os cristãos, incluindo os Pastores,
são chamados a preocupar-se com a construção de um mundo melhor. É disto mesmo
que se trata, pois o pensamento social da Igreja é primeiramente positivo e
construtivo, orienta uma ação transformadora e, neste sentido, não deixa de ser
um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo (EG, n.184,
p.152).
Na
Laudato Si’ encontramos a questão da
paz, porém mais do que a relação com a justiça, tal temática está relacionada
com a alegria e o cuidado com a casa comum. Neste aspecto a paz se situa numa
relação interior, espiritual e antropológica, com uma reação social. Pois
segundo Francisco afirma:
Ninguém pode amadurecer em uma
sobriedade feliz, se não estiver em paz consigo mesmo. E parte de uma adequada
compreensão da espiritualidade consite em alargar a nossa compreensão de paz,
que é muito mais do que a ausência de guerra. A paz interior das pessoas tem
muito mais a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque,
autenticamente vivida, reflete-se em um equilibrado estilo de vida aliado com a
capacidade de admiração que leva à profundidade da vida (LS, n.225, p.179)
Por
fim, destacamos na teologia da América Latina a questão da economia. Esta se tornou
uma temática profética de Francisco relacionado com a moral cristã e a
realidade social capitalista: “Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um
limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos
dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’” (EG, n.53,
p.48). A raiz na desigualdade humana é expressa na relação entre o dinheiro e a
idolatria.
Uma das causas desta situação
está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o
seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira que
atravessamos faz-nos esquecer de que, na sua origem, há uma crise antropológica
profunda: a negação da primazia do ser humano. Criamos novos ídolos. A adoração
do antigo bezerro de outro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma nova e cruel versão
no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um
objeto verdadeiramente humano (EG, n. 54-55, p.49-50).
Conclusão
A
presente pesquisa conclui que Medellín é um marco histórico de onde germinou,
com propriedade criativa e pastoral, os principais elementos que constituiu e
ainda constitui a teologia na América Latina. Sem negar sua inspiração no
Concílio Vaticano II, acentuamos que Medellín é como se fosse o sopro forte do
Espírito Santo para as expectativas, esperanças e frustrações do povo latino-
americano. Isso é observado na forma como aos poucos, porém, com incrível
criatividade, a teologia do nosso continente foi original e inovadora para
assumir o novo tempo, marcado pela desigualdade, exploração, opressão e
coisificação da maioria do povo pobre da América Latina. Se o temor e a força
conservadora reprimiu a teologia (da libertação) gestada em Medellín, atualmente,
na figura do Papa Francisco vemos tal teologia ganhar seu vigor, amadurecer,
aprofundar as raízes e ser um sinal de esperanças, justiça, alegria, paz e
libertação verdadeira para o povo de Deus, assim como para a humanidade. Essa
esperança não é ilusória, pois o processo de desenvolvimento da teologia cristã
de libertação na América Latina, ainda não chegou a seu termo. Por isso se faz
cada vez mais urgente, a partir do Papa Francisco, uma retomada de suas raízes
teológicas, uma maturidade que não termina na história, e um constante diálogo
criativo e responsável com a atualidade, com seus novos clamores e justiça por
libertação.
Referências bibliográficas
BULA DE PROCLAMAÇÃO DO
JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA. Misericordiae Vultus: o rosto da
misericórdia. São
Paulo: Edições Loyola, 2015.
CARTA APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO. Ás Pessoas Consagradas: em ocasião do
ano da vida consagrada. São Paulo: Paulinas, 2014.
CARTA ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas,
2015.
CELAM.
Conclusões da Conferência de Medellín
-1968. Trinta anos depois, Medellín é ainda atual? 3.ed., São Paulo: Paulinas, 2010.
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii
Gaudium: do Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São
Paulo: Paulinas, 2013.
GODOY,
M.;JUNIOR, F (Org.). 50 anos de Medellín: revisitando os textos, retomando o caminho.
São Paulo: Paulinas, 2017.
VARIOS,
Autores. Vida, Clamor y Esperanza: aportes
desde América Latina. edições paulinas: Buenos Aires, 1992
[1] Licenciado em Filosofia pela
Universidade Estadual do Ceará (UECE) e graduando no curso de Teologia na
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE).
[2]A inspiração ou influência do
Concílio Vaticano II na Conferência de Medellín é confirmada pelo teólogo Tony
Mifsud na obra Una construccion ética de
la utopia Cristiana ( 1988, p.181): “Los documentos de Medellín llevan el
título de La Iglesia em la actual transformación de América Latina a la luz del
Concilio. Medellín es la concreción o la aplicación latino-americana del
Vaticano II, es decir, se introduce em este processo comenzado por el Vaticano
II y lo aplica a la situación del continente”.
[3] Essas duas orientação
desenvolvidas foram sintetizada pelo teólogo Roberto Oliveros na obra Clamor y Esperança:aportes desde América
Latina (1992, p.105): “Juan XXIII convoco al concílio, a fin de ‘aggiornar’
criticamente la acción eclesial en las nuevas circunstancias mundiales”. Cf.
VARIOS, Autores.Vida, Clamor y Esperança:aportes
desde América Latina.edições paulinas: Buenos Aires, 1992.
[4] As citações referente a esta
Conferência está na seguinte obra: “CELAM. Conclusões
da Conferência de Medellín -1968. Trinta anos depois, Medellín é ainda
atual? 3.ed., São Paulo: Paulinas,
2010.
[5] EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii Gaudium: do Papa Francisco
sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.
[6] CARTA ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa
comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
[7] CARTA APOSTÓLICA DO PAPA
FRANCISCO. Ás Pessoas Consagradas: em
ocasião do ano da vida consagrada. São Paulo: Paulinas, 2014.
[8]BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU
EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA. Misericordiae
Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
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