terça-feira, 22 de maio de 2018

A CONFERÊNCIA DE MEDELLÍN E PAPA FRANCISCO: ELEMENTOS DE UMA TEOLOGIA EM CONTINUIDADE.


Artigo comunicado no Colóquio de Teologia e Pastoral, nos "50 anos de Medellín: de Medellín a Francisco" entre os dias 07 e 09 de maio. Texto em processo de publicação. 
Autor: Isaias Mendes Barbosa[1]
RESUMO: A presente comunicação apresenta a relação intrínseca entre os temas ou elementos teológicos presente na obra Conclusões da Conferência de Medellín e aqueles explanados, sustentados e apresentados pelo Papa Francisco nas obras Carta Circular Ás Pessoas Consagradas (2014), Misericordiae Vutus (2015), Evangelii Gaudium e Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum (2015), dentre outros documentos como apoio. Partindo de uma hermenêutica argumentativa sobre a relação entre tais documentos, conforme a temática proposta, apesentamos as seguintes questões: i) algumas pontuações teológicas características e específicas da América Latina na Conferência de Medellín e ii) algumas pontuações teológicas da Conferência de Medellín que foram, até certo ponto, retomadas ou desenvolvidas por Francisco. Nas Conclusões de Medellín pontuamos como predominante, na América Latina, a hermenêutica teológica a partir do método (indutivo) que parte da realidade; a opção preferencial pelos pobres; a busca pela justiça e pela paz; a inspiração bíblica; a prevalência do aspecto teológico pastoral e a denúncia da idolatria do dinheiro, no aspecto da economia e dignidade, dentre outras coisas. Em estreita relação com isso, está às pontuações teológicas e pastorais apresentadas por Francisco nos seus variados documentos. Concluímos que tal personalidade pontifícia se apresenta como um referencial cristão que continua e desenvolve revolucionariamente as pontuações teológicas explanadas na Conferência. Além disso, observa-se nele uma luz e esperança para a Igreja Católica e sociedade contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Medellín; Papa Francisco; Continuidade.
Introdução
A Conferência de Medellín não pode ser pensada sem uma retomada ao Concílio Vaticano II. Pois este foi a porta de abertura para o desenvolvimento de uma teologia original na América Latina. Teologia esta que foi se moldando após Medellín. Neste evento observamos os primeiros passos de uma teologia que se libertava das amarras da teologia europeia colonial e assumia um novo caráter criativo, revolucionário e libertário.
Vemos os traços de tal teologia nos documentos de Medellín. Não que as Conclusões da Conferência de Medellín tenham sido classificadas como uma obra estruturada e reflexiva de uma nova teologia (fundamental, sistemática), pois esta não era a sua pretensão. Ao contrário de um manual de teologia, as Conclusões são o resultado de uma visão pastoral que tenta responder aos sinais e desafios do seu tempo de modo criativo e espiritualmente responsável, assumindo o compromisso com a realidade desigual, de exclusão e injusta da América Latina. É sobre esse foco que abstraímos os elementos, termos ou características principais que marcaram e definiram especificadamente a teologia latino-americana. Se este momento é caracterizado por uma intensificação de ruptura do pré-concilio, ele resgatou as raízes mais originais, lúcidas e fundamentais da fé cristã. Observamos isso, especificadamente e com mais propriedade teológica, nos documentos do Papa Francisco.
Ele surpreendentemente é uma síntese mais profunda e desenvolvida do Concílio Vaticano II e de Medellín. Seus documentos resgatam os elementos principais da teologia latino-americana, a saber: a análise crítica social, a transformação evangélica da mesma, a opção pelos pobres, a busca pela paz, a crítica á economia, a luta pela justiça e a inspiração evangélica. Tais pontuações são expressadas em Francisco com uma criatividade e maturidade inigualável. Isso o classifica como um sinal e inspiração para o povo latino americano nas suas lutas e desafios.
Algumas pontuações teológicas características e específicas da América Latina na Conferência de Medellín
Para falar de Medellín é preciso retornar a metade do século XX, quando aconteceu o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). Isso porque tal evento se constituiu como inspiração, luz, para a história singular da América Latina[2]. A motivação da Conferência foi o Concílio, pois “Em busca da fidelidade ao Espírito, ao concluir o Vat.II, Mons. Manuel Larraín, em nome dos bispos latino-americanos, pediu à S.S. Paulo VI que convocasse a segunda conferencia geral do episcopado latino-americano” (OLIVEIRA, 1992, p.105).  Em vista dessa inspiração, observamos que duas pontuações foram fundamentais, no Concílio, para compreendermos a razão da Conferência de Medellín ter apresentado uma posição teológica distinta do que vinha na tradição da Igreja na Europa: 1) O Concílio motivou toda a Igreja ao aggiornamento criativo da mensagem cristã a partir de uma profundidade e inspiração evangélica reveladora e querigmática; 2) O Concílio foi uma abertura dialogal para o mundo moderno que dava seus passos autônomos[3]. Esse dois pontos deu abertura para que a América Latina pudesse dar os passos de uma teologia própria, portanto, não mais pautada a partir das “iluminações” dedutivas e dogmáticas da fé, mas da própria realidade contextual histórica que passava. Foi nessa dinâmica de abertura dialogal para o mundo e de retomada evangélico escriturística, em relação com as ciências sociais (história e sociologia), que a Conferência de Medellín se tornou um marco histórico relevante na América Latina.
Essa nova postura foi de ruptura para o que havia na tradição até antes do concílio. Podemos observar que Medellín intensificou essa ruptura, dando novos passos para um novo modo de perceber, pensar e teologizar a fé cristã. Na relação entre o pré-concilio e Medellín pós-conciliar destacamos essas novas demarcações em que atua a teologia latino-americana: a) de uma teologia moral de caráter tomista-aristotélica-escolástica para uma nova forma criativa de pensar teológico; b) do abandono de um rigorismo perfeccionista, ou moral laxista, para a abertura ao aspecto mais equitativo e contextual da vida cristã; c) de uma transição da heteronomia da consciência e prática humana para a autonomia da mesma; d) da troca dos silogismos dedutivos e abstratos como fundamento da teologia moral, pelo “sinais dos tempos” e pela Palavra revelada (Jesus Cristo) como base inspiradora para a vida cristã. Desses pressupostos podemos compreender os elementos ou termos fundamentais que perpassa a teologia da América Latina em Medellín.
A Conferência de Medellín teve como objetivo eclesial compreender a missão e desafio da Igreja em um continente particular e de uma realidade específica. Desse norte podemos abstrair seus elementos principais. Não podemos descrever sobre a teologia, enquanto estrutura teorética e elaborada, nos documentos de Medellín, pois não se trata de um manual de teologia, mas destacamos os elementos, termos ou conteúdos presentes nas Conclusões da Conferência de Medellín[4] (CCM) que nos apresentam o pano de fundo da teologia da América Latina nos seus primeiros passos de gestação original.
A primeira questão elementar que apresentamos está no método teológico. Não era mais o dedutivo, mas o indutivo. Partia da reflexão sobre a realidade, para depois propor caminhos pastorais. É o “ver-julgar-agir”. Medellín segue esse método. De fato, na Introdução às conclusões de Medellín, os bispos exprimem essa nova ótica nestes termos:
Não podemos deixar de interpretar este gigantesco esforço por uma rápida transformação e desenvolvimento como evidente sinal da presença do Espírito que conduz a história dos homens e dos povos para sua vocação. Não podemos deixar de descobrir nesta vontade, [...] os vestígios da imagem de Deus no homem, como um poderoso dinamismo. [...] Nós, cristãos, não podemos, com efeito, deixar de pressentir a presença de Deus que quer salvar o homem todo, alma e corpo. [...] Assim como outrora Israel, o Antigo Povo, sentia a presença salvífica de Deus quando o libertava da opressão do Egito, [...] assim também nós, o novo Povo de Deus, não podemos deixar de sentir seu passo que salva, quando se dá o “verdadeiro desenvolvimento” [...](CCM, n.4-6, p.38).

O segundo elemento é a teleologia do método. O método indutivo implica uma práxis transformadora. As palavras introdutórias da Conferência tem relevância efetiva e pastoral no caráter de orientação da teologia latino-americana: “Não basta, certamente, refletir, conseguir mais clarividência e falar. É necessário agir. A hora atual não deixou de ser a hora da palavra, mas já se tornou, com dramática urgência, a hora da ação” (CCM, n.3, p.38).
O terceiro aspecto dessa teologia está no “espaço teológico”. Não mais partia apenas de silogismos ou de um pressuposto dedutivo das escrituras, mas da própria realidade contextual histórica. A Conferência levou a cabo tal orientação ao descrever pontualmente a situação a que se encontrava a maioria do povo latino-americano:
As diversas formas de marginalização, socioeconômicas, políticas, culturais, raciais, religiosas, tanto nas zonas urbanas como nas rurais. Desigualdade excessiva entre as classes sociais, especialmente, embora não de forma exclusiva, naqueles países que se caracterizam por um acentuado bi-classismo: poucos têm muito (cultura, riqueza, poder, prestígio) enquanto muitos nada têm. [..] Frustrações crescentes: o fenômeno universal das expectativas crescentes assume na América Latina uma dimensão particularmente agressiva. [...] Formas de opressão de grupos e setores dominantes [...] (CCM, n.2-5, p.59-60).
Tal conjuntura social é a base se onde se situa a experiência humana latino-americana. Em outras palavras, o momento histórico se caracterizou “por uma situação de subdesenvolvimento, revelada por fenômenos maciços de marginalidade, alienação e pobreza, e condicionada, em última instância, por estrutura de dependência econômica, política e cultural” (CCM, n.2, p.147).
O destinatário da práxis cristã não ficou relegado ao cristo teológico assumido pela tradição antiga. A consciência teológica não se deteve numa postura egoísta da salvação individual e na prática da caridade para com os mais pobres como meio de salvação. Os pobres e sua situação tornou-se referencial-destino da evangelização, pois estes eram e ainda são os escolhidos por Jesus, aqueles a quem Jesus quis se identificar, e que, na América Latina, passavam por uma situação de miséria.
Ao abrir os olhos a realidade histórica, se encontraram com a maioria empobrecida e crente da América Latina: os indígenas, os camponeses, os moradores das periferias urbanas. A experiência dos pobres e a situação inumana em que sobrevivem sobre saiu em reuniões preparatórias. Assim mesmo, se irá refletindo, a luz da fé, que nos dizia o Senhor nessa realidade (OLIVEROS, 1992, p.106).
A opção preferencial pelos pobres se tornou o marco da teologia na América Latina. Ela já estava nos documentos do Concílio como a Gaudium et Spes. Porém em Medellín essa opção se radicaliza. “A opção pelos pobres era a grande preocupação e como que uma resposta dos bispos aos clamores de justiça e de libertação que, nos anos 1960, se espalhavam por todo o continente” (BARROS, 2017, p.128). Observamos isso nos documentos:
O mandato particular do Senhor, que prevê a evangelização dos pobres, deve levar-nos a uma distribuição tal de esforços e de pessoal apostólico, que deve visar, preferencialmente, os setores mais pobres e necessitados e os povos segregados por uma causa ou outra [...]. Queremos, como bispos, nos aproximar cada vez com maior simplicidade e sincera fraternidade, dos pobres, tornando possível e acolhedor o seu acesso até nós (CMM, n.9-10, p.199).
A justiça se tornou um elemento presente na Conferência. Foi o título do primeiro capítulo. O documento apresenta que “O Episcopado latino-americano não pode ficar indiferente ante as tremendas injustiças sociais existentes na América Latina, que mantêm a maioria de nossos povos numa situação dolorosa de pobreza, que muitos casos chegam a ser miséria desumana” (CMM, n.1, p.195). Tal justiça é como uma resposta ao clamor do povo, pois:
As famílias, muitas vezes, não encontram possibilidades concretas de educação para seus filhos; a juventude reclama seus direitos de entrar nas universidades ou em centros superiores de aperfeiçoamento intelectual ou técnico-profissional; a mulher reivindica sua igualdade, de direito e de fato, com os homens; os camponeses pedem melhores condições de vida; [...] (CMM, n.1, p.45).
A justiça não é somente uma exigência urgente humana, mas fazia parte do próprio imperativo profético bíblico: “A busca cristã da justiça é uma exigência do ensinamento bíblico. [...] Cremos que o amor a Cristo e aos nossos irmãos será não só a grande força libertadora da injustiça e da opressão, mas também e principalmente a inspiradora da justiça social” (CMM, n.5, p.48).
A justiça se relaciona direto com a paz. Como disse Dom Helder Câmara: se queres a paz, lute pela justiça. Essa referência está no segundo capítulo do documento: “A paz é, antes de mais nada, obra da justiça. Ela supõe e exige a instauração de uma ordem justa na qual todos os homens possam realizar-se como homens” (CMM, n.14, p.65). É nessa lógica de relação que se afirma no documento: “Defender segundo o mandato evangélico o direito dos pobres e oprimidos, urgindo nossos governos e classes dirigentes a que eliminem tudo quanto destrói a paz social: injustiça, inércia, venalidade, insensibilidade” (CMM, n.22, p.71).
A referência à sagrada escritura, apesar de pouca, como uma fonte de inspiração teológica marca outro elemento da teologia em Medellín. A sagrada escritura ou Palavra de Deus é recomendada pastoralmente como caminho para formação humana e cristã: “Procurar a formação do maior número de comunidades eclesiais nas paróquias, especialmente nas zonas rurais ou entre os marginalizados urbanos. Comunidades que se devem basear na Palavra de Deus” (CMM, n.13, p.115). Essa postura de inspiração bíblica terá sua maturidade nas próximas conferências da América Latina, porém, destacaremos sua maior expressão nos documentos de Francisco.
Por fim, outro elemento que percorre a teologia da América Latina está na questão da Economia em relação com a dignidade humana. É nesse entrelaçamento que o documento pontua sobre o problema do capital, ou capitalismo liberal:
No mundo de hoje, a produção encontra sua expressão concreta na empresa, tanto industrial como rural, que constitui a base fundamental e dinâmica do processo econômico global. O sistema empresarial latino-americana e, devido a ele, a economia atual, corresponde a uma concepção errada sobre o direito da propriedade dos meios de produção e sobre a finalidade da economia. A empresa, numa economia verdadeiramente humana, não se identifica com os donos do capital, [...] (CMM, n.10, p.50).
Neste sentido a teologia presente na Conferência denúncia o “sistema liberal capitalista” (CMM, n.10, p.51), porque tal sistema atenta “contra a dignidade da pessoa humana”, pois tem como pressuposto “a primazia do capital, seu poder e sua utilização discriminatória em função do lucro” (CMM, n.10, p.51). Tal sistema cria “tremendas injustiças sociais existentes na América latina, que mantêm a maioria de nossos povos numa dolorosa pobreza, que em muitos casos chega a ser miséria desumana” (CMM, n.1, p. 195).
Algumas pontuações teológicas da Conferência de Medellín que foram, até certo ponto, retomadas ou desenvolvidas por Francisco.
Os elementos teológicos presentes na Conferência de Medellín possuem sua inspiração a partir da abertura e orientações do Concílio Vaticano. A criatividade teológica teve impasses e desafios até hoje, porém, mais do que uma invenção inovadora e uma inspiração divina, tais pontuações ou elementos teológicos foram retomados e amadurecidos nas demais Conferências (de Puebla, de Santo Domingo e de Aparecida) da América Latina a tal ponto de configura esse continente com uma teologia própria e singular, distinta da europeia e, libertária da pessoa humana. Não sem riscos, falhas e progressos, tais elementos teológicos perduram na nossa realidade e configuram as especificidades da nossa teologia. Percebe-se que aproximadamente entre o ano 1985 e 2008 tal teologia diminuiu o seu passo e teve seu momento de deserto, por diversas razões que não vem ao caso. Todavia, é percebido, no pontificado do Papa Francisco a retomada e continuidade de tais elementos. É neste sentido que, pela objetividade da proposta temática, tentaremos demonstrar que nos documentos produzidos por Francisco, permeiam alguns dos conteúdos, elementos ou e orientações teológicas que se gestaram em Medellín.   
A primeira consideração está na observação prévia sobre a realidade contextual contemporânea que Francisco faz em todas as suas obras. A Evangelii Gaudium[5] e a Laudato Si’[6] estão entre os textos que mais expressam uma compreensão da realidade a partir das duas partes do método utilizado por Medellín, a saber, o ver e julga. Para exemplificar mais destacamos a Carta Circular Ás Pessoas Consagradas (2014)[7]. Nas orientações para os religiosos ele explana profeticamente sobre a situação da sociedade atual “que ostenta o culto da eficiência, da saúde, do sucesso” (APC, n.1, p.17). A teologia de pano de fundo segue a dinâmica da apreensão da realidade, “a capacidade de perscrutar a história em que vive e interpretar os acontecimentos: é como uma sentinela que vigia durante a noite e sabe quando chega a aurora” (APC, n.2, p.18). Neste sentido a captação da realidade é uma constante no seu discurso teológico, isso tem influência de Medellín. Mas a leitura dos sinais dos tempos está entrelaçada pelo aspecto prático:
Viver com paixão o presente significa tornar-se ‘peritos em comunhão’, ou seja, ‘testemunhas e artífices daquele ‘projeto de comunhão’ que está no vértice da história do homem segundo Deus’. Numa sociedade marcada por conflito, convivência difícil entre culturas diversas, prepotência sobre os mais fracos, desigualdades, somos chamados a oferecer um modelo concreto de comunidade [...] (APC, n.2, p.12).
A epistemologia da atual situação não se fecha no puro conhecimento, mas está em função do aspecto pastoral da teologia, do aspecto da práxis cristã. A característica peculiar da praticidade está na Evangelii Gaudium quando Francisco exorta os fiéis para ser uma igreja em saída:
[...] hoje todos nós somos chamados a esta nova “saída” missionária. Cada cristão e cada comunidade há de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias [...] (EG, n.20, p.20).
“Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros” (EG, n.24, p.22). Aqui percebemos o aspecto prático teológico que Francisco nos exortar a realizar. Uma saída da mesmice e do de sempre para renovar-se com a práxis. Porém, ao contrário de um ativismo, a prática cristã está ligada com uma experiência fundamental já expressada em Medellín: a experiência de Deus, a escuta da Palavra de Deus, a retomada inspiradora do Evangelho. Todos os escritos de Francisco são marcados por essa base bíblica, mas não se trata apena de um fundamento ou base teológica das escrituras, mas sim de uma experiência com alguém que se manifesta pela Escritura:
A pergunta que somos chamados a fazer neste Ano é se e como nos deixamos, também nós, interpelar pelo Evangelho; se este é verdadeiramente o vade-mécum para a vida de cada dia e para as opções que somos chamados a fazer. Isso é exigente e pede para ser vivido com radicalismo e sinceridade. Não basta lê-lo (e, no entanto, a leitura e o estudo permanecem de extrema importância), nem basta meditá-lo (e fazemo-lo com alegria todos os dias), Jesus pede-nos para pô-lo em prática, para viver as suas palavras (APC, n.2, p.10).
Quanto à opção preferencial pelos pobres, observamos em Francisco tal elemento teológico que perdura e amadurece na sua reflexão cada vez mais. Na Misericordiae Vutus[8] Francisco apresenta um pequeno trecho que expressa essa preferência teológica. A linha reflexiva está relacionada com a o valor da “misericórdia” e a crítica aos ricos que são indiferentes aos pobres. Junto dos pobres está o seu contexto existencial: as periferias.
Neste Ano Santo, poderemos fazer a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo atual! Quantas feridas gravadas na carne de muitos que já não tem voz, porque o seu grito foi esmorecendo e se apagou por causa da indiferença dos povos ricos. Neste Jubileu a Igreja sentir-se-á chamada ainda mais a cuidar destas feridas, aliviá-las, [...]. É meu vivo desejo que o povo cristão reflita, durante o Jubileu, sobre as obras de misericórdia corporal e espiritual. Será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados [...](MV, n.14-15, p.16-17).
Outro elemento teológico é a “justiça”. Francisco explicita-a nos seus diversos documentos. “Deus não rejeita a justiça. Ele a engloba e a supera em um evento superior em que se experimenta o amor, que está na base de uma verdadeira justiça” (MV, n.21, p.25). “A justiça de Deus torna-se agora a libertação para quantos estão oprimidos [...]” (MV, n.20, p. 24). Na Evangelii Gaudium Francisco explana sobre a justiça como imperativo eclesial:
[...] a Igreja ‘não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça’. Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são chamados a preocupar-se com a construção de um mundo melhor. É disto mesmo que se trata, pois o pensamento social da Igreja é primeiramente positivo e construtivo, orienta uma ação transformadora e, neste sentido, não deixa de ser um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo (EG, n.184, p.152).
Na Laudato Si’ encontramos a questão da paz, porém mais do que a relação com a justiça, tal temática está relacionada com a alegria e o cuidado com a casa comum. Neste aspecto a paz se situa numa relação interior, espiritual e antropológica, com uma reação social. Pois segundo Francisco afirma:
Ninguém pode amadurecer em uma sobriedade feliz, se não estiver em paz consigo mesmo. E parte de uma adequada compreensão da espiritualidade consite em alargar a nossa compreensão de paz, que é muito mais do que a ausência de guerra. A paz interior das pessoas tem muito mais a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida, reflete-se em um equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida (LS, n.225, p.179)
Por fim, destacamos na teologia da América Latina a questão da economia. Esta se tornou uma temática profética de Francisco relacionado com a moral cristã e a realidade social capitalista: “Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’” (EG, n.53, p.48). A raiz na desigualdade humana é expressa na relação entre o dinheiro e a idolatria.
Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer de que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de outro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objeto verdadeiramente humano (EG, n. 54-55, p.49-50).
Conclusão
A presente pesquisa conclui que Medellín é um marco histórico de onde germinou, com propriedade criativa e pastoral, os principais elementos que constituiu e ainda constitui a teologia na América Latina. Sem negar sua inspiração no Concílio Vaticano II, acentuamos que Medellín é como se fosse o sopro forte do Espírito Santo para as expectativas, esperanças e frustrações do povo latino- americano. Isso é observado na forma como aos poucos, porém, com incrível criatividade, a teologia do nosso continente foi original e inovadora para assumir o novo tempo, marcado pela desigualdade, exploração, opressão e coisificação da maioria do povo pobre da América Latina. Se o temor e a força conservadora reprimiu a teologia (da libertação) gestada em Medellín, atualmente, na figura do Papa Francisco vemos tal teologia ganhar seu vigor, amadurecer, aprofundar as raízes e ser um sinal de esperanças, justiça, alegria, paz e libertação verdadeira para o povo de Deus, assim como para a humanidade. Essa esperança não é ilusória, pois o processo de desenvolvimento da teologia cristã de libertação na América Latina, ainda não chegou a seu termo. Por isso se faz cada vez mais urgente, a partir do Papa Francisco, uma retomada de suas raízes teológicas, uma maturidade que não termina na história, e um constante diálogo criativo e responsável com a atualidade, com seus novos clamores e justiça por libertação.
Referências bibliográficas
BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

CARTA APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO. Ás Pessoas Consagradas: em ocasião do ano da vida consagrada. São Paulo: Paulinas, 2014.

CARTA ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

CELAM. Conclusões da Conferência de Medellín -1968. Trinta anos depois, Medellín é ainda atual? 3.ed., São Paulo: Paulinas, 2010.

EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii Gaudium: do Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.

GODOY, M.;JUNIOR, F (Org.). 50 anos de Medellín: revisitando os textos, retomando o caminho. São Paulo: Paulinas, 2017.

VARIOS, Autores. Vida, Clamor y Esperanza: aportes desde América Latina. edições paulinas: Buenos Aires, 1992





[1] Licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e graduando no curso de Teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE).
[2]A inspiração ou influência do Concílio Vaticano II na Conferência de Medellín é confirmada pelo teólogo Tony Mifsud na obra Una construccion ética de la utopia Cristiana ( 1988, p.181): “Los documentos de Medellín llevan el título de La Iglesia em la actual transformación de América Latina a la luz del Concilio. Medellín es la concreción o la aplicación latino-americana del Vaticano II, es decir, se introduce em este processo comenzado por el Vaticano II y lo aplica a la situación del continente”.
[3] Essas duas orientação desenvolvidas foram sintetizada pelo teólogo Roberto Oliveros na obra Clamor y Esperança:aportes desde América Latina (1992, p.105): “Juan XXIII convoco al concílio, a fin de ‘aggiornar’ criticamente la acción eclesial en las nuevas circunstancias mundiales”. Cf. VARIOS, Autores.Vida, Clamor y Esperança:aportes desde América Latina.edições paulinas: Buenos Aires, 1992.
[4] As citações referente a esta Conferência está na seguinte obra: “CELAM. Conclusões da Conferência de Medellín -1968. Trinta anos depois, Medellín é ainda atual? 3.ed., São Paulo: Paulinas, 2010.
[5] EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii Gaudium: do Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.
[6] CARTA ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
[7] CARTA APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO. Ás Pessoas Consagradas: em ocasião do ano da vida consagrada. São Paulo: Paulinas, 2014.
[8]BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

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