O Grito dos Excluídos nasceu a partir das pastorais sociais da Igreja Católica com o apoio da CNBB. É uma mobilização popular com o objetivo: a) de denunciar o modelo político e econômico que concentra riquezas e condena milhões de pessoas à exclusão social; b) tornar público, nas ruas e praças, o rosto desfigurado dos diversos grupos excluídos, vítimas do desemprego, da miséria, da fome e do preconceito; c) propor caminhos alternativos ao modelo econômico neoliberal, de forma a desenvolver uma política de inclusão social, com a participação ampla de todos os cidadãos. Em diversas regiões do Brasil a desigualdade social é gritante. É o resultado de políticas públicas, esvaziadas de qualquer princípio de moralidade e ética, principalmente em relação aos mais pobres da nossa sociedade. Quem se cala, consente. Por isso que, no dia 07 de setembro deste ano, nós – Os Missionários Redentoristas da Vice Província de Fortaleza, da Província do Rio e da Província da Bahia, dentre outras províncias e unidades – participamos do “23º Grito dos Excluídos”. O lema foi “Por direitos e democracia, a luta é todo dia” e o tema: “A Vida em Primeiro Lugar”. Em Minas Gerais estivemos no grito e lutamos pela causa dos excluídos de Belo Horizonte, aqueles que também fazem parte do nosso carisma fundacional: 1) levantamos a voz diante da situação política, economia e social difícil que está passando a maior parte do povo brasileiro, 2) gritamos contra as medidas políticas que viabilizam a posse e extração dos bens preciosos da Amazônia, 3) dizemos basta: ao o atual governo que quer implantar o reajuste fiscal e concessões, prejudicando a maioria do povo brasileiro, 4) denunciamos os políticos (Geddel) que fez e fazem lavagem de dinheiro e estão roubando o dinheiro público, 5) gritamos pelo descaso, preconceito, descriminação e exclusão que sofrem os moradores de rua e a mulheres em situação de prostituição. Tais ações do status quo estão tirando o direito e a liberdade democrática do povo brasileiro, principalmente dos mais pobres e excluídos. Em vista da justiça do Reino lutamos contra tais situações de opressão e exclusão: a luta continua, todo dia!
sexta-feira, 3 de novembro de 2017
quarta-feira, 6 de setembro de 2017
A perspectiva da Ética cristã sobre o Conflito social e a Luta de classes: a busca do Bem Comum.
O
conflito social é um “fato” histórico que não podemos negar. A vida humana é
marcada por esse aspecto que de um modo ou de outro, direta ou indiretamente,
perpassa os momentos mais fortes e determinantes de nossa história. A Igreja reconhece tal fato, apesar de não
ter uma explicação sistemática e elaborada para tal causa conflitiva. Porém,
assim como a conflitividade marca o mundo hermenêutico da estrutura social, a
mesma faz parte da configuração moral da sociedade. Pois todos os aspectos das
relações sociais, que, em caso extremo, estão nas linhas de tensões, nas
fronteiras decisórias e conflitivas da existência, reivindicam do ser humano um
juízo de valor e uma praticidade social.
Santo
Afonso é um exemplo dessa necessidade de juízo de valor e praticidade social na
sua famosa Teologia Moral. Ela surge do impasse entre a lei e a liberdade, ou
mais concretamente dizendo: do conflito entre a normatividade casuística de
dois grupos religiosos antagônicos (laxistas e rigoristas) e um povo periférico
(cabreiros) que vivia em outras condições sociais, com uma mentalidade e
costume diferente das duas potencias religiosas. É a partir desse conflito entre
duas posições contrárias e a realidade particular de um povo simples que Afonso
constrói uma Teologia Moral da Benignidade, uma Teologia em que a “consciência”
possuiu as faculdades e luzes divinas necessárias para julgar e decidir sobre
sua própria vida, em vista do Bem Comum. Ainda hoje, inevitavelmente, é a
partir dessas espécies de conflitos sociais contemporâneas que se exige da
ética cristã uma resposta á altura de sua promessa salvífica redentora.
Para
falar de conflito social necessariamente vamos passar pela temática da luta de
classe. Porém, antes de tudo, é preciso distinguir que: o que caracteriza um
conflito como social é o seu aspecto de oposição coletiva, isto é, oposição entre
certas camadas sociais ou no interior de uma mesma camada. Um conflito que na
maioria das vezes se realiza em vista da tomada do poder. Portanto, o conflito
social não se trata de desacordos ou conflitos entre dois indivíduos, mas entre
dois grupos, ou certa coletividade, ou categorias sociais em vista de um poder.
É possível encontrar tais conflitos no campo cultural, político, econômico,
religioso e etc. Mas vamos nos ater ao aspecto conflitivo social em relação com
a ética cristã. Segundo o alemão e sociólogo Ralf Gustav Dahrendorf (1929-2009)
o conflito social pode ser definido em dois pontos: 1) por “volume de unidade
social”, isto é, entre representantes, dentro de grupos sociais, agrupamentos
ou unidades maiores. Ou 2) por categorias de grupos como entre empresários e
sindicatos, entre setores políticos e etc. Já o filósofo Ildefonso Murillo
trata de dois tipos de conflitos: a) o ideológico (quando há oposição de
valores e ideais de mundo entre dois grupos) e b) os conflitos por escassez de
bens e valores (quando os bens de alguns grupos excluem outros grupos dos
mesmos direitos de bens). O Brasil é um exemplo visível desta última categoria
de conflito. Tais conflitos demarcam de modo geral a experiência humana social,
nas suas relações econômicas, políticas e religiosas.
A
partir disso podemos agora sustentar que a realidade social do conflito parte
sob duas posições: uma negativa e outra positiva. A negativa sustenta o
conflito como doença patológica, algo anormal, ação irracional do sujeito ou
grupo social. A posição positiva observa o conflito como dinâmica que
transforma a sociedade. Assim, seguimos a orientação moral do teólogo Marciano
Vidal em que:
o conflito social não se deve ser
interpretado unicamente em relação com a situação presente dos sistemas
sociais, mas também e, sobretudo, em referência as mudanças da estrutura
social. ‘Minha tese é que a missão constante, o sentido e o efeito dos conflitos
sociais se concretizam em manter e fomentar a evolução da sociedade em suas
partes e em seu conjunto [...] (VIDAL, 1979, p. 568).
Tal
visão positiva é concordante com uma proposta ética social e está de acordo com
a ética social cristã. Entre as causas dos conflitos há uma postura que não
pode deixar de ser vista e refletida pela ética cristã. Trata-se da observação
do conflito social determinado pela base econômica, pela injusta desigualdade
do sistema de produção. É o conflito que numa visão marxista está relacionado
com a luta de classes. Ora, a Igreja
não tem uma resposta pronta ou fechada sobre a causa de tal conflito, apenas
ela constata que cada dia está mais claro que existe uma guerra entre as classes, mas que não se sabe suas causas. Sobre o
fenômeno específico do âmbito da conflitualidade – a luta de classes – é possível
considerar que ela pode ser vista como fato
e como método: “‘A luta de classes é
ao mesmo tempo um fato e um método. É um fato: isto é, a divisão da sociedade
em classes, irredutivelmente antagonistas entre elas, em seus interesses [...].
Este fato é além disso considerado como uma lei histórica” (Ibidem, p.571).“A
luta de classes é [...] um método que se impõe às classes oprimidas para se livrarem,
no sentido de que a transformação da sociedade passa por uma iniciativa
solidária, sistemática, de luta de classes oprimidas contra as classes
dominantes” (Ibidem.).
Após
esses esclarecimentos podemos fazer algumas considerações acerca da postura e
posição da Igreja sobre a questão da luta de classes. Pois quando se fala em
tal conceito, ele está implicado como fator social, da conflitividade, que
exige uma análise cristã. Ao primeiro momento é importante esclarecer que tal
temática não é tranquila de ser debatida, pois “é um tema que preocupa
visivelmente a consciência cristã, mas a respeito dele não existe uma
elaboração teórica suficiente” (Ibidem, p.555). Na Encíclica Rerum Novarum de 15 de Maio de 1891 a
posição da Igreja se demostra contrária à visão da história como luta de
classes: “Não luta, mas concórdia das classes” (nº 8). Na numeração oitava o
documento continua: “O erro capital na questão presente é crer que as duas
classes são inimigas inatas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os
ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado”. Na Mater et Magistra (nº 23) João XXIII
chega a afirmar que “tanto a concorrência de tipo liberal, como a luta de
classes no sentido marxista, são contrárias à natureza e à concepção cristã da
vida”. Pio XII na sua obra Pio XII e os problemas
do mundo moderno, de 1959, no tópico sobre a luta de classes sustenta a postura de “concórdia social para o
progresso e a utilidade comuns” (p.189) contrárias da luta de classes.
Nesse
sentido poderíamos até pensar equivocamente que a posição da Igreja é
totalmente contrária à luta de classes. Todavia, há posições que se sustentam ora
favoráveis e de aceitação (total ou gradual), ora de repulsa em relação á luta
de classesa. Porém, como sustenta Vidal: “De nossa parte cremos que a ética
cristã tem na atualidade uma dupla missão em relação com a luta de classes. Por
uma parte, compete-lhe submeter à revisão crítica a posição vigente na doutrina
social católica; por outra parte, compete-lhe fazer um discernimento sobre a
coerência cristã dentro da luta de classes” (VIDAL, 1979, p. 556). A primeira
revisão que se poderia fazer é que a “doutrina social católica não teve em
conta o caráter histórico-social das classes sociais e de sua luta;
considera-as como algo ‘natural’ confundindo assim classes sociais com
‘funções’ sociais” (Ibidem). “A oposição e o medo ao marxismo introduziram um
‘prejuízo’ inicial na análise e na valoração da luta de classes” (Ibidem). “A
visão interclassista da sociedade que os Papas propocionaram, desde Leão XIII
até Pio XII, é ideológica e carente de realismo” (Ibidem). Tais posturas denotaram
uma visão reduzida, artificial, ideológica e ingênua da Igreja acerca da luta
de classes.
Porém,
no decorrer da histórica a questão da luta de classes foi sendo revista com
mais propriedade e analisada como hermenêutica da realidade econômica e
política social. A teologia desenvolvida na América Latina promoveu uma nova
reflexão acerca dos elementos significativos que compunham a questão da luta de
classes. O decorrer do tempo foi suficiente para que em 1991 o Papa João Paulo
II apresenta-se uma visão menos ingênua e mais esclarecida acerca da
contribuição que a concepção de luta de classes poderia oferecer para o anúncio
da salvação integral do ser humano e o resgate de sua dignidade. Essa postura é
vista na Encíclica Centesimus Annus (nº14)
do Papa João Paulo II, quando, na relação entre conflito social e luta de
classes, ele mesmo acentua que:
não pretende condenar toda e
qualquer forma de conflitualidade social.
A Igreja sabe bem que, ao longo da história, os conflitos de interesses entre
diversos grupos sociais surgem inevitavelmente, e que, perante eles, o cristão
deve muitas vezes tomar posição decidida e coerentemente. A Encíclica Laborem exercens, aliás,
reconheceu claramente o papel positivo do conflito, quando ele se configura
como luta pela justiça social; e na Quadragesimo anno escrevia-se: «com
efeito, a luta de classes, quando se abstém dos actos de violência e do ódio
mútuo, transforma-se pouco a pouco numa honesta discussão, fundada na busca da
justiça.
Nesse
sentido, a nova proposta ética cristã pós-conciliar atuou com uma nova postura
de diálogo e abertura, sem reduzir a história humana à luta de classes, mas de
fazer dela a chave de leitura e o instrumento metodológico de
transformação social no seu aspecto positivo. Neste aspecto foi que houve uma
aproximação da proposta cristã com o comunismo, da luta de classes pela e para
a busca e plenificação do Reino. O economista Paul Lehmann, os teólogos
jesuítas (Gonzalo Arroyo, Jean-Yves Calvez e Henrique Cláudio de Lima Vaz), além
do teólogo Leonardo Boff, foram algumas personalidade referênciais que
contribuíram para aproximação e relação metodológica entre a ética cristã e a
ética marxista. Esses pontos de relação entre ética cristã e marxismo auxiliam
a relevância da ética cristã com a luta de classes nos seus pontos de acordo e
congruência. Nesse aspecto seguimos a proposta ética teológica de Marciano
Vidal onde ele apresenta quatro aspectos fundamentais que é preciso perceber
com clareza sobre a luta de classes para, por conseguinte, explanar um juízo
crítico em coerência com a ética cristã:
– [1] A luta de classes é
primordialmente a situação objetiva de opressão e antagonismo que dinama da
existência das classes. Essa situação é injusta, e, portanto, anticristã. A
luta de classes, em sentido estrutural, deve ser condenada sem reservas. [...]
Como a estrutura classista da sociedade impede a colaboração e harmonia entre
as pessoas de umas e outras classes, as classes devem ser supressas. – [2] A
luta de classes é o esforço dos grupos sociais oprimidos por uma estrutura
clássica da sociedade, para superar essa situação e alcançar sua libertação
sócio-política. Esse esforço é legítimo e a ele devem se somar todos os
cristãos. Ninguém pode opor-se, em nome da fé, à defesa legítima, diante de uma
situação de injustiça estrutural. [...] – [3] A luta de classes é aplicação de
certas estratégias ou táticas, para conseguir a supressão da sociedade classista.
A luta de classes, assim entendida, nem sempre é lícita para um cristão. Existe
meios morais e meios imorais, inclusive para combater situações de injustiça. O
cristão não aceita o uso indiscriminado da violência [...]. – [4]A luta de
classes pode significar, finalmente, a repressão exercida pelos beneficiários
da estrutura classista da sociedade, contra os que se defendem legitimamente.
(VIDAL, 1979, p. 559)
Vamos
expor cada ponto para esclarecer melhor sobre a coerência ética cristã dentro da
luta de classe. Tomamos a América Latina como modelo exemplar para delinear os aspectos
positivos da luta de classes e de sua instrumentalização na ética teológica
cristã. A luta de classes na ética cristã teológica deve passar pelo crivo
ético do Bem Comum. Isso implica que razão de ser e existir na história da luta
de classes é contraria ao essencial do cristianismo. Pois o Reino de Deus não é
para que uma classe domine e submeta a outra, mas para que todos tenham iguais
direitos e condições dignas de vida. Neste sentido é que a luta de classes,
como luta antagônica e submissão de um grupo ao outro, deve ser suprimida, pois
gera injustiça e opressão quando segue a dinâmica da desigualdade social, a
opressão e exploração dos mais fracos. Assim a situação histórica, de grupos
antagônicos, de luta de classes, de exploração e injustiça é a problemática que
precisa ser superada. Na América Latina tal realidade histórica se faz patente
como foi apresentado no concílio de Medellín e Puebla. Diante dessa situação a
ética dos cristãos tenta sanar tal situação injusta, tal dinâmica que privilegia
poucos e explora muitos.
Se no primeiro ponto se
observou o aspecto negativo e basilar da luta de classes que são considerados
pela ética cristã, no segundo ponto se sustenta que a luta de classes é
assumida no seu aspecto positivo: ela se constitui como a luta da classe
oprimida por libertação sócio-política. Se há um antagonismo estrutural então a
dinâmica a que se apoia a ética cristã é a luta do oprimido por libertação, por
justiça, por paz, por dignidade. É nesse aspecto que a classe oprimida se
esforça por amenizar ou sanar o antagonismo existente. Isto ela faz lutando por
direitos e condições igualitárias. A teologia da libertação segue tal
orientação ética. Ela parte da realidade dos oprimidos, os pobres, para
libertá-los do pecado estrutural e social. É um esforço de libertação: “esse
esforço é legítimo e a ele devem se somar todos os cristãos. Ninguém pode
opor-se, em nome da fé, à defesa legítima, diante de uma situação de injustiça
estrutural”.
O terceiro ponto se
remete à práxis. Ao caminho, ou ação realizada para alcança a libertação, a
supressão do sistema classicista. Este ponto nos orienta para termos uma
moralidade e legitimidade que seja realizada em concordância com a
possibilidade cristã de realizar a dinâmica do Reino. Neste sentido a luta
exercida pela classe oprimida não pode ser aquela da classe opressora. Neste
campo a situação se torna delicadíssima, pois envolve as possibilidades e
condições de libertação. Todavia, tal luta não pode agir de má fé, mas para a
plena realização da justiça, do Bem Comum. Tal dinâmica pode ter como norte a
ação evangélica do “fazer aos outros aquilo que queremos para nós”. Se a práxis
da libertação for uma imitação da perversão do opressor, então ela estará fora
da ética cristã. Pois a libertação autêntica engloba aquilo que nos é de
direito e justo de acordo com a variabilidade das condições nas suas
problemáticas nuanças.
O quarto ponto se
reporta à medida que se volta contra aquele que está na situação de oprimido.
Essa situação de repressão se demonstra por uma coação e normalmente é exercida
por aqueles que são beneficiados pela estrutura injusta. Trata-se das ações
legalistas e jurídicas alheia à vontade cívica, que denigre e transgride o Bem
Comum e a Dignidade Humana. Tal medida contrária à equidade social constitui um
abuso injustificável que necessita de uma constante denúncia. A Reforma no
Ensino, na Previdência Social e na Terceirização trabalhista foram medidas
exercidas no Brasil que não passaram pela opinião pública, pelo voto popular. Tais
medidas foram protocoladas de acordo com a legalidade, todavia, o sistema
político representativo não consultou a opinião pública, mas decidiu pelos
direitos que a lei governamental lhe concedia. Neste sentido tais questões tão
pertinentes à sociedade como um todo não passaram por um amadurecimento e
vigência pública, mas pelos interesses pertinentes às empresas particulares
estatais e à economia de um específico setor empresarial capitalista: o setor
primário. As consequências de tais medidas é a redução no sistema econômico
público em prol de um crescimento dos bens privados. Portanto, a conta de tal
desigualdade e desequilíbrio econômico será posta na grande massa populacional
trabalhadora. Tais medidas estão passando pela legitimidade, mas não se pode
dizer que assumem o caráter de eticidade cristã e do Bem Comum.
terça-feira, 1 de agosto de 2017
Santo Afonso e a Reestruturação.
Foi com alegria que toda a Igreja e
nós, Missionários Redentoristas, celebramos no dia 1º de agosto desse ano a
festa de Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1787): o fundador de nossa
Congregação Missionária cujo carisma inspirador é levar às pessoas abandonadas,
principalmente, aos pobres e excluídos, a Copiosa Redenção. No prosseguir desse
projeto- de continuar Jesus Cristo Redentor- os Missionários Redentoristas da Vice-província de Fortaleza tiveram em
Assembleia capitular na Casa de Retiro das Irmãs Cordimarianas (Caucaia)
entre os dias 24 e 28 de 2017.
Neste Capítulo tratamos sobre o
tema do 24º Capítulo Geral (2009): "Reestruturação
para a missão: esperança em ação”. O tema da Reestuturação foi inspirador
para deslumbrarmos os novos percursos acerca da Missão Redentorista nas nossas
áreas de atuação. Apesar desta temática ser nova, ela não deixou de estar
presente no percurso de fundação e itinerário de origem da Congregação. Por
isso, fazendo memória celebrativa do nosso Fundador em sintonia com o tema da
Reestruturação dos Missionários Redentoristas, apresentamos aqui quatro pontos da vida de Santo Afonso de Ligório que marcam
e perpassam as linhas gerais e fundamentais da proposta de Reestruturação
presente no 24º Capítulo Geral e meditada na Assembleia da Vice-província.
A primeira reflexão se refere a
vocação específica de Santo Afonso. Falamos da Inspiração para fundar a
Congregação do Santíssimo Redentor. A vida de Santo Afonso foi sempre em busca
de saber o que Deus queria dele. Por isso que estando em Scala sentiu a
necessidade de criar uma Congregação que ajudasse espiritualmente aos
cabreiros, pobres e abandonados, da igreja e da sociedade de Nápoles. O
despertar da fé foi concedido por uma Irmã chamada Maria Celeste Crostarosa.
Foi ela quem assegurou a Santo Afonso: Jesus quer criar um Instituto o qual o
senhor (Padre Afonso) será o fundador. Essa maturidade vocacional para atender
ao chamado de Deus foi se realizando aos poucos. Portanto, a origem dos
Missionários Redentoristas se deu por um despertar vocacional, uma chamado de
Deus, no coração de Afonso, para algo novo, que precisou de uma mudança
vocacional. Isso reestruturou a vida de Afonso e abriu um novo horizonte de
maturidade e discernimento vocacional, para além de uma vida clerical-sacramental.
O projeto de Reestruturação da Congregação é mais do que uma mudança de
estrutura, é um despertar vocacional para um novo horizonte que estamos nos
deparando na pós-modernidade: o horizonte de uma realidade frágil e ferida.
Portanto assim como Santo Afonso despertou vocacionalmente para águas mais profundas,
do mesmo modo é a direção que a Reestruturação tenta realizar em nós: uma
Reestruturação em função da validade, necessidade e vitalidade de nossa vocação.
O despertar da vida vocacional de
Santo Afonso se deu em um horizonte que poucos sacerdotes observavam em Nápoles:
as periferias. A Capital napolitana era cheia de sacerdotes que viviam sob os
cuidados das grandes famílias. Estas eram as ricas madrinhas de hoje. O serviço
apostólico estava acomodado mais ao status e regalias do que ao trabalho
clerical e missionário. A missão destes sacerdotes era mais de manutenção
sacramental e religiosa das famílias do que a construção de um novo estilo e
modo de experimentar e viver a fé. Enquanto que a capital era abarrotada de clérigos,
as periferias e lugares precários (como os hospitais dos incuráveis e a região
dos lazzarones) eram locais escasso do trabalho ministerial e apostólico dos
sacerdotes. Santo Afonso não se acomoda ao status quo, não se submete às
vantagens de uma Nápoles que acomoda sacerdotes para um bem estar clerical
pessoal e até egoísta. Afonso vai para as periferias, toma uma atitude
diferenciada, vai até aos pobres-cabreiros- de Nápoles. Seu itinerário é em
vista de uma nova missão: acolher aos pobres e viver a partir deles. Amparar
aos esquecidos pela Igreja. É nesse sentido que a missão afonsiana se apresenta
na constituição de um carisma específico, de um povo específico, de uma área
específica. Assim como o itinerário de Santo Afonso, a Reestruturação se dá em
vista da ressignificação do carisma e Missão Redentorista. As periferias continuam
sendo um polo especial pelo qual a Vice-província de Fortaleza revitaliza a sua
missão e prioridade apostólica. A Reestruturação está na revitalização de uma
missão que não pode esquecer as periferias existenciais hoje. Um ir ao encontro
dos pobres e abandonados, e não esperar por eles em berço esplendido.
A vida de Santo Afonso foi uma
busca incessante por conversão. As mortificações, os silícios, os jejuns e abstinência
que Santo Afonso realizou durante toda a sua vida tem uma marca forte de
conversão. Era um coração que gastou suas forças em fazer a vontade de Deus. Os
escritos deste Santo possuem marcas de uma pessoa que nunca estava satisfeita
com o que alcançou da graça divina, mas que se via sempre na necessidade de
mudar a partir de dentro: era uma conversão interior que se manifestava no
cotidiano da vida. As horas de oração, a preocupação em assistir aos que o
procuravam, a inquietude para sempre fazer mais pelo Reino de Deus e o gastar a
vida em função dos seus confrades e da missão nos faz ver Santo Afonso como um
homem que não perdeu tempo para se converter e se solidarizar com os seus, a
fim de que todos amassem cada dia mais a Deus. A proposta de Reestruturação é
antes de tudo para a conversão interior, uma conversão do coração e um ser
solidário em vista da união constante e estreita ligação do outro com Deus. Sem
conversão a Reestruturação é projeto falido, sem solidariedade e responsabilidade mútua a caridade
redentora trai o carisma fundacional da Congregação.
Sem a constante unidade e paixão de
Santo Afonso por Jesus Cristo, a Congregação não teria surgido. É a experiência
do amor por Deus que faz nosso Santo fundar uma Congregação sem nenhuma condição
ou segurança de prosperidade. A única coisa que realmente motivou Afonso foi a
fé. E isso se deu por uma constante comunhão com Deus. Uma união de amor que confiou
em Deus, mesmo quando as coisas pareciam chegar ao fim, quando tudo pareceu dar
errado. Foi assim que o pequeno grupo fundacional redentorista começou, num
casebre, sem quase nada, em condições precárias de vida e com algumas pessoas
que posteriormente deixaram o projeto de Deus. Somente a união e paixão por
Jesus Cristo fez com que Santo Afonso não abrisse de mão do projeto. De modo
semelhante o projeto de Reestruturação implica a necessidade de uma união e
comunhão com Deus, uma paixão decidida por Jesus e uma confiança em quem nos
chamou por primeiro. Em poucas palavras: a Reestruturação deve nos motivar para
um revivamento de nossa Espiritualidade. Sem isso o projeto de Deus não vai
funcionar. Pois mesmo que a origem da Congregação seja divina, portanto, sob a
vontade de Deus, a sua existência e continuidade depende de nossa constante busca
e união com Deus. É a nossa resposta de amor para um Deus redentor que nos amou
por primeiro, que nos fez sem nós, mas que não pode nos salvar sem a nossa
opção por Ele.
domingo, 30 de julho de 2017
Aspectos gerais de uma Teologia Fundamental
A expressão Teologia Fundamental tem sua origem
conceitual disciplinar a partir do século XX, após o Concílio Vaticano II,
quando as primeiras obras publicadas pelos teólogos J. N. Ehrlich, A. Knoll, I.
L Guzmics, dentre outros, utilizaram a nova nomenclatura de Teologia Fundamental (KERN, 2004, p. 756)
para se reportar aos conteúdos essenciais da fé, aos elementos fundamentais e
fundantes da Teologia cristã. Porém, no seu aspecto conteudista a Teologia
Fundamental “nasceu da apologética clássica e de uma reflexão, feita por esta,
sobre a necessidade de reformar-se, sob pena de desaparecer” (FISICHELLA, 1994,
p. 949) na história. Essa reforma se deu para que a Teologia, inspirada nas
verdades essenciais da fé, continuasse respondendo de modo atualizado e contínuo
aos questionamentos e problemas que a sociedade lhe apresentava. Tais
questionamentos foram de grande contribuição tanto para a construção de uma
Teologia Fundamental, sobre a fé e vida dos cristãos na Igreja, como para a
civilidade ética e humanização processual da sociedade. Se por um lado a
Teologia Fundamental nasce da apologética, por outro sua inspiração se assenta
nas Sagradas Escrituras ou especificadamente na Primeira Epístola de Pedro
(3,15), onde ele afirma: “santificai a Cristo, o Senhor, em vossos corações,
estando sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la
pede”. É partindo dessas considerações
que tratamos aqui sobre o percurso da Teologia Fundamental na história da
Igreja, nos seus diversos períodos de documentos conciliares, assim como na
realidade da América Latina.
Categorias
base da Teologia Fundamental
A Teologia Fundamental
pode ser resumida categoricamente em três palavras que se inter-relacionam:
Revelação, Fé e Credibilidade. A Revelação é a proposta de Deus uno e trino
para o ser humano (LIBANIO, 2004, p. 13). Trata-se da verdades de Deus
comunicada a nós e anunciada pelos profetas, plenamente realizada em Jesus
Cristo, transmitida e continuada pela Igreja, enquanto esta é espaço que acolhe
e conserva a boa nova de Deus. A Revelação se destina a salvação humana e nesse
aspecto ela é uma resposta aos anseios da humanidade, às perguntas que esta tem
(LIBANIO, 2004, p. 31). Sendo a Revelação essa proposta, a fé pode se defini em
dois aspectos: primeiro como uma adesão à Revelação, uma acolhida do que nos é
comunicado. E, por conseguinte, uma resposta de Fé (Creio) diante do revelado
(LIBANIO, 2004, p. 14). Neste segundo aspecto a Fé se torna ativa, pois envolve
a liberdade do ser humano para dizer “sim” com palavras e com ações ao projeto
de Deus. Portanto, trata-se tanto de uma fé aberta, que contempla e acolhe a
verdade de Deus (LIBANIO, 2004, p. 135), como uma fé prática, que atua no
compromisso social como resposta da verdade que lhe foi revelada (LIBANIO,
2004, p. 165). A Credibilidade que a Revelação possui e que, por conseguinte, a
fé confirma está em Deus mesmo. A Palavra de Deus merece fé porque é o próprio
Deus que a comunica e tal verdade revelada não pode contradizer ou negar a quem
nos fala: Deus. Dito de outro modo: a Revelação tem credibilidade em Deus mesmo que não pode se
contradizer e nem nos enganar (DH 3017). Pelo
aspecto da Credibilidade podemos perceber que a “Revelação e
fé constituem uma unidade profunda” (LIBANIO, 2004, p. 14), pois tanto a
Revelação como a fé são dons de Deus, assim como a Revelação implica a fé,
enquanto esta se realiza mediante a Revelação divina.
Períodos
históricos da Teologia Fundamental
Os conteúdos que
qualificam e especificam a Teologia Fundamental foram construídos e definidos
ao longo do percurso histórico da Igreja-comunidade-crente, na sua caminhada
com a sociedade cívica e na sua relação com as diversas expressões religiosas e
antirreligiosas que existiram em certos períodos históricos. No século I,
período em que o cristianismo germina e acontece a cisão com o Judaísmo, os
elementos essenciais de fé cristã se inserem com força na cultura greco-helenista.
Tais elementos primários e originários da Teologia dos primeiros cristãos se
apresentam nos escritos de caráter narrativo-catequético, como podemos ver nas cartas
Paulinas e no livro dos Atos dos Apóstolos. Em Atos 8,26-35 podemos encontrar
Felipe esclarecendo a fé cristã para o eunuco. Felipe ressalta o ponto central fé
cristã como chave de leitura para explicar ao Eunico o trecho de Isaias 53,7-8:
“Dirigindo-se Filipe, disse o eunuco: ‘Eu te pergunto, de quem diz isto o
profeta? De si mesmo ou de outro? Abrindo então a boca, e partindo deste trecho
da Escritura, Filipe anunciou-lhe a Boa Nova de Jesus”. É neste aspecto teológico-catequético
que se dá o querigma fundamental da fé cristã nos seus primórdios.
No século II, a saber,
da Teologia patrística, quando o cristianismo se expandia, ainda não como
religião oficial do império romano, houve grandes perseguições aos primeiros
cristãos. É desse contexto que a Teologia começa a se moldar com uma reflexão
de fé e com o discurso intuitivo pastoral, na figura dos Padres apostólicos como Clemente, Inácio, Policarpo, e dos Padres Apologistas como Justino, Taciano
e Teófilo, dentre outros. A Teologia cristã desse período ganha a base inicial
com o dogma cristológico-trinitário e as práticas sacramentais (LIBANIO; MURAD,
2011, p. 110). Do século III ao VI nos situamos na fase esplendorosa da Patrística
e no período de oficialização do cristianismo como religião obrigatória em Roma.
É o período de heresias cristológicas e de mistura da Teologia cristã com o
gnosticismo e outras correntes contrárias a doutrina cristã. A figura de Santo Agostinho,
Santo Ambrósio, Leão Magno e São Jeronimo, dentre outros, marca o esforço
teológico de se fazer inteligível, compreensível e racional a Teologia.
Trata-se da Teologia Fundamental na sua forma apologética da fé e na sua
refutação contra a heresias.
Na Idade Média que vai
do século VIII ao XV a Teologia assume outras formas de organização e recursos
argumentativos para uma melhor fundamentação da fé. Neste período os
comentários das Escrituras se tornam um dos pontos fortes da Teologia. Os
escritos aristotélicos influenciam a forma como a Teologia se fundamenta, isto
é, pelo instrumental racional apologéticos. Neste sentido as verdades teologais
são expostas em premissas e numa argumentação dedutiva lógica. Pelo viés da Disputatio a Teologia refuta os argumentos
contrários a sua sacra doctrina e se
auto afirma como Ciência. Vale ressaltar que só após esse período é que se
utiliza conceitualmente o termo Teologia para
os saberes referentes às coisas de Deus. A Suma
Teológica de Santo Tomas é um exemplo de como a Teologia se estruturou mais
categoricamente, discursivamente e metafisicamente (LIBANIO; MURAD, 2011, p. 111-116).
Tais recursos facilitaram para que a Teologia possuísse uma estrutura
sistemática mais elaborada acerca dos elementos importantes da fé cristã.
No período do Humanismo
renascentista a Teologia retoma os escritos antigos e dá ênfase ao estudo da
língua e traduções literárias. Os padres copistas da tradição medieval continuam
no seu trabalho de tradução e interpretação dos escritos bíblicos. Porém, há
uma preocupação maior com os saberes esquecidos pela tradição
escolástica-aristotélica, como a poesia, a literatura, a prosa e a filologia,
dentre outros. Há um valor relevante para com a cultura pré-cristã, um certo
relativismo religioso e uma teologia voltada para o aspecto antropológico, com
destaque nas experiências existenciais e culturais humanas. Nesse contexto os
teólogos Erasmo de Roterdão e Pico Della Mirandola observam saberes de outras
culturas e religiões em concórdia com o cristianismo. Mas uma figura emblemática
na Teologia é Martinho Lutero que na viragem do humanismo renascentista retoma
a Teologia, porém, fundamentada nos escritos bíblicos, na exclusividade de
Jesus Cristo como autor único de Salvação e na predominância da Graça na vida
do indivíduo. A postura luterana contribuirá para que na Modernidade e
Pós-Modernidade se observe no campo fundamental e sistemático da teologia as
Sagradas Escrituras e Jesus Cristo como a alma da Teologia.
No início da
Modernidade, do século XVIII em diante, a Teologia é questionada pelos
pensadores da dúvida. É o Iluminismo racionalista autônomo, as novas ciências
humanas que surgem (sociologia e psicologia), as correntes teológicas
protestante e reformistas, os diversos pensadores da dúvida, o secularismo e a
cultura ateia que se manifesta no ethos social. Nesse contexto os elementos
fundamentais e secundários da Teologia são colocados em questionamentos. E a
postura apologética da Igreja persiste na explanação de suas verdade
fundamentais e no decretar Anátema
para os que discordavam de sua postura e doutrina de fundamento teológico.
A Teologia
Fundamental no Concílio Vaticano II
Todavia, é no Concílio
Ecumênico do Vaticano II que a teologia muda de uma postura defensiva e
excludente do mundo e da sociedade moderna, para uma postura mais aberta,
ecumênica e dialogal. É no florir do século XX para o XXI que a Teologia muda,
não somente o seu discurso e postura, mas também a nomenclatura de uma Teologia
apologética para uma Teologia Fundamental.
Na modernidade e pós-modernidade conciliar a Teologia Fundamental assume o
estatuto semântico, conceitual-conteudista e disciplinar.
Do
Concílio Vaticano II à Contemporaneidade as questões referentes à Teologia
Fundamental tiveram nova reflexão teológica e filosófica, assim como uma
abertura dialogal às novas ciências que emergiram na sociedade e ao novo
aparato tecnológico-instrumental-científico moderno e pós-moderno. Porém, duas
tendências marcam a orientação da Teologia Fundamental: a primeira é a relação
da Teologia com a Antropologia, em que o sujeito da experiência se torna o
destinatário moderno e pós-moderno das verdades fundamentais da fé cristã. Essa
abordagem antropológica tem como expoente teológico o jesuíta Karl Rahner
(1904-1984). Para ele a Teologia se caracteriza como uma antropologia (LIBANIO,
2004, p. 32), pois a comunicação de Deus e a experiência humana possuem uma
correspondência.
A
segunda tendência se reporta à história. O mundo não se torna o lugar estranho
ou de negação humana, mas realidade histórica, o lugar onde o ser humano se
salva e onde a humanização acontece. Nesse sentido Rahner contribui na
construção de uma Teologia que sustenta que a história da salvação realizada
por Deus na história não é contraria à história da humanidade, mas se
identifica com esta. Isto é, que a história da salvação é a história da
humanidade. E que “é necessário dizer antes de tudo que a história do homem,
verdadeiramente entendida, [...] é precisamente a história dum ser
transcendental enquanto tal” (RANHER, 1965, p. 40). Tal história se relaciona
diretamente com a nossa fé e com o modo de ser humano na história. Por isso que
tal história faz parte dos elementos abordados na Teologia Fundamental.
A
Teologia Fundamental, na Modernidade do final do século XX para o século XXI,
assumiu na América Latina o seu aspecto histórico, cultural, social e prático,
como espaço importante de teologização. Deste modo a Teologia assumiu o
adjetivo de Libertação, a partir de uma inspiração bíblico teológica, na
leitura da realidade injusta, desigual e opressiva que se passou com a maioria
do povo do continente latino-americano: os pobres (LIBANIO, 2004, p. 50). A Teologia Fundamental tratou de seus
elementos categóricos- Revelação, Fé e Credibilidade- em relação com outros
elementos teológicos como o Reino, Mundo e a Libertação. Nesse período a
reflexão da teologia não se reporta predominantemente pela inter-relação
fé/razão, sustentada na Idade Média e até por Bento XVI, mas pela inter-relação
teoria/práxis. Esta inter-relação reflete: se realmente aquilo que se
acredita tem efeito e concordância com a pratica do cristão ou se é pura ideologia.
É nessa dialética que a Teologia tenta fazer um caminho coerente com suas
verdades fundamentais em sintonia com a realidade da América Latina.
A Teologia Fundamental a partir dos documentos da
Igreja das Conferências da América Latina
Após
essa necessária exposição do percurso da Teologia Fundamental desde sua
inspiração bíblica e histórica com a trajetória dos primeiros cristão até a
contemporaneidade, se faz necessário observar os conteúdos dessa Teologia
presentes em alguns documentos conciliares e nas duas conferencias da América
Latina (Medellín e Puebla) para percebermos como o aspecto tri-categorial (Revelação-Fé-Credibilidade)
da experiência teológica cristã marcou e delineou a Teologia Fundamental nos seus
conteúdos e no ato do crer cristão até hoje. O aspecto
tri-categorial se concretiza e se desenvolve em diversos períodos da história
da Igreja. Eles se expressam nos diversos documentos da Igreja.
Na primeira parte do
Concílio de Trento (1545-1563) encontramos nos documentos conciliares duas bases
de fundamentação da Teologia, a saber, nas sagradas Escrituras e na Tradição
(LIBANIO, 2004, p. 29). O Decreto sobre
os livros sagrados e as tradições a serem acolhidas (1546) vai se ocupar de
falar da natureza da Fé e relacionar a Revelação com o “Evangelho”, que deve
ser pregado “‘a toda criatura’ [Mc 16,15] como fonte de toda a verdade salutar”
(DH 1501), que conduz à nossa salvação e também é uma regra de costumes. Ora, a
verdade de tal Fé está contida nos “livros escritos e nas tradições não
escritas” (DH 1501). O Decreto trata
dos elementos fundamentais transmitidos pela Igreja como “a verdadeira e são
doutrina” (DH 1520). O aspecto da Credibilidade se situa no próprio Deus que é
autor do Antigo e do Novo testamento (DH 1501). A Revelação também se relaciona
com a Graça para a justificação do homem no Decreto
sobre a justificação (1547). Porém, tal Graça não anula o arbítrio humano
na sua adesão e resposta de Fé para a salvação humana. O significativo desse Decreto está na tensão entre a graça, a
predestinação e a ação humana diante das posições errôneas e contrárias da
reforma protestante. Tais ensinamentos se demonstram contrários à Teologia
Fundamental da Igreja.
No Concílio Vaticano I
(1869-1870) o aspecto tri-categorial da Teologia segue o recurso linguístico e
argumentativo escolástico-tomista. A tensão contextual está na legitimidade da
autoridade da Igreja, da infalibilidade papal, da explicação da fé católica e a
doutrina a respeito da Igreja de Cristo.
Na Constituição Dogmática “Dei
Filius” sobre a fé católica (1870) a perspectiva da Fé se situa no crê e
confessar que “há um [só] Deus verdadeiro e vivo, Criador e Senhor do céu e da
terra, onipotente, eterno, imenso, compreensível, infinito em intelecto.
Vontade e toda a perfeição” (DH 3001). A Revelação perpassou o segundo
capítulo, onde Deus se deu a conhecer pela via da razão humana, das coisas
criadas, pelo conhecimento das suas obras, “mas que aprouve à sua
misericórdia e bondade revelar-se à humanidade a si mesmo e os eternos decretos
da sua vontade, por outra via, e esta sobrenatural, conforme diz o Apostolo” (DH
3004). A Credibilidade não se situa somente na ação divina de Deus, mas na própria
condição humana que tem a possibilidade de encontrar-se com a verdade revelada,
pois a Revelação divina pode ser conhecida por todos, “com firme certeza e sem
mistura de erro, aquilo que nas coisas divinas não é por si inacessível à razão
humana” (DH 3005). Nessa dinâmica o documento expressa a relação entre fé e
razão: “Mas, ainda que a fé esteja acima da razão, jamais pode haver verdadeira
desarmonia entre uma e outra [*2776; 2811], porquanto o mesmo Deus que revela
os mistérios e infunde a fé, dotou os espírito humano da razão” (DH 3017). A
credibilidade também se situa em “crer ‘ser verdadeiro o que Deus revelou’”
(LIBANIO, 2004, p. 68)
Ainda no segundo
capítulo, a Revelação de Deus é intermediada pelos “profetas” e expressa pelo
“Filho” de Deus. A Revelação se situa 1) na relação com no conhecimento natural
de Deus, 2) no aspecto sobrenatural, 3) na dupla necessidade da revelação
sobrenatural, 4) nas escrituras e tradição e numa trajetória histórica e
cultural 5) da tradição para o magistério eclesial (THEOBALD, 2006, p.
228-238). O capítulo 3 trata
especificadamente da Fé. Nesta somos obrigados a prestar “plena adesão do
intelecto e da vontade” (DH 3008) a Deus que se revela. A Fé e razão estão em sintonia. A autoridade
e credibilidade de Deus que não pode se enganar e nem nos enganar é ressaltada.
Porém a postura de Fé não pode ser “um movimento cego da alma” (DH 3010), mas
sob a iluminação e a inspiração do Espírito Santo. O aspecto tri-conceitual da
Teologia demarcou a resposta da Igreja para os erros das três correntes da
Modernidade: o racionalismo, o materialismo e o ateísmo.
No Concílio Vaticano II
(1962-1965) estamos diante de outra realidade que exige da Igreja uma
reformulação teológica. A Teologia se situa numa necessidade de abertura para
com o mundo, com um aprofundamento da vida cristã, uma adaptação à nova
realidade “moderna”, para a promoção da unidade dos cristãos e o ardor
missionário da Igreja. A Teologia esboça seu aspecto pastoral, com uma
linguagem mais moderada e dialogal, porém sem desprezar os pontos essenciais do
crer cristão. A Constituição dogmática
sobre a Revelação divina “Dei verbum” (1965) foi a que mais tratou e
desenvolveu o tema da Revelação. A Dei
verbum subdivide-se em 7 capítulos, situando a Revelação nos seus princípios
fundamentais (LIBANIO, 2004, p. 31) até seu modo de atuação e relação na vida
da Igreja e do povo de Deus. De modo prevalente a Dei Verbum tratou da Revelação com a “sua plenitude e sua mediação
absoluta na Palavra feita carne, Jesus Cristo” (RIVAS, 2015, p. 323). Tal constituição
expressava uma abertura, diálogo e interação do Concílio com a Modernidade.
A Revelação é concebida
como uma autocomunicação de Deus (RAHNER, 1989, p. 180 Rahner), de um Deus que
se doa como Dom e Graça. Dessa relação comunicativa se desencadeia uma história
de salvação pessoal e da humanidade. Há um modo de pensar a Revelação como um
vínculo estreito de amizade com a criatura. “Mediante esta revelação, portanto,
Deus invisível [cf. Cl 1,15; 1Tm 1,17], levado por seu grande amor, fala aos
homens como a amigos” (DH 4203). O
aspecto da Fé está ligado à obediência “pela qual o homem livremente se entrega
todo a Deus, prestando ‘ao Deus revelante plena adesão do intelecto e da vontade’
e dando voluntariamente assentimento à verdade por ele revelada” (DH
4205). A Credibilidade se situa na
própria Palavra de Deus que se fez carne, o Verbo divino que comunica “e
consuma a obra salvífica que o Pai lhe confiou” (DH 4204). Por isso, “,
ao qual quem vê o Pai [cf. Jo 14,9]. Por toda a sua presença e manifestação por
palavras e obras, sinais e milagres, e especialmente por sua morte e gloriosa
ressurreição dentre os mortos e, enfim, pelo envio do Espírito de verdade,
realiza e completa a revelação, e confirma com testemunho divino de que Deus
está conosco” (DH 4204). A Teologia desse Concílio está objetivada no aggiornamento da mensagem cristã para
com as novas realidades modernas e pós modernas que surgem. A abertura da
Teologia, numa perspectiva ecumênica e dialogal, não deixa perder de vista a
essência e os fundamentos da crença e vida cristã.
Na América Latina pós
conciliar é possível considerar como relevante à Teologia Fundamental as duas
Conferências que marcaram significativamente a Teologia da América Latina, a
saber, de Medellín e Puebla. As Conclusões
da Conferência de Medellín (1968)
tiveram a finalidade clara de renovar e aproximar do homem da América Latina o
dom da Fé. A teologia de então acentuava a tomada de consciência das condições
de exploração, escravidão, pobreza e miséria. “Essa miséria, como fato
coletivo, é qualificada de injustiça que clama aos céus” (CCM, 2010, n. 1, p. 45).
A Teologia se fundamenta,
então, a partir da ação de Deus que “envia seu Filho para que feito carne,
venha libertar todos os homens, de toda as escravidões a que o pecado os
sujeita: a fome, a miséria, a opressão e a ignorância, numa palavra, a
injustiça e o ódio que têm sua origem no egoísmo humano” (CCM, 2010, n. 3, p.
46). O aspecto da Fé se situa nos princípios teológicos para uma pastoral e
religiosidade popular. A Fé e a Igreja “semeiam-se e crescem na religiosidade
culturalmente diversificada dos distintos povos. Fé, que embora imperfeita,
pode encontrar-se ainda nos níveis culturais mais inferiores” (CCM, 2010, n. 5,
p. 112). Na relação intrínseca da Fé com o Verbo, “a Igreja aceita com alegria
e respeito, purifica e incorpora à fé os diversos ‘elementos religiosos e
humanos’ que estão presentes nesse religiosidade como ‘semente oculta do Verbo’
e que constituem ou podem constituir uma ‘preparação evangélica’” (CCM, 2010, n.
5, p. 112). Na perspectiva da Conferência a “evangelização deve orientar-se
para a formação de uma fé pessoal, adulta, interiormente formada, operante e
constantemente em confronto com os desafios da vida atual” (CCM, 2010, n. 13,
p. 120).
É no âmbito da
catequese renovada que o documento expressa mais claramente a conexão da
Revelação com a vida humana, numa unidade integradora entre a salvação humana e
a história da mesma. Daí “deve-se expressar sempre a unidade profunda que
existe entre o plano divino de salvação, realizado em Cristo, e as aspirações
do homem [...]; entre a Igreja, Povo de Deus, e as comunidades temporais; entre
a ação reveladora do Deus e a experiência do homem” (CCM, 2010, n. 4, p. 126).
“De acordo com esta teologia da revelação, a catequese atual deve assumir
totalmente as angústias e esperanças do homem do homem de hoje, para
oferecer-lhe as possibilidades de uma libertação plena, as riquezas de uma
salvação integral em Cristo, o Senhor” (CCM, 2010, n. 6, p. 127). Tal afirmação
sobre a Revelação de Deus que se faz patente em Jesus Cristo, não somente é
válida para a catequese formativa da evangelização, mas para todo o povo de
Deus. Dai é possível perceber alguns princípios fundamentais da teologia que
impulsionam o compromisso com a realidade social da América Latina.
As Conclusões da Conferência
de Puebla
(1979)
se situam numa compreensão histórico-concreta da América Latina e da atuação da
Igreja na mesma. O aspecto da Teologia latino-americana trata “da comunicação
da Palavra e da Vida de Deus, que deve[...] ser luz e fermento de toda a vida
humana” (CCP, 1987, n. 2, p. 51). A Teologia não está embasada no aspecto
dogmático e nem pastoral, mas na incidência da evangelização no nosso
continente. O crer cristão se relaciona com a comunhão e participação do povo
na evangelização. É nesse percurso que podemos encontrar os elementos
fundamentais da Teologia Latino-Americana. Tal Teologia tem como base o
Evangelho. É a partir dele que podemos refletir para uma práxis transformadora
da realidade de injustiça e miséria da América Latina. Assim a Teologia atua
“num PROCESSO DINÂMICO E PERMANENTE de evangelização, de tal forma que todo o
cultural, o político, o econômico, o social, seja lido e discernido a partir do
Evangelho” (CCP, 1987, n. 5, p. 54).
A dimensão da Fé passa
pelo prisma da Política no sentido aristotélico de direito natural e compromisso
com a realidade social. A Fé insere o cristão “na realidade do homem
latino-americano, realidade essa que é expressa em suas esperanças, em seus
triunfos e suas frustrações. Impele-nos esta fé a discernir as interpelações de
Deus nos sinais dos tempos” (CCP, 1987, n. 15, p. 91). O aspecto da Revelação
de Deus, do livro do Êxodo e da Encarnação de Deus, em Jesus, está de modo
atualizado em vista da realidade do “coração dos vários países que formam a AL”
(CCP, 1987, n. 87, p. 105). Trata-se de “um clamor cada vez mais
impressionante. É o grito de um povo que sofre e que reclama justiça, liberdade
e respeito aos direitos fundamentais dos homens e dos povos” (CCP, 1987, n. 87,
p. 105).
A Revelação em Cristo é
“a verdadeira grandeza e só nele é que se conhece, em plenitude, a realidade
mais profunda do homem” (CCP, 1987, n. 169, p. 121). “Revela-nos Cristo que a
vida divina é comunhão trinitária. Pai, Filho e Espírito vivem, em perfeita
intercomunhão de amor, o mistério supremo da unidade. Daqui procede toda
comunhão, para grandeza e dignidade da existência humana” (CCP, 1987, n. 212,
p. 131). Em Cristo somos “iluminados pela fé, situamo-nos na realidade do homem
latino-americano. No aspecto da Credibilidade, é o Espírito de Cristo que
impele cada um a anunciar o Evangelho e que, no fundo da consciência, faz
aceitar e compreender a Palavra de salvação (CCP, 1987, n. 220, p. 133). A Fé
se encarna, assume as culturas e busca o Reino de Deus que se faz na luta por
justiça estrutural, social e pelo direito e dignidade humana.
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CARTA
APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO. Às pessoas
Consagradas: em ocasião do ano da vida consagrada. São Paulo: Paulinas,
2014.
CARTA
ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o
cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
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quinta-feira, 29 de junho de 2017
O Crer em América Latina
Introdução
O aspecto do Crer em América Latina (AL) tem uma
marca no Espírito do Concílio Vaticano II que contribuiu para a articulação da
fé no nosso continente. Os pressupostos inter-relacionais e fundamentais do
“Crer” – Revelação, Fé e Credibilidade – dinamizam-se para uma experiência
vivencial cristã latino-americana. Tal experiência possui um modo particular e
diferenciado de expressão que é distinto da experiência dor Crer cristão na Europa
e nos diversos períodos da história do ocidente. A realidade do continente
latino-americano de pobreza, injustiça, desigualdade e degradação ambiental é o
espaço que se configura e se define o Crer cristão numa acolhida da Boa-Nova de
Deus e com uma práxis evangelizadora e libertadora da pessoa humana. O Papa
Francisco é esse referencial de continuidade e revitalização para o
crer-revolucionário em tal continente.
1
Revelação, Fé e Credibilidade: uma exigência do Crer em América Latina
A experiência cristã na AL pressupõe
teoricamente os três termos básicos presentes na Teologia Fundamental, a saber,
a Revelação, a Fé e a Credibilidade. É no vínculo entre essas temáticas que
podemos nos orientar para compreender o que significa e como se caracteriza o Crer
em América Latina. A Revelação é a proposta de Deus para o ser humano, ela não
provem do homem, mas faz parte da “autocomunicação de Deus” que se manifesta ao
ser humano e exige dele uma resposta de fé. Neste sentido a Fé se classifica
como um ato livre de acolhida de Deus e de sua Revelação. O ato de fé presente
na AL só é possível pela Credibilidade que a Revelação possui. Assim só se
acolhe a Revelação porque ela é possível e porque tem credibilidade em Deus
mesmo que não pode se contradizer e nem nos enganar (DH 3017). Todavia, em vez
de falarmos do conceito de “fé” na AL, como expressão relevante da experiência
cristã nesse continente, seguimos a linha do Teólogo Jesuíta Eugenio Rivas, no
artigo Creer en América Latina, acerca
do conceito que seria mais apropriado para falar da experiência cristã: o “crer”.
A rigor, crer em AL ou a fé em AL são equivalentes.
Porém preferimos o verbo crer, precisamente, porque queremos sublinhar o
dinamismo prospectivo e ascendente da proposta que se nos oferece como caminho,
verdade e vida (Cfr. Jn 14,6) e que o substantivo fé poderia obscurecer, pela
mesma função do substantivo no artifício de linguagem, ao sugerirmos a imagem
ou a ideia de uma substância estável, de um fato adquirido, de um absoluto. O
verbo nos dá a imagem viva deste ato singuar e único (ato de fé), mantem seu
caráter itinerante e provisório, nos trasmite o sentimento de que na respota
fica sempre algo que necessita ser restabelecido e completado, nos abre à
invenção.[1]
O Crer em AL dá continuidade ao que foi tratado no Concílio Vaticano II,
na Dei Vebum: “a obediência da fé” (DV,
n. 5). Ele se classifica como uma adesão há aquilo que Deus nos revelou por
meio dos “nossos primeiros pais” (DV, n. 3), por meio dos profetas e “pelo
Filho” (DV, n. 4) Jesus, a Palavra de Deus encarnada. O Crer também é uma resposta para Deus em um
diálogo de salvação. Para além de um reducionismo conceitual, o Crer se refere àquilo que nos foi Revelado e o que nos é transmitido pela Igreja (LIBANIO,
2004, p. 25). Na AL os parâmetros do Crer se situam em novos e particulares espaços
contextuais distintos dos espaços e contextos da Europa.
2 Espaços históricos e referenciais do Crer em
América Latina
Na
AL o Crer cristão estar em espaços geográficos e históricos distintos dos
espaços da cristandade medieval. Esta vivenciou a experiência do Crer numa
identificação entre o ser cristão e o ser cidadão (PALÁCIO, 2004, p.181) a
partir dos centros hegemônicos das cidades e na união entre a Igreja e o Estado.
Porém, na AL isso não se patenteou. A especificidade do Crer latino-americano
se realiza “na periferia do mundo, num continente que vive terrível situação de
injustiça [...]” (LIBÁNIO, 2004, p. 50). Trata-se de uma mudança de paradigma,
na experiência de fé a partir de uma realidade e de uma posição esquecida na
história: a dos vencidos, dos explorados, dos excluídos. Tais vencidos possuem
rostos específicos: os índios, os negros, as mulheres (RICHARD, 1987, p. 6). É
nesse sentido que o Crer em AL se redireciona a partir das periferias. Tal espaço deslocou o polo dinamizador da fé cristã tradicional para a experiência humana
do oprimido. Trata-se de uma virada antropológica sob o clímax da importância
pessoal dos espoliados e o esquecimento de um tipo de doutrina ou tradição não
compatível com essa nova realidade. Isso “provocou, num primeiro momento, uma
concentração no sujeito que crer” (LIBANIO, 2004, p. 64-65) sob uma experiência
de fé particular, nunca tanto explicitada na história: a experiência do Crer a
partir de um contexto e sob a condição de vida dos fracos e oprimidos. O
sujeito crente latino-americano se classifica categoricamente como “o Pobre”:
Nunca na história das teologia cristãs, o pobre
ganhou tanta centralidade. Procurar construir toda teologia a partir da
perspectiva das vítimas para denunciar os mecanismos que as fizeram vítimas e
ajudar, com a bagagem espiritual do cristianismo, na sua superação mediante a
gestação coletiva de uma sociedade com mais chances de vida, de justiça e de
participação[...]. (BOFF, 1996, p.81)
A
opção preferencial pelos pobres, além de ter o seu caráter espiritual, se
fundamentou em uma concretude histórica, com uma preocupação e prática
social. A AL “deu uma guinada em direção
ao social, repensando a fé nesse horizonte. Neste momento, a opção pelo pobre,
[...], assumiu relevância especial questionando todo o pensar teológico, cristão
e simplesmente humano” (LIBANIO, 2004, p. 22).
Adjunto a opção preferencial pelos pobres também está a realidade
ecológica que interpela o olhar do crente para a natureza. Esta se relaciona
diretamente com a causa dos pobres, pois assim como há um grito pela justiça
para com os pobres, a terra também clamar por justiça: “Há um grito
absolutamente iniludível: o da terra. Esta morrendo, todos morremos juntos” (Ibid., p.137). É nesse aspecto que o Crer
cristão assume os espaços de atuação e atualiza como resposta para os novos
tempos. Todavia, uma nova categoria faz parte da experiência do Crer
latino-americano: a práxis. É em vista desta que o Crer em AL se define como
uma experiência antropológica e transcendental, que tanto compromete o sujeito
com a realidade como o impulsiona a transformá-la. Assim o Crer
latino-americano é tanto comprometido como transformador da realidade que o
cerca, para que nesta mesma realidade se patenteie as sementes do Reino. A
Teologia da Libertação se fez como uma referência significativa para a vivencia
da fé na AL:
A teologia da libertação sobressai na compreensão
operativa da fé. Já desde suas primórdios, ela insiste nesse aspecto. Sua
pretensão é ser uma teologia da prática do cristão. Isso significa que a fé
leva o cristão a uma ação transformadora. [...] A fé participou dessa atitude
prometeica da modernidade com toda a sua ambiguidade. Deixou de ser fonte
alienadora de pura contemplação enquanto as forças conservadoras dominavam e
dirigiam a sociedade. Nisso deu passo gigantesco. (LIBANIO, 2004, p. 137-138).
A
experiência cristã na AL é marcada por momentos históricos contextuais particulares
que influenciaram e contribuíram para atualização da mensagem salvífica divina
encarnada. É nesse espaço de injustiça, exploração e desigualdade social que o
sujeito que Crer é chamado para responder com maior disponibilidade aos apelos
do Evangelho, nessa nova realidade que o interpela, na fé e na vida, para ser
um sinal de Cristo que liberta seu povo na história e leva o ser humano para a sua
plenificação escatológica. Atualmente está emergindo novas tendências de
vivencia do Crer cristão em AL. “Acentuam-se a decisão, a ecumenicidade, a
vivência do cotidiano, a dimensão simbólica, estética e comunicativa, o lado
emocional-carismático” (Ibid., p.22).
Se o concílio Vaticano II foi o impulsionador de um aggiornamento do Crer da Igreja e para a AL, no Papa Francisco
encontramos o sinal referencial dessa atualização que continua.
3
Papa Francisco: referência contemporânea para o Crer em América Latina
Desde o início do pontifício do Papa Francisco que a
Igreja em vários continentes do mundo vem renovando o Crer cristão e sua experiência
prática teológica. Esse fato tem grande significado para os cristãos da AL
porque tal Papa possui um espírito continuador do Concílio Vaticano II assim
como da experiência do Crer no nosso continente. Tal vitalidade espiritual pode
ser observada nos seus diversos escritos. Na Carta Circular aos Consagrados e às Consagradas do Magistério do Papa
Francisco (:Alegrai-vos, 2014) alguns
elementos da mensagem de Francisco têm relevância fundamental para a
experiência cristã latino-americana. Nela o Crer se situa no mistério da
“Boa-Nova que, acolhida no coração da pessoa, transforma” (ALE, n. 1) a vida
humana. Essa experiência possui uma novidade revolucionária: “Uma alegria do
coração (cf. Is 66,14) que passa por Deus [...] e se difunde em meio a um povo
mutilado por mil humilhações” (ALE, n. 13). É a experiência da Revelação da
Palavra de Deus encarnada que produz a verdadeira alegria em um mundo marcado
por injustiça, desigualdades, humilhações e exclusão. É nesse sentido que o Crer
cristão traz em Deus a resposta gratuita e generosa para os anseios humanos. O
Crer cristão não se fundamenta no homem em si, mas em Deus que toma a
iniciativa de salvar e redimir a humanidade desde a sua vocação primeira vital:
“não fostes vós que me escolhestes, fui Eu que vos escolhi” (Jo 15,16).
A relevância do primado divino na fé
cristã situa o ser humano numa abertura e relação para com o outro. É uma
resposta de fé que está em comunhão, solidariedade e diálogo com Deus e com o
próximo de modo dinâmico. A dinâmica com a Palavra de Deus “suscita a fé, a
alimenta, a regenera. É a Palavra de Deus que toca os corações, converte-os a
Deus e à sua lógica que é tão diferente da nossa” (ALE, n. 6). Na
Misericordiae Vutus encontramos dois conceitos que Francisco
desenvolve na proposta do Ano Santo da Misericórdia. Tais conceitos chegam a
ter uma ressonância na experiência do Crer no nosso continente. Trata-se da
dinâmica entre Misericórdia e Justiça na fé: “Não é a observância da lei que
salva, mas a fé em Jesus Cristo, que, pela sua morte e ressurreição, traz a
salvação com a misericórdia que justifica. A justiça de Deus torna-se agora a
libertação para quantos estão oprimidos [...]” (MV, p. 24).
Na
Evangelii Gaudium encontramos
elementos que expressam essa continuidade revolucionária do Crer, como: a nova
evangelização para a transmissão da fé, pela pastoral ordinária, pelas pessoas
que não vivência uma pertença à Igreja e não experimentam uma consolação da fé,
e a necessidade da proclamação da palavra de Deus como missão primeira de
evangelização (EG, n. 14). O aspecto dialogal teológico da AL é motivado para
uma Igreja “em saída”: “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar
todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG, n. 20). A proposta renovada de fé se relaciona
com o amor: “Aqui o que conta é, antes de mais nada, ‘a fé que atua pelo amor’”
(EG, n. 37).
A
postura cristã na AL é motivada para uma continuidade profética do “não” à economia
da exclusão, à idolatria do dinheiro e à desigualdade social que gera violência
(EG, n. 53-60). A dinâmica da fé proposta pelo Papa tem um respaldo renovado na
AL sob o signo da justiça e misericórdia de Deus, da Boa-Nova da fé e da
praticidade profético-libertadora e dignificadora da humanidade. Na Laudato Si’ é possível encontrar no
âmbito da experiência cristã a intrínseca relação entre a experiência humana
com Deus e as relações sociais com o outro e com a natureza. Assim o âmbito do
Crer em AL se amplia e se relaciona na busca do bem comum como práxis do Crer:
O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana
enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu
desenvolvimento integral. Exige também os dispositivos de bem-estar e segurança
social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios, aplicando o princípio
da subsidiariedade. Entre tais grupos, destaca-se de forma especial a família,
enquanto célula basilar da sociedade. Por fim, o bem comum requer a paz social,
isto é, a estabilidade e a segurança de certa ordem, que não se realiza sem uma
atenção particular à justiça distribuitiva, cuja violação gera sempre
violência. (LS, n. 157)
Conclusão
A partir de tais colocações sobre a experiência
fundamental do Crer no continente latino-americano e as inspirações pós-conciliares
do Papa Francisco, podemos concluir que estamos diante de novos caminhos e
desafios em tal continente. Trata-se da necessidade de uma articulação maior
entre as raízes culturais múltiplas da América Latina, a saber, a raiz
africana, indígena e europeia que perpassou o ethos latino-americano. É nesse
entrelaçamento cultural que a Teologia e a Igreja, enquanto povo de Deus, corpo
do Espírito Santo, deve reafirmar o seu Crer. Tentar separar uma das partes é
desprezar a história pela qual nosso continente assumiu a sua identidade
singular e criativa.
De
modo mais amplo o Crer na América Latina precisa se relacionar, se ampliar e
dialogar com um mundo global e integrado, pois as relações na pós-modernidade saíram
do nível regional e nacional para um nível internacional. Neste sentido o Crer
latino-americano precisa estar ligado e se relacionar com os outros países e suas
expressões culturais e religiosas. A Contemporaneidade exige isso. Por outro
lado, tal vivência de fé cristã latino-americana precisa continuar e amadurecer
o seu espaço de reflexão teológica (as periferias espaciais e existenciais) e o
ponto de partida da fé crista, no nosso continente, que se tornou o referencial
predileto da razão teológica e ética cristã: o pobre.
Tal
sujeito teológico não pode ser concebido reduzidamente como o ser humano
carente no seu aspecto econômico e político, mas assume apropriada e plena
compreensão teológica como a pessoa que tem a necessidade e dependência de
salvação em Deus. Também neste aspecto- espiritual- podemos encontrar sinais na
América Latina de pessoas que não conhecem à Jesus Cristo e não possuem uma experiência
profunda e comprometida com Ele, mesmo que diga ser cristã. Não se está
afirmando que o pobre não é aquele que está em condição social, cultural e
existencial inferior à determinados grupos de boa condição de vida, mas que
além destes, que são muito importantes e urgente suas causas, também há outros pobres
que precisam de vida digna em outros âmbitos da vida humana e espiritual. Por
outro lado, na América Latina ainda há espaços geográficos onde Jesus ainda não
foi anunciado por nós. Por isso é urgente a continuação do projeto de Deus e da
comunicação dessa Boa-Nova pela experiência do Crer atualizado em América
Latina.
Bibliografia
BOFF, Leonardo.
Da libertação e ecologia: desdobramento de uma mesmo paradigma. In ANJOS,
Márcio Fabri dos (org.). Teologia e novos
paradigmas. São Paulo: SOTER/Loyola, 1996.
BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA
MISERICÓRDIA. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
CARTA
APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO. Às pessoas Consagradas:
em ocasião do ano da vida consagrada. São Paulo: Paulinas, 2014.
CARTA
ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o
cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
CONGREGAÇÃO PARA
OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Alegrai-vos: carta circular aos
consagrados e às consagradas do magistério do papa Francisco. São Paulo:
Paulinas, 2014.
CONSTITUIÇÃO Dogmática “Dei Verbum” sobre a Revelação divina. In
CONCÍLIO VATICANO (2.: 1962-1965).Vaticano
II: mensagem, discursos e documentos. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2007. (p.
345-358)
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii Gaudium: do
Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.
LIBANIO, João
Batista. B. Eu creio, nós cremos:
tratado da fé. 2ed. São Paulo: Loyola, 2004.
RICHARD, Pablo
(Org.). Raízes da teologia
latino-americana. São Paulo: Paulinas, 1987.
RIVAS, Eugenio. Creer en América Latina. Texto disponível em http://theologicalatinoamericana.com/?p=457. Acesso em: 02 Jun. 2017.
[1] RIVAS, Eugenio. Creer en América Latina. Texto
disponível em http://theologicalatinoamericana.com/?p=457. Acesso em: 02 Jun. 2017.
(tradução nossa)
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