quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

A RELAÇÃO ENTRE A FILOSOFIA MARXISTA E O PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE PAULO FREIRE.










SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

A RELAÇÃO ENTRE A ABORDAGEM MARXIANA E A FREIRIANA

A NECESSIDADE DA COMPREENSÃO DA REALIDADE SOCIAL EM KARL MAX E PAULO FREIRE

PERSPECTIVA DIALÉTICA, OPRIMIDO E OPRESSOR, NA FILOSOFIA MARXIANA E NA PEDAGOGIA DE PAULO FREIR

CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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INTRODUÇÃO

Na abordagem histórico-pedagógica, da filosofia da Educação, sobre seu objeto, ou tema específico de pesquisa: a educação. Numa análise e perspectiva de como se construiu seu objeto e como se desenvolveu no decorrer da história, desde seus primeiros momentos significativos, de definição e constituição, uma questão sempre se fez presente e necessária até os tempos atuais: qual o sentido próprio que cada período histórico concebeu ao conceito de ‘educação’?! Esta interrogação é pertinente na abordagem da especificidade de tal conceito no decorrer da história.
Porém, uma pergunta que vai além dessa compreensão que é de equivalente importância para o entendimento da dinâmica, movimento e contextualizações de cada período ou povo é:quais as influências ou tradições determinadas que motivaram a constituição própria do conceito ‘educação’, e sua compreensão, no decorrer e transição de cada período?! Essa segunda pergunta, de pano de fundo, é de relevância fundamental na abordagem da filosofia da educação como na exposição do presente artigo, pois, a partir de um paralelo entre a filosofia de Karl Marx e a abordagem pedagógica de Paulo Freire, pretende-se, no presente artigo, delinear a especificidade de cada autor e a relação de semelhança entre os autores nos seguintes tópicos: i)a relação entre a abordagem marxiana e a freiriana; ii) a necessidade da compreensão da realidade social em Karl Marx e Paulo Freire; iii) a perspectiva dialética, oprimido e opressor, na filosofia marxiana e na pedagogia de Paulo Freire. A presente pesquisa orienta para conclusão da influência marxista na abordagem pedagógica de Paulo Freire. Apesar dos dois autores serem de tempos históricos distintos e formas de abordagem distintas, muitos elementos constituídos em suas obras se aproximam. Nesse sentido, baseando-se nos elementos que compõe o sistema filosófico marxista e a abordagem de Paulo Freire, pode-se dizer que a tradição da filosofia marxista influenciou de modo determinante a proposta inovadora pedagógico-social-libertaria de Paulo Freire. Apresentar a especificidade de cada autor e destacar os elementos dessa influência é a proposta do presente artigo.


A RELAÇÃO ENTRE A ABORDAGEM MARXIANA E A FREIRIANA
           
A abordagem marxiana tem como base de fundamento do ser social, das suas relações de interação, consciência e produção, da sua cultura e sociabilidade, o Sistema Econômico Político[1], ou seja, o modo de produção e os meios e mecanismos que movimentam esse sistema da realidade no decorrer da história. Desse modo,para Marx, a Economia é a base fundamentada,das relações cívicas e políticas, do modo de ser, pensar e agir de terminados povos. Fazendo a relação entre a essência do ser social, seu ser ontológico, e seu processo de construção e determinação na história, entendida como dinâmica da atividade humana, com a Economia social dos povos, desde seu primeiro momento de desenvolvimento e configuração histórica[2], Karl Marx desenvolveu um sistema filosófico que apresenta uma compressão e esclarecimento do movimento da realidade e sua dinâmica, de implicações sociais, políticas, éticas e culturais, fundamentadas no modo de produção econômica, que teve seu pressuposto no trabalho, porém, que atinge seu estagio mais elevado, e contraditório, no Modo de Produção Capitalista[3]. Assim, tanto a definição social existencial dos homens e seu percurso de consciência e autonomia histórica, como todas as formas de relações sociais em si, estão pertencentes e se relacionam diretamente a este modo de produção, pelo trabalho, que ganhou suas definições e caráter específico no percurso de cada tempo histórico[4]. A necessidade de compreensão da dinâmica da realidade histórica e do seu processo de construção e do auto fazer-sedo homem, simultaneamente, tem uma função determinante na vida do operário:
[...] para Marx, o êxito do protagonismo revolucionário do proletariado dependia, em larga medida, do conhecimento da realidade social. Ele considerava que a ação revolucionária seria tanto mais eficaz quanto mais estivesse fundada não em concepções utópicas, mas numa teoria social que reproduzisse idealmente o movimento real e objetivo da sociedade burguesa capitalista.(NETTO; BRAZ, 2011, p.33-34)
Desse modo a compreensão do sistema capitalista burguês propiciaria ao trabalhador, ou proletariado, às condições necessárias para que ele, pela luta,transforme a realidade, melhorando-a, tomem cada dia mais consciência de si,perpetue sua existência, chegue a sua essência, supere a si mesmo, pelo processo dialético e pela luta de classes.
Paulo Freire, por sua vez, tem uma abordagem fenomênica da realidade e da consciência existencial do homem em âmbito pedagógico. Os parâmetros de sua análise e argumentação estão no âmbito pedagógico e no caráter da formação do aluno ligado a sua realidade social, como base inicial do processo aprendizagem.
Na reflexão de Paulo a formação do discente está ligada com seu horizonte social, político, e ético. Nesse sentido, não se pode pensar em formar pessoas sem antes ter em mente todas essas questões que atinge sua realidade e o universo ontológico, histórico, cultural e social humano. Desse modo, segundo a ênfase de Paulo Freire, a educação e ética são dos conceitos indispensáveis e correlacionários na formação tanto do professor como no desenvolvimento pedagógico do aluno[5]. Nessa relação se evidencia a premissa de que não existe professor sem aluno e nem aluno sem professor. Esse movimento de relação dialética faz parte do percurso humanístico no seu processo formativo e no processo de procura e produção de conhecimento e na sua busca por liberdade de expressão e aprendizagem. Deste modo, para Paulo Freire a educação é o caminho da construção de um novo caminho na história do homem: de sua consciência da realidade, de sua situação existencial e de sua luta libertária.

A NECESSIDADE DA COMPREENSÃO DA REALIDADE SOCIAL EM KARL MAX E PAULO FREIRE
           
Para Marx o homem e a natureza, o homem e o homem, estão em relação constante e sua forma de produção econômica e as relações sócias determinantes deste processo estão em estreita relação. Porém, o sistema económico capitalista, de sua época, não destacavam a sua razão de ser, sua natureza essencial e sua ligação e fundamentação nas relações socias. Não relacionavam o modo de produção e as leis que regem a economia política com o modo de vida cívico, e as contradições, e relações sócioculturais que se dão no processo histórico humano. Deste modo os fundamentos do capitalismo e todo o conhecimento de seu movimento e suas implicações sócias eram negados ao conhecimento humano.[6]
Daí, Marx na sua crítica à Economia Clássica possibilitou o conhecimento da estrutura e dinâmica do capitalismo da sociedade burguesa usando um método crítico dialético. Ele apresentou o processo econômico que se deu nas relações entre o homem e natureza, e, homem e homem. Foi nessa relação que houve os primeiros momentos de desenvolvimento do homem. Este desenvolvimento se deu pelo trabalho. O trabalho é o fator que propiciou ao homem, a partir dos grupos de primatas, chegar ao que Marx chama de ser social, ou seja, foi através do trabalho que a humanidade se constituiu com ser social. No trabalho se desenvolveu um conjunto de mecanismos, objetividades[7], vinculados as relações sócias que levou o homem das relações de produção e sociais simples (Agricultura e Pecuária) às relações sociais e de produção mais complexas, contraditórias e de exploração (capitalismo, tecnologia).
Foi do processo histórico, fundamentado no trabalho e, por conseguinte, produtor da vida social, que se instaurou o sistema econômico, pelas relações de subsistência humana, nas trocas de mercadorias, no desenvolvimento dos comércios até seu estágio mais evoluído: o sistema econômico capitalista. Deste modoMarx desenvolveu sua filosofia e, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844), apresentou a relação existente entre o Modo de Produção Capitalista e as relaçõesde antagonismo social e de exploração:
[...] a economia política parte do facto da propriedade privada. Não o explica. Concebe o processo material da propriedade privada, como ele ocorre na realidade, em formulas gerais e abstractas, que em seguida lhe servem de leis. (...) A economia política não fornece qualquer explicação sobre o fundamento da divisão do trabalho e do capital e da terra. (...) Temos agora de aprender a conexão essencial entre todo este sistema de alienação- propriedade privada, espírito de aquisição, a separação do trabalho, capital e propriedade fundiária, troca e concorrência, valor e desvalorização do homem, monopólio e conconcorrência, etc – e o istema do dinheiro. (MARX, 1963, p.157-158).
Assim, as obras de Marx desenvolveu sua filosofia para que a classe oprimida (o trabalhador) compreendesse como se dá e se configura esse sistema econômico (da classe opressora), que teve como base fundamental todo o desenvolvimento social e histórico de constituição e produção humana. Desse modo, a partir desse conhecimento, o homem poderia transforma sua realidade opressora e eliminar as contradições do modo de produção capitalista, instaurando, assim, a luta pela emancipação humana, ou, no seu período, a luta do partido comunista ou proletariado.
Ao longo do século XX grupos inspirados por Marx continuaram sua pesquisa e continuaram sua teoria. Essa pesquisa de continuidade é denominada de Economia Política marxista[8]. Seu esforço é de ampliar e aprimoras conhecimentos acerca desse movimento da economia e da solução de suas problemáticas. Portanto a necessidade de conhecimento da realidade social e sua relação com a Economia política Capitalista são os elementos essenciais que configuram a filosofia marxista.
Paulo Freire, por sua vez, apresenta na pedagogia do oprimido(1967) o conhecimento da realidade como: caminho para se compreender a situação de opressão em que o homem se encontra. Com a tomada de consciência o homem se insere em sua realidade e percebe as contradições e os antagonismos (opressor oprimido) que estão presentes. O inserimento na realidade, sua percepção sobre a realidade, o processo de afastamento para efetivação da análise da mesma, pela consciência reflexiva, dará ao oprimido uma coesão-teórico-prático com sua fala, e sua ação, que deve estar ligada a sua realidade.  A compreensão da realidade tem uma finalidade epistemológica prática: o conhecimento da realidade social do homem e a luta por mudanças na realidade pedagógica tradicional opressora, que tanto oprime como instaura no oprimido a mentalidade opressora, e não libertadora. Nesse sentido, o oprimido precisa tomar consciência de sua realidade e de sua situação de opressão para partir para luta e transforma a realidade, libertando-a e, por conseguinte, humanizando-a. Assim, a pedagogia do oprimido tem dois momentos fundamentais:
[...] o primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação.( FREIRE, 1980, p.44).
A liberdade é a objetivação teleológica do homem, porém, ela se constitui pelo processo de consciência em que o homem tem de sua situação existencial e histórica, pela sua inserção na sua realidade social e a tomada de atitude na práxis libertadora, transformando a realidade e fazendo-se pela história, entendida com produção humana, e construindo a si e lutando pelo seu SER MAIS do homem, que a situação de opressão tenta eliminar.

PERSPECTIVA DIALÉTICA, OPRIMIDO E OPRESSOR, NA FILOSOFIA MARXIANA E NA PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE

            Na perspectiva de Marx toda a história da sociedade até seu tempo presente é a história da luta de classes e de relações antagônicas.  Essa é a dinâmica que segue o desenvolvimento humano e suas relações sócias e de produção. Porém fundamentalmente o fator determinante da divisão da sociedade em duas classes de interesses antagônicos é a propriedade privada, a posse e privatização dos meios de produção. Daí surge os proprietários dos meios fundamentais de produção e os não-proprietários[9]. Esses dois modos a que Marx dividir a sociedade é subdividido por outras partes intermediárias, porém essencialmente e de modo genérico, há essas duas formas antagônicas de classe social. Essas formas de classe foi constante no percurso da história que Marx e Engels afirma no Manifesto do Partido Comunista (1848):
[...] A história de toda a sociedade até aqui é a história de luta de classes. Homemlivre e escravo, burgueses de corporações e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, tratavam uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta, uma luta que de cada vez acabou por uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta.(MARX; ENGELS, 1997, p.29)
            A concepção sobre a economia política está pelo o que ela mesmo impõe no seu sistema administrativo. Pelas suas leis que regulam e condicionam o trabalho humano e as relações sociais de produção. Como visto ela está pautada sobre a divisão humana em duas classes: a do proletariado e a do capitalista, sendo que a primeira está submissa à segunda.
            Esse entendimento conceitua o processo de exploração, tensãoe dependência a que está fadado tanto a classe opressora, ou seja, aquele que possui os bens de produção e compra a força de trabalho, como a classe oprimida, ou seja, o trabalhadorque ‘baixa a condição de mercadoria  à de mais miserável mercadoria’, e vende a sua força de trabalho pela sua subsistência.Dai enquantono modo de produção desde seu momento primário, a relação de antagonismo existia, com a propriedade privada e a privatização dos meios de produção e a compra da força de trabalho, essas relações antagônicas e de opressão se tornaram cada vez mais sofisticadas e complexas. Desse modo o sistema econômico capitalista, que orienta as articulações e a dinâmica das indústrias, ou dos modos de produção e lucro, de capital e juros, impõe ao homem- não proprietário- um modo específico de trabalho, uma forma de produção limitada, uma dependência com o trabalho para sua sobrevivência e um distanciamento do seu objeto de trabalho: a causalidade dada[10]. Isso ocorre porque as condições de produção não estão em função de sua necessidade e nem de sua valoração e dignificação, mas do próprio capital. Assim, se deu e se dá a dialética entre o oprimido, o capitalista, e o opressor, o proletariado.
            Por conseguinte, na abordagem pedagógica freiriana, na especificidade da pedagogia do oprimido, a dualidade conflitante e de oposição entre opressor e oprimido é algo fundamental que faz parte da dialética de Paulo Freire. Os primeiros momentos dessa realidade opressora se dão quando o homem descobre-se ignorante pelo questionamento de si, pelo questionamento de sua realidade, do estado de insatisfação social. A objetividade que Paulo Freire apresenta é que do momento de consciência da sua ignorância, do seu estado de insatisfação social, há o reconhecimento de seu estado de opressão. E isso, tanto no campo epistemológico, como no campo prático, é negação do homem, negação de seu ser essencial e em constante construção, portanto, é opressão.
            Daí se instaura reconhecimento de sua desumanização em duas esferas: ontológica e histórica[11]. Esse reconhecimento produz de modo não agradável o estado em que o homem se encontra, de inconclusão de sua vocação essencial: SER humano e SER MAIS. Daí a oposição entre a sua realidade atual, que instaura a sua desumanização, e a sua vocação essencial, a humanização. Como Afirma Freire, essa vocação é: “Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores.” (FREIRE, 1980, p.30).Desse modo, “a desumanização, que não se verifica, apenas, nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que roubam, é distorção da vocação do SER MAIS” (FREIRE, 1980, p.30). Pois, no campo ontológico, a opressão se dá pela negação do SER MAIS do homem, tanto pelos que roubam o valor essencial e a dignidade do homem, como pelos que a negam. No campo histórico a opressão acontece pela distorção da vocação humana para o SER MENOS. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens, só se realiza porque a desumanização, a negação ao ser Menos não é destino dado e imutável, não é realidade posta e dogmática, mas resultado da injustiça humana que gera a violência para o ser menos.
            Com a prática do opressor para o ser menos do homem, pois em seu ato tanto ele nega ao outro do seu mesmo gênero, como a si mesmo, o oprimido é motivado a agir, a práxis, para sua liberdade. Ou seja, nessa relação de opressão, o oprimido precisa tomar consciência de seu estado essencial, existencial e real, pela reflexão de si, de sua realidade, pelo questionamento, e, ao reconhecer-se nesse estado de opressão, ele oprimido precisa lutar pela sua libertação, pois:
[...] não basta saber-se numa relação dialética com o opressor- seu contrário antagônico- descobrindo, por exemplo, que sem eles [, o opressor,] o opressor não existiria, (Hegel) para estarem de fato libertados. É preciso, enfatizemos, que se entregem à práxis libertadora. (FREIRE, 1980, p.37).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A filosofia marxiana considera os aspectos econômicos, no processo de desenvolvimento histórico-humano, com sua relações sociais, culturais e ontológicas desde sua gênese histórica. O fator econômico, fundamento do trabalho,adjunto das relações de produção e sociais, são determinidades que, na perspectiva de Marx, são como categorias no decorrer da história. Desse modo cada época é marcada por um modo de produção específico e uma relação social que caracteriza a consciência e constituição dos homens. O objeto de análise de Marx é o movimento histórico humano da produção de si, de sua consciência e suas implicações econômico-sociais. O homem, a natureza e suas relações sociais, estão em diálogo e interação permanente na história. Do mesmo modo, no pensamento freiriano, o homem é colocado em evidência com suas relações sócias, porém, essas relações são abordadas no processo da aprendizagem. Enquanto, Marx considera a história como produção social-humana, Paulo Freire apresenta a mesma vertente, uma vez que a realidade situacional em que o homem se encontra é fruto de sua injustiça, que pode ser modificada. Marx apresenta a compreensão da realidade, de seu mecanismo, do sistema econômico capitalista, para a tomada de consciência da situação de exploração, opressão e alienação do ser humano. Paulo Freire, por sua vez, apresenta a necessidade do conhecimento da realidade social do povo, tanto para tomada de consciência de sua situação existencial-social de oposição e opressão do oprimido, como para manter um vínculo originário e fundamentado da realidade social do homem na sua formação educativo-pedagógica. Enquanto em Marx a atividade trabalhista do homem é a extensão e desenvolvimento de seu ser social, de sua essência, para Paulo Freire a atividade prático-pedagógica a partir dessa consciência da realidade assume a mesma extensão do homem e continuação de seu ser essencial. Da mesma forma que em Marx a luta de classe, por liberdade se faz na Práxis, em Freire, a mesma luta, porém, em nível de conhecimento pedagógico e mudança da realidade, se realiza pela Práxis. Portanto, muito dos elementos que fazem parte do pensamento marxista, muitas categorias como: ser ontológico, histórico e social do homem, realidade objetiva, consciência, oprimido, opressor, existência humana, essência humana, práxis, liberdade, luta de classes, dentre outras, estão também presente no pensamento de Paulo Freire. Isso denota a influência que a filosofia marxista apresentou na contemporaneidade, na escola de Frankfurt, na educação brasileira, e de modo específico o pensamento pedagógico-libertário de Paulo Freire.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 8ª ed.Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980.
______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.25ª Edição, São Paulo: Paz e Terra, 1996
MARX, Karl.A ideologia alemã/­_, _,Friedrich Engel: trad. Alvaro Pina. 1ª. Ed.-São Paulo; Expressão Popular,2009.
______. Manuscritos Econômino- Filosóficos.[ Trad. Jesus Ranieri]. Edições 70, Lisboa- Portugal, 1964.
______. ______.[ Trad. Artur Morão Ranieri]. Boitempo editorial. São Paulo, 2008.
______. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
MARX, Karl; ENGEL, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Edições Avante!, Lisboa, 1997.
NETTO, José Paulo. Economia política: uma introdução crítica/ _, _; Marcelo Braz.-7. Ed.- São Paulo: Cortez,2011.



[1] José Paulo Netto na sétima edição da obra Economia política: uma introdução crítica (2011, p.39) apresenta sobre a o Sistema Econômico Político nesses temos: “o objeto da Economia Política são as relações sociais próprias à atividade econômica, que é o processo que envolve a produção e a distribuição dos bens que satisfazem as necessidades individuais ou coletivas dos membros de uma sociedade”.
[2] Netto na Economia política: uma introdução crítica (2011, p.46) afirma que, segundo as indicações científicas, foi dos primatas, através de outro salto qualitativo, que surgiu a espécie humana. Essa evolução se deu na relação homem e natureza pelo trabalho.
[3] Segundo O filósofo Karl Marx nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1964, p.161): “A economia política esconde a alienação na natureza do trabalho porquanto não examina a imediata relação entre o trabalhador (trabalho) e a produção. Claro, o trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador”. 
[4] É possível observar no aspecto histórico, nos primeiros povos, primatas, ou primitivos, o modo de produção determinante era a agricultura e o pastoreios, porém no prosseguir da história, no na iniciação ao mundo feudal o modo de produção é variado com as manufaturas e com os estamento. As relações de trocas e produção de dinheiro são constâncias nesse período.
[5] Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz eTerra, 25ª Edição, 2002.
[6] Cf. MARX, Manuscritos Econômico-Filosóficos, 1964, p.157.
[7] Segundo José Paulo Netto (2011, p.51): “O trabalho, porém, permanece como a objetivação primária do ser social num sentido amplo: as outras formas de objetivação, que se estruturam no processo de humanização, supõem os traços fundamentais que estão vinculados ao trabalho (...) e só podem existir na medida em que os supõem”.
[8]Cf.  NETTO; BRAZ, 2011, p.34.
[9]Assim escreve Marx no Manuscritos Econômico-Filosóficos (1964, p.157): “A partir as própria economia política, com as suas próprias palavras, mostramos que o trabalhador desce até o nível de mercadoria, e de miserabilíssima mercadoria; que a miséria do trabalhador aumenta com o poder e o volume da sua produção (...), que a distinção entre capitalista e proprietário fundiário, bem com entre trabalhador rural e trabalhador industrial, deixa de existir e toda a sociedade se deve dividir em duas classes, os possuidores de propriedades e os trabalhadores sem propriedades”.
[10]Esta é o material natural constituído na natureza da qual o homem se apropria para a efetuação do trabalho. Pelo material natural o homem modifica a natureza transformando-a em causalidade posta, ou seja, produto da objetivação humana.
[11](Cf. FREIRE, 1980, p.30)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Humanismo renascentista italiano e a influência agostiniana na obra de Francesco Petrarca



Isaias Mendes Barbosa[1]

( Artigo apresentado 14/11/2013 na FCF.)
   
A presente comunicação pretende tecer algumas considerações acerca das características culturais e filosóficas pertencentes no Humanismo renascentista italiano, ou seja, entre o século XI e XV, e sobre a presença da influência agostiniana na obra de Petrarca.Tendo como base a reflexão de Paul Kristeller em seu escrito Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, de1995, e a 1ª carta do livro IV dos Rerum familiarium libri(1336), também conhecida como a carta do Monte Ventoux, do fundador do Humanismo renascentista, a saber,Francesco Petrarca, destacam-se aqui as seguintes questões:i) a da especificidade do humanismo renascentista italiano; ii) a influência das Confissões agostiniana na carta do Monte Ventoux; iii) a diferença entre a abordagem filosófica agostiniana nas Confissões e aquela petrarqueana sobre a filosofia de Agostinho. As pesquisas sobre a obra de Petrarca buscam destacar a presença agostiniana não só nas Rerum familiarum libri, mas também no Desecreto conflictum earum curarum: uma compreensão dos pressupostos culturais e filosóficosdo Humanismo Italiano e de sua nova antropologia. Trata-se de um marco particular e importante na História da filosofia, pois se destaca uma atenção especial e valorização dos studia humanitatis,vinculados ao aspecto social e cívico do renascimento. Petrarca é considerado o fundador desse movimento humanístico, destacando uma abordagem filológica acerca dos escritos Antigos e retomando-os em sua originalidade: algodesenvolvido na sua reflexão como um novo modo de se conceber a experiência humana, desvinculada da tradição medieval.  Por conseguinte,a defesa de novos valores para bem se conduzir, escrever e falar, isto é, valores para a vida associada na educação da vida civil.

 Palavras-chave: Humanismo renascentista, Agostinho e Petrarca.



A especificidade do Humanismo renascentista italiano
            Abordar a especificidade do Humanismo renascentista implica tratar do aspecto histórico, cultural, literário e filosófico, em seus momentos mais profundos e nas mudanças significativas,que marcam as suas particularidades, e definem o período renascentista propriamente dito, ou seja,entre os séculos XI e XV. Isso é um desafio que poucos estudiosos da história da filosofia, ou do Humanismo renascentista, como Paul Kristeller,buscaram realizar[2].Atualmente, em virtude dos desafios e dificuldadesnesse universo de pesquisa, muitas vezes, o estudante de filosofia se limita a desenvolver uma compreensão e esclarecimento superficial do que se caracterizou o Humanismo renascentista em suas especificidades e particularidades. São muitos os comentadores que abordam esse período, todavia, limita-se aqui apresentar algumas considerações sobre as especificidades do renascimento na ótica de Paul Kristeller,
            Dino F.Fontana (1969, p.82), na História da filosofia psicologia e lógica afirma que
o humanismo [renascentista] é: ‘ Movimento espiritual representado pelos humanistas do Renascimento (Petrarca, Poggio, LorezoValla, Erasmo, Budé, Ulrico de Hutten) , caracterizado por um esforço para elevar a dignidade do espírito humano, valorizá-lo e, sobrepondo-se à Idade Média e Á Escolástica, restabelecer os laços entre a cultura antiga e moderna’.[3]
                Essa definição é a mais comumente expressada nos livros de filosofia, porém entender o humanismo renascentista exclusivamente nesta ótica seria limitá-lo a uma parte do que compreendeu todo o movimento humanístico do renascimento. Desse modo, o Humanismo Renascentista tinha a função de destacar e centralizar a dignidade do homem, distinto da compreensão que se tinha do mesmo no período da Idade Média. Entretanto, segundoPaul Kristellera preocupação central não era a valorização do homem, apesar de ter sua relevância em importantes filósofos do renascimento, a saber, Petrarca, Manetti, Pico Della Mirandolla, dentre outros humanistas[4], mas do “estudo e na imitação da literatura clássica, quer grega, quer latina”.[5]
No Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano (2000, p.852) o conceito de ‘renascimento’ apresenta um elemento extra na compreensão do período renascentista:
Renascimento (...). Designa-se com este termo o movimento literário, artístico e filosófico que começa no fim do séc. XVI, difundindo-se da Itália para outros países da Europa.(...) A partir do séc. XV, porém, essa palavra passa a ser empregada para designar a renovação moral, intelectual e política decorrente do retorno aos valores da civilização em que , supostamente, o homem teria obtido suas melhores realizações: a greco-romana. Assim, o R. foi forçado a ressaltar as diferenças que o distinguiam do período medieval, em sua tentativa de vincular-se ao período clássico e de haurir diretamente dele a inspiração para suas atividades.[6]
            Essa compreensão demostra um entendimento mais claro e preciso do renascimento italiano. Entretanto, como afirma Kristelle (1995, p.12) os momentos mais significativos e profundos desse período se destacam entre o séc. XII e XIII, ou XV e VIII. Em questão de sua caracterização como ‘movimento literário, artístico e filosófico’ não podemos descartar essencialmente a sua ligação,nos studia humanitatis, com a vida profissional, civil e social, como elementos que fazem parte da especificidade do Humanismo renascentista.[7]
            Reale (1990, p.31) é um dos comentadores que afirma sobre a relação existente entre o período do Renascimento com o Medieval. Na História da Filosofia ele apresenta duas teses entre esses dois períodos: a daruptura econtinuidade. A primeira implica que o renascimento é um período totalmente distinto e separado do período Medieval, a segunda se refere ao renascimento como uma continuidade e consequência daquilo que foi marca característica dos medievos. Entretanto, uma terceira tese deve-se destacar, a de diversidade[8]que é o marco característico deste período.
            Contudo, entre essas duas épocas Kristelle (1995, p.12) afirma que o Renascimento é o período da história da Europa ocidental que vai entre 1300 e 1600. Sua preocupação não é afirmar se houve um corte nítido no início e no fim do Renascimento com o período medieval ou negar que houve uma continuidade. Sua postura é que o Renascimento é caracterizado por uma fisionomia própria particular.[9]
            Delimitando um mapa cultural do período renascentista, Kristeller aborda algumas especificidades do que se caracterizou o movimento Humanístico no renascimento, além do mencionado acima. Um ponto de relevância a destacar no Renascimento é a retomada dos escritos antigos da Antiguidade clássica, porém numa perspectiva particular e própria de seu tempo [10]. Desse modo o Renascimento terá sua seleção e interpretação específica que difere da ocorrida na tradição Medieval e Moderna, apesar de que na tradição da Idade Média alta, alguns estudos dos autores latinos são retomados, mas numa tentativa de melhorá-los e conceber um nono contorno humanístico.
            Para compreender o papel dos estudos clássicos é necessário começar pelo termo ‘humanismo’. Kristeller (1995, p.17) afirma que ‘ o termo humanismus’ é derivado de outro termo semelhante: humanista, para indicar os professores, ou docentes, ou estudiosos das disciplinas humanísticas. Isso se deu por analogia com os estudiosos de disciplinas mais antigas, a quem eram aplicados os termos de ‘legista’, ‘jurista’, ‘canonista’ e ‘artista’. Desse modo Kristeller infere que o Humanismo renascentista se caracterizou como:
Um programa cultural e pedagógico que valorizava e desenvolvia um importante, mas limitado, sector dos estudos. Este sector teve como seu centro um grupo de matérias que não concerniam essencial mente aos estudos clássicos ou à filosofia, mas ao que grosso modo se designar como literatura.[11]
            Portanto, o Renascimento se refere a uma grande produção literária. E acrescido aesses estudos estava a moral. É importante frisar que os estudos literários estavam integrados ao ambiente profissionalizante, social e político. Como Kristeller mesmo escreve:
A enorme importância ligada a preocupação literária [...] poderia ser ilustrada pelo estado profissional dos humanistas­- muitos dos quais desenvolveram atividades ou como docentes de disciplinas humanísticas nas escolas secundárias ou nas universidades, ou como secretários de príncipes e de Comunas- e pela maioria dos seus escritos, que são discursos, cartas, poemas e obras históricas, em parte ainda inéditos ou até jamais consultados.[12]
            Os humanistas do Renascimento eram de um ponto de vista profissional os sucessores dos ditadores italianos medievais, tendo uma heranças epistolográfica e de oratória pública. Como acrescenta Kristeller, a novidade do renascimento se consistiu em ‘introduzir a convicção de que para falar e escrever bem era necessário estudar e imitar os antigos. ’ (KRISTELLER, 1995, p.20.) como afirmado anterior mente. Nesse sentido a leitura filológica, vinculada às tradições antigas fazia parte da especificidade do Renascimento italiano.
No campo dos estudos clássicos, o Grego e o Latim tiveram contributos importantes no renascimento, além dos escritos Romano[13]. Nos estudos latinos houve uma ligação estreita com os interesses retóricos, ligado a Idade Média e, de modo estreito, a autores clássicos desconhecidos no período precedido.[14]Já no campo dos estudos Gregos, os humanistas tiveram uma atenção particular e especial, porém isso se deu devido a influência bizantina.
Por fim, outros dois elementos eram característicos do movimento Humanistico no Renascimento: as tendências para expressar aquilo que fazia parte das sensações, opiniões, experiências e as circunstânciasde um indivíduo singular, daquilo que fazia parte da natureza humana. Um exemplo disso é o fundador do humanismo renascentista Francesco Petrarca que tanto na obra Rerum familiarium libri (1336), como no Desecretoconflictumearumcurarumaborda questões que envolve a natureza do homem no modo novo de conceber a experiência humana. Outra característica do renascimento no modo de retornar aos escritos antigos é as repetidas tentativas de reviver ou de restaurar as doutrinas filosóficas de pensadores ou escolas particulares. Nesse sentido alguns filósofos do renascimento tentaram reafirmar algumas doutrinas ou elementos doutrinais de várias correntes da tradição filosófica e religiosa antiga como: o epicurismo, o cristianismo, o paganismo, o estoicismo, o ceticismo, o platonismo e aristotelismo.[15]

A influência das Confissões agostiniana na carta do Monte Ventoux
Na obra L’umanismo italiano da Petrarca a Valla, Guido Cappelli faz algumas considerações sobre Francisco Petrarca. Daí ele escrever:
Ainda hoje, pelo grande público Francisco Petrarca (1304-1374) é mais conhecido, sobretudo, pelo estado único de fundador da lírica moderna, o poeta que cantou os límpidos sonetos e refinada canções Laura, a sua senhora. Ainda no aspecto de sua personalidade intelectual ele é estreitamente conectado com seu papel central na história da cultura não somente italiana, mas europeia em seu conjunto. Pela sua abordagem inédita aos estudos clássicos, pelo modo de entendera função do intelectual e afirmar a sua autonomia, pelo reconhecimento e influência profunda que sofreu sua obra e seu magistério, Petrarca é considerado como o pai fundador do humanismo.[16]
Expoente e fundador do Humanismo renascentista, Francisco Petrarca foi um grande produtor de obras literárias de grande relevância no Renascimento, que marca, alémdos estudos humanísticos, a preocupação filológica,literária e apresenta também uma retomada dos escritos clássicos, sem desdconsider a centralidade do indivíduo, como protagonista de si mesmo, como escreve Cappelli:
Um outro traço fundamental que Petrarca transmite ao humanismo e a modernidade consiste na ascensão da centralidade do indivíduo, seja como principal objeto de interesse da reflexão ética , seja como protagonista dele mesmo, enquanto autor, de atividade literária e artística. Petrarca alimenta uma verdadeira e própria obsessão pela construção de uma identidade reconhecível, linear...(CAPPELLI, 2007, p.46, tradução nossa).
A 1ª carta do livro IV dos Rerumfamiliariumlibri (1336), também conhecida como a Carta do Monte Ventoux, além de outro escrito particular, a saber, oDe secreto conflictumearumcurarum, são, entre outros, aquele de relevância que marca algumas particularidades do pensamento de Petrarca e de sua influência no que se considerou o humanismo renascentista. Uma particularidade contida nessas duas obras é a influência do filósofo-teológo Agostinho e de sua obra mais conhecida, ou seja, asConfissões.
A 1ª carta do livro IV dos Rerum familiarium libri, ou seja, a Carta do Monte Ventoux, escrita por Petrarca, é dedicada à Diogini da Borgo San Sepolcro, ela retrata em prosa latinaa ascensão de Petrarca ao Monte chamado de Ventoux. Na carta ele afirma que a motivação para a subida se deu quando leu a história romana de Tito Lívio que retratava a passagem em que Felipe Rei dos Macedônios subiu ao monte Emo, na Tessália. Mesmo sem saber se o fato era verídico ou falso, Petrarca assume a tentativa de fazer essa mesma experiênciano monte Ventoux. Procurou algum amigo para fazer com ele essa empreitada, porém não considerava ninguém habilitado seja físico ou moralmente como ele mesmo afirma:
Este era bastante preguiçoso; aquele bastante ativo; este bastante débil; aquele bastante desembaraçado; este bastante estouvado; aquele bastante prudente com respeito ao que desejasse; deste me espantava o silêncio, daquele a verbosidade; deste o peso e a obesidade, daquele a magreza e a fragilidade; defeitos que embora graves, em casa se suportam (...) mas que na viagem se tornam realmente pesados.[17]
            Dessa forma, o único habilitado era seu irmão Geraldo. E juntos, pela manhã, os dois irmãos, como dois jovens impetuosos, buscam concretizar o plano. O início de percurso foi fácil, porém com o esforço, houve um cansaço imediato. Enquanto Geraldo Seguia pelo atalho e subia mais alto, Petrarca, cansado, descia abaixo por um percurso mais longo, porém mais plano e, por conseguinte, com muito esforço, retoma o caminho do irmão:
Eu, mais cansado, descia abaixo, a para ele que me chamava, de novo, me indicava o caminho mais direto, respondia que esperava de encontrar uma vereda mais cômoda da outra parte do monte, e que não me desagradava percorrer uma estrada mais longa, porém, mais plana. Pretendia assim de desculpa a minha preguiça, e enquanto a minha companhia estava no alto, aqui estou a vagar pelos vales sem avisar em parte alguma uma senda mais suave; o caminho, ao contrário, aumentava e o inútil esforço me cansava. Enfim irritado e enfadado deste meu vaguear, decidi apontar diretamente em direção do alto[18]
Segundo Luís André Nepomuceno, no Princípios da Contemporaneidade:Análise da carta fam. Iv 1, de Petrarca (2004, p.105): ‘a narrativa da carta deixa entrever o sentido que o autor quer dar a ela: a viagem pelo Monte Ventoux é símbolo da condição humana: suas alturas representama vida beata, a virtude; sua encosta é o mundo terreno, dos vícios’. Nesse sentido o caminho seguido pelo seu irmão Geraldo, o caminho reto, é aquele que eleva o homem a condição de dignidade, a uma vida virtuosa, enquanto Petrarca transita entre essas duas realidades. Esse fato se repetiu mais três vezes, até que refletindo sobre si, Petrarca fala:
Saibas que aquilo que sentires mais vezes subindo sobre este monte, se repetirá para ti e para tantos que queiram atingir a beatitude; e se os homens não sabem fazer disso o julgamento justo, deve-se ao fato de que os movimentos do corpo são visíveis, enquanto aqueles do ânimo são invisíveis e ocultos. A vida que nós chamamos de feliz é posta para o alto, e estreita, como dizem, é estrada que ali conduz. A demais, ao se erguer alto, se impõem muitas colinas, e nós devemos proceder de virtude em virtude como por elevados degraus;[19]
                A abordagem desse escrito destaca a importância fundamental da literatura petrarqueana no processo de construção e caracterização do humanismo renascentista e da abordagem antropológica acerca da natureza do homem. Sua obra põe em questão o homem e a problemática da consciência humana, de sua interioridade e das contradições inerentes aos ser humano.Daí a ascensão ao monte não se trata de um percurso físico, inserido na história, mas de um percurso espiritual[20] que entra em destaque o interior do homem, as questões relacionadas à sua natureza e o percurso ético que lhe é imposto.  Daí, Segundo CAPPELLI (2007,p. 48, tradução nossa): ‘ No percurso metafórico do erro, de peranbulância física,vagância de incertezas, de busca e de dúvidas, entra em questão a batalha da sua vontade contra os fantasmas da <>’. Esse movimento de incertezas e busca desordenada, que ora se move para uma vida beata, ora cai na comodidade da vida terrena, dos desejos e paixões, fazem parte do itinerário humanístico petraquesco, do aspecto e drama da vida humana, como ele escreve:
Mais nada, evidentemente, se não a estrada mais plana que passa pelos baixos prazeres da terra e que, a primeira vista, parece também a mais cômoda; mas quando terás vagado muito, então serás finalmente obrigado a subir sob o peso de um cansaço inoportunamente adiado em direção ao topo da beatitude, ou então a cair despojado nos vales dos teus pecados; e se nunca- horrorizo no pensamento- as trevas e a sombra da morte ali devessem te atingir, deverás viver uma noite eterna em perpétuos tormento.[21]
Finalmente chegando ao Pico do monte, Petrarca tem uma visãode êxtase: já é possível ver as nuvens abaixo, as regiões da Itália, a que seu coração esteve sempre apegado, os Alpes gélidos e nevoentos. Ali, no topo, Petrarcareflete sua juventudee medita seu próprio passado sobre o fio condutor das Confissões de Agostinho e afirma: ‘Quero recordar as minhas torpezas passadas e as devastações da carne na minha alma, não porque as ame, mas para amar a ti, meu Deus’[22].
Dar-se ai o momento de sua conversão. Tem-se, dessa forma, uma parcial relação com Agostinho. A avaliação de sai vida, o voltar sobre si, sua interioridade, e o reconhecimento de suas fraquezas marcam essa analogia com a obra Confissões de Agostinho, porém, sua conversão é parcial, porque não se remete a um religioso, mas ao próprio homem.[23]:
Muito são ainda os interesses que me produzem incertezas e embaraços. Aquilo que, com frequência, eu amava não amo mais; minto: o amo, mas menos; eis que menti de novo: amo, mas com vergonha, com mais tristeza; finalmente disse a verdade. É mesmo assim amo, mas o que eu amaria o que queria odiar; amo, todavia, mas contra a vontade, no constrangimento.[24]
            Depois desse momento reflexão, pensa sobre sua vida, seus erros, sua existência,seus desejos carnais, que ele então condena, apezar de não se livrar deles, Petrarca pega o livro da Confissões que ganhara de Dionísio e lê o capítulo  que falava da exortação e meditação do homem nesses termos:
Para testemunho o chamo com Deus, de que onde primeiro lancei o olhar ali eu li: ‘E os homens vão admirar os vértices dos montes, as vastas ondas do mar, as correntes amplíssimas dos rios, a circunferência do Oceano, as órbitas dos astros, e descuidam de si mesmo[25]
            A essa exortação Petrarca se espanta e fechando o livro indignado consigo mesmo pela admiração que sentia pelas coisas terrenas, quando deveria ter aprendido desde os filósofos pagão, que outra coisa não é de maior admiração do que o homem. Petrarca recebe essa mensagem como uma verdade fundamental assim como Agostinho quando leu uma passagem das cartas de Paulo. Entramos no ponto que marca o renascimento e sua filosofia, que toma em questão a condição humana. A subida, o desgaste, o cansaço, enfim, toda a trajetória até o cume do monte cuminou numa busca que estava no seu interior, na descoberta do por quê e  verdade das coisas. Esse projeto petrarqueano é marca do humanismo moderno[26]
            A obra De secreto conflictumearumcurarum- O secreto conflito dos meus pensamentos -(1342), de Petrarca, está dividida em três livros e trata-se de um diálogo imaginário entre Petrarca, Agostinho e uma Musa de extraordinária beleza denominada de Verdade, que não tem fala no diálogo. É um diálogo em que Petrarca fala para si mesmo o seu próprio intimo.
No primeiro livro Agostinho o repreende por estar com má vontade em querer mudar de vida. A comodidade aos prazeres terrenos passa a ser o obstáculo. No segundo livro a mesma repreensão é feita, porém a acusação se dá pela preguiça que o atormenta e a paixão aos clássicos, dentre outros fatores que ele não confessa a Deus. No terceiro livro lhe é apresentado o amor pela glória invés do amor por Laura.   Portanto, o Secretumpode ser considerado com uma confissão, o testemunho de uma vida complexa e atormentada de Petrarca. Segundo Cappelli (p.49):
Petrarca conduz [no diálogo] um tipo de minuciosa autoanálise, começando do exame dos pecados capitais afim de alcançar e por em discursão os seus mitos mais caros: o amor por Laura e o desejo de glória literária- ‘Fantasmas ‘ e ‘vans opinião’ , segundo a linguagem estoica que caracteriza a sua reflexão madura.[27]
Mas nem no Secretum Petrarca tem uma forma definitiva de pacificação: no final, contra a vontade a recomendação de Agostinho e os seus chamados a vontade, a resposta do poeta é incerta e ambígua, e fatalmente se representa o fragmento da alma que constitui a identidade moderna, aos afazeres mortais, a dimensão humana: serei presente a mim mesmo quanto mais eu posso, e reunirei os diversos fragmentos de minha alma, e demorarei em mi com atenção. Mas agora, enquanto falamos, me é esperado muito e importante afazeres, porque ainda sou mortal.

A diferença entre a abordagem filosófica agostiniana nas Confissões e aquela petrarqueana sobre a filosofia de Agostinho.
A obra Confissões, escrita entre 397 e 398,de Aurélio Agostinho (354-430)é marca contextual do período em que a Igreja, na figura de seus estudiosos, produzia um bom material especulativo, filosófico-teológico a cerca da doutrina cristã católica, a fim de firmá-la nos parâmetros da razão como recurso da fé, do revelado, e ao mesmo tempo refutar a algumas correntes do pensamento reflexivo-místico-religioso consideradas heréticas, como o pelagianismo, o arianismo, a astrologia, de caráter místico, e o maniqueísmo: corrente da qual Agostinho estava inserido antes de sua conversão.
Sua posição na história é marcada por conflitos pessoais, divergências e conflitos de fé, enganos e desenganos, na qual a busca da verdade, a partir da leitura de Cícero, é seu principal anseio de vida e conduta. Nesse sentido, a abordagem Agostiniana na confissões, o título já o diz,é uma autoavaliação do percurso da vida do autor numa relação de diálogo com Deus, onde é apresentado a trajetória de sua vida desde sua infância, com ênfase ao momento de sua conversão e aderência ao cristianismo. Esse processo de interiorização e reflexão tem duas finalidades: apresentar a natureza do homem, suas fraquezas e vícios, marcada de pecados, desejos, que Agostinho avalia com culpa, e exaltar a misericórdia de Deus, de sua graça e bondade.  O mesmo Agostinho nas Retractationes (II,6)apresenta a especificidade da obra: ‘Os trezes livros das minhas Confissões louvam o Deus justo e bom por meus males e bens, e elevam até e a mente e o coração dos homens’(AGOSTINHO, 1984, p.10).
Desse modo, enquanto que a abordagem do Agostinho, nas Confissões, é de um viés religioso, que apesar de destacar elementos antropológicos, ou aquilo que faz parte, do homem, está orientado em um caminho de conversão e orientação do homem para Deus, em Petrarca, apenas o desta que se dá em um Agostinho que está fadado ao erro, as paixões terrenas e precisa da purificação para atingir uma vida beata, ou virtuosa. Em Petrarca a questão dotranscendental não é abordada, mas o aspecto do humano, seja pelas inclinações terrenas, ou seja pela busca da vida virtuosa,
Em Petrarca, tanto na Carta do Monte Ventoux como no Secretu, a figura de Agostinho é inserida e abordada no texto, porém, sua abordagem é tratada de modo diverso da própria abordagem agostiniana. Se no Confissões Agostinho fala de si, de sua natureza errante, que perambula no pecado, na busca declinada e desordenada em desejos aos bens inferiores. Essa abordagem tem um ponto teleológico. Ele fala de sua vida errante para enaltecer a presença de Deus e sua importância exclusiva na vida do homem, sendo que este só se torna pleno e feliz, quando converge sua vontade para seu criador.
Na Carta do Monte Ventoux Petrarca aborda um Agostinho que indica um caminho de beatitude, pela purificação e vida virtuosa, porém sem nenhuma ligação direta com Deus, no sentido de fundamento de sua purificação. Neste sentido, o teor de religiosidade não é abordado. Isso indica justamente a característica própria do humanismo no renascimento.
Em quanto Santo Agostinho afirma que a direção de busca da felicidade e plenitude do homem deve convergir para seu interior, pois ai está Deus, no seu mais intimo, sendo particípio de sua alma, Petrarca também aborda um Agostinho que orienta a procura do homem para seu interior, porém, o sentido dessa busca por verdade está restrita ao homem, como ser sublime e de maior importância entre os demais seres e realidades que cerca o homem. Portanto, enquanto Santo Agostinho fundamenta o homem em Deus como promotor de sua natureza e objeto de sua procura, Petrarca enaltece um Agostinho que aborda o humano e aquilo que faz parte de sua experiência espiritual desvinculada do aspecto religioso.


Referência bibliográfica
CAPPELLI, Guido Maria. L’umanesimo italiano da Perarca a Valla.1ª edizione italiana, , Carocci editore, S.p.A., Roma, 2010. (p.1-54)
AGOSTINHO, Santo. Confissões. [tradução Maria Luiza Amarante; revisão cotejada de acordo com o texto latino por Antônio da Silveira Mendonça]. São Paulo; Paulus, 1984.
KRISTELLER, Oskar Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento. [Trad. Artur Morão] Edições 70, Lisboa, Porugal, 1995.




[1] Graduando do curso de Filosofia/ Licenciatura na Universidade Estadual do Ceará.
[2]KRISTELLER, Oskar Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento. [Trad. Artur Morão] Edições 70, Lisboa, Porugal, 1995.Kristeller é um expoente do pensamento humanístico no renascimento, na referida obra (p.12) ele aborda o que foi o Humanismo Renascentista entre o século XIV e XV um período marcado por uma fisionomia própria porém menos profundas do que as acontecidas entre os séculos XII e XIII, ou XVII e XVIII. 
[3] (FONTANA, História da filosofia psicologia e lógica, 1969, p.82).
[4] Cf.KRISTELLLER, 1995, p.27.
[5]Cf. Ibid., p.130.
[6](ABBAGNANO, 2000, p.852.).
[7]KRISTELLE na Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento (1995, p.131.) escreve: Quase todos os humanistas faziam parte de um de três grupos profissionais, e por vezes pertenciam ao mesmo tempo a mais de um: ou eram docentes (universitários ou de escolas médias); ou eram secretários de príncipes ou de cidade; ou eram diletantes nobres ou ricos que combinavam os afazeres ou a autoridade política com os interesses intelectuais de moda no seu tempo.
[8] Segundo Reale: “A tese correta é uma terceira. A teoria da ruptura pressupõe a oposição e a contrariedade entre as duas épocas [: a época medieval e a do Renascimento], ao passo que a teoria da continuidade postula homogeneidade substancial. Mas, entre a contrariedade e a homogeneidade, existe a ‘diversidade’. Ora, dizer que o Renascimento é uma época ‘diversa’ da Idade Média não apenas permite distinguir as duas épocas sem contrapô-las, mas também identificar facilmente os seus nexos e as suas tangências, bem como as suas diferenças, com grande liberdade crítica.”(REALE, 1990, p. 31)
[9]Sobre a ideia de contradição e continuidade KRISTELLE (1995, p.12) escreve: “Não irei repetir ou refutar argumentos formulados por outros, mas limitar-me ei a afirmar que por Renascimento entendo o período da história da Europa ocidental que vai aproximadamente de 1300 a 1600,[...]. Não pretendo afirmar que houve um corte nítido no início e no fim do Renascimento, ou negar que houve uma boa dose de continuidade.[...] Sustento simplesmente que o dito Renascimento tem uma fisionomia própria particular, e que a incapacidade dos historiadores para dele fornecer uma definição simples e satisfatória não autoriza a pôr em dúvida a sua existência;”( KRISTELLE, 1995, p.12)
[10]Cf. KRISTELLLER, 1995, p. 13.
[11] (Cf. Ibid., p.17.).
[12] (Cf. Ibid., p.18.).
[13] Cf. Ibid., p.20.
[14] Kristeller comenta na Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento (1995, p.20.): Por outros lados alguns autores clássicos latinos, como Virgílio, Ovídio, Séneca, ou Boécio, terem sido largamente conhecidos durante a Idade Média não altera o fato igualmente óbvio de que outros autores, como Lucrécio, ou Tácito ou Manílio, foram descobertos pelos humanistas.
[15] KRISTELLER, 1995, p.28.
[16] (CAPPELLI, 2007, p.31, tradução nossa)
[18]  Le Familiari, a cura di V. Rossi, vol. I, Sansoni, Firenze 1933 (rist.anast. Le Lettere, Firenze 1997), pp. 153-61, trad. It. Di E.Bianchi, Riccianchi, Riacciardi, Milano 1955, p.835.20. Ivi, p.839.
[20]Segundo Luís Andre Nepomuceno (2004, p.104) escreve: Petrarca deixa claro, antes de tudo, que o sentido atribuído a sua escalada, na carta, terá uma orientação espiritual. Parágrafos adiante, esclarece que o alpinismo na montanha é metáfora de nossa escalada espiritual, em que o cume serve como ponto máximo da espiritualidade e de contemplação da condição humana.
[23] Cf. CAPPELLI, 2007, p.48.
[26]Cappellino L’umanismoitalisno da Petrarca a Valhaescreve:‘A estrutura das citações clássicas ( sobretudo de Sêneca) e o duplo jogo de espelhos entre o escritor Francesco Petrarca e Agostinho ( com meditação de Agostinho Dionísio) não faz se não que remeter a inevitável condição do homem já moderno.’ (CAPPELLI, 2007, p.49, tradução nossa.).
[27](CAPPELLI, 2007, p.49, tradução nossa.).