quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A perspectiva da Ética cristã sobre o Conflito social e a Luta de classes: a busca do Bem Comum.

O conflito social é um “fato” histórico que não podemos negar. A vida humana é marcada por esse aspecto que de um modo ou de outro, direta ou indiretamente, perpassa os momentos mais fortes e determinantes de nossa história.  A Igreja reconhece tal fato, apesar de não ter uma explicação sistemática e elaborada para tal causa conflitiva. Porém, assim como a conflitividade marca o mundo hermenêutico da estrutura social, a mesma faz parte da configuração moral da sociedade. Pois todos os aspectos das relações sociais, que, em caso extremo, estão nas linhas de tensões, nas fronteiras decisórias e conflitivas da existência, reivindicam do ser humano um juízo de valor e uma praticidade social.
Santo Afonso é um exemplo dessa necessidade de juízo de valor e praticidade social na sua famosa Teologia Moral. Ela surge do impasse entre a lei e a liberdade, ou mais concretamente dizendo: do conflito entre a normatividade casuística de dois grupos religiosos antagônicos (laxistas e rigoristas) e um povo periférico (cabreiros) que vivia em outras condições sociais, com uma mentalidade e costume diferente das duas potencias religiosas. É a partir desse conflito entre duas posições contrárias e a realidade particular de um povo simples que Afonso constrói uma Teologia Moral da Benignidade, uma Teologia em que a “consciência” possuiu as faculdades e luzes divinas necessárias para julgar e decidir sobre sua própria vida, em vista do Bem Comum. Ainda hoje, inevitavelmente, é a partir dessas espécies de conflitos sociais contemporâneas que se exige da ética cristã uma resposta á altura de sua promessa salvífica redentora.
Para falar de conflito social necessariamente vamos passar pela temática da luta de classe. Porém, antes de tudo, é preciso distinguir que: o que caracteriza um conflito como social é o seu aspecto de oposição coletiva, isto é, oposição entre certas camadas sociais ou no interior de uma mesma camada. Um conflito que na maioria das vezes se realiza em vista da tomada do poder. Portanto, o conflito social não se trata de desacordos ou conflitos entre dois indivíduos, mas entre dois grupos, ou certa coletividade, ou categorias sociais em vista de um poder. É possível encontrar tais conflitos no campo cultural, político, econômico, religioso e etc. Mas vamos nos ater ao aspecto conflitivo social em relação com a ética cristã. Segundo o alemão e sociólogo Ralf Gustav Dahrendorf (1929-2009) o conflito social pode ser definido em dois pontos: 1) por “volume de unidade social”, isto é, entre representantes, dentro de grupos sociais, agrupamentos ou unidades maiores. Ou 2) por categorias de grupos como entre empresários e sindicatos, entre setores políticos e etc. Já o filósofo Ildefonso Murillo trata de dois tipos de conflitos: a) o ideológico (quando há oposição de valores e ideais de mundo entre dois grupos) e b) os conflitos por escassez de bens e valores (quando os bens de alguns grupos excluem outros grupos dos mesmos direitos de bens). O Brasil é um exemplo visível desta última categoria de conflito. Tais conflitos demarcam de modo geral a experiência humana social, nas suas relações econômicas, políticas e religiosas.
A partir disso podemos agora sustentar que a realidade social do conflito parte sob duas posições: uma negativa e outra positiva. A negativa sustenta o conflito como doença patológica, algo anormal, ação irracional do sujeito ou grupo social. A posição positiva observa o conflito como dinâmica que transforma a sociedade. Assim, seguimos a orientação moral do teólogo Marciano Vidal em que:
o conflito social não se deve ser interpretado unicamente em relação com a situação presente dos sistemas sociais, mas também e, sobretudo, em referência as mudanças da estrutura social. ‘Minha tese é que a missão constante, o sentido e o efeito dos conflitos sociais se concretizam em manter e fomentar a evolução da sociedade em suas partes e em seu conjunto [...] (VIDAL, 1979, p. 568).
Tal visão positiva é concordante com uma proposta ética social e está de acordo com a ética social cristã. Entre as causas dos conflitos há uma postura que não pode deixar de ser vista e refletida pela ética cristã. Trata-se da observação do conflito social determinado pela base econômica, pela injusta desigualdade do sistema de produção. É o conflito que numa visão marxista está relacionado com a luta de classes. Ora, a Igreja não tem uma resposta pronta ou fechada sobre a causa de tal conflito, apenas ela constata que cada dia está mais claro que existe uma guerra entre as classes, mas que não se sabe suas causas. Sobre o fenômeno específico do âmbito da conflitualidade – a luta de classes – é possível considerar que ela pode ser vista como fato e como método: “‘A luta de classes é ao mesmo tempo um fato e um método. É um fato: isto é, a divisão da sociedade em classes, irredutivelmente antagonistas entre elas, em seus interesses [...]. Este fato é além disso considerado como uma lei histórica” (Ibidem, p.571).“A luta de classes é [...] um método que se impõe às classes oprimidas para se livrarem, no sentido de que a transformação da sociedade passa por uma iniciativa solidária, sistemática, de luta de classes oprimidas contra as classes dominantes” (Ibidem.).
Após esses esclarecimentos podemos fazer algumas considerações acerca da postura e posição da Igreja sobre a questão da luta de classes. Pois quando se fala em tal conceito, ele está implicado como fator social, da conflitividade, que exige uma análise cristã. Ao primeiro momento é importante esclarecer que tal temática não é tranquila de ser debatida, pois “é um tema que preocupa visivelmente a consciência cristã, mas a respeito dele não existe uma elaboração teórica suficiente” (Ibidem, p.555). Na Encíclica Rerum Novarum de 15 de Maio de 1891 a posição da Igreja se demostra contrária à visão da história como luta de classes: “Não luta, mas concórdia das classes” (nº 8). Na numeração oitava o documento continua: “O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas inatas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado”. Na Mater et Magistra (nº 23) João XXIII chega a afirmar que “tanto a concorrência de tipo liberal, como a luta de classes no sentido marxista, são contrárias à natureza e à concepção cristã da vida”. Pio XII na sua obra Pio XII e os problemas do mundo moderno, de 1959, no tópico sobre a luta de classes sustenta a postura de “concórdia social para o progresso e a utilidade comuns” (p.189) contrárias da luta de classes.
Nesse sentido poderíamos até pensar equivocamente que a posição da Igreja é totalmente contrária à luta de classes. Todavia, há posições que se sustentam ora favoráveis e de aceitação (total ou gradual), ora de repulsa em relação á luta de classesa. Porém, como sustenta Vidal: “De nossa parte cremos que a ética cristã tem na atualidade uma dupla missão em relação com a luta de classes. Por uma parte, compete-lhe submeter à revisão crítica a posição vigente na doutrina social católica; por outra parte, compete-lhe fazer um discernimento sobre a coerência cristã dentro da luta de classes” (VIDAL, 1979, p. 556). A primeira revisão que se poderia fazer é que a “doutrina social católica não teve em conta o caráter histórico-social das classes sociais e de sua luta; considera-as como algo ‘natural’ confundindo assim classes sociais com ‘funções’ sociais” (Ibidem). “A oposição e o medo ao marxismo introduziram um ‘prejuízo’ inicial na análise e na valoração da luta de classes” (Ibidem). “A visão interclassista da sociedade que os Papas propocionaram, desde Leão XIII até Pio XII, é ideológica e carente de realismo” (Ibidem). Tais posturas denotaram uma visão reduzida, artificial, ideológica e ingênua da Igreja acerca da luta de classes.
Porém, no decorrer da histórica a questão da luta de classes foi sendo revista com mais propriedade e analisada como hermenêutica da realidade econômica e política social. A teologia desenvolvida na América Latina promoveu uma nova reflexão acerca dos elementos significativos que compunham a questão da luta de classes. O decorrer do tempo foi suficiente para que em 1991 o Papa João Paulo II apresenta-se uma visão menos ingênua e mais esclarecida acerca da contribuição que a concepção de luta de classes poderia oferecer para o anúncio da salvação integral do ser humano e o resgate de sua dignidade. Essa postura é vista na Encíclica Centesimus Annus (nº14) do Papa João Paulo II, quando, na relação entre conflito social e luta de classes, ele mesmo acentua que:
não pretende condenar toda e qualquer forma de conflitualidade social. A Igreja sabe bem que, ao longo da história, os conflitos de interesses entre diversos grupos sociais surgem inevitavelmente, e que, perante eles, o cristão deve muitas vezes tomar posição decidida e coerentemente. A Encíclica Laborem exercens, aliás, reconheceu claramente o papel positivo do conflito, quando ele se configura como luta pela justiça social; e na Quadragesimo anno escrevia-se: «com efeito, a luta de classes, quando se abstém dos actos de violência e do ódio mútuo, transforma-se pouco a pouco numa honesta discussão, fundada na busca da justiça.
Nesse sentido, a nova proposta ética cristã pós-conciliar atuou com uma nova postura de diálogo e abertura, sem reduzir a história humana à luta de classes, mas de fazer dela a chave de leitura e o instrumento metodológico de transformação social no seu aspecto positivo. Neste aspecto foi que houve uma aproximação da proposta cristã com o comunismo, da luta de classes pela e para a busca e plenificação do Reino. O economista Paul Lehmann, os teólogos jesuítas (Gonzalo Arroyo, Jean-Yves Calvez e Henrique Cláudio de Lima Vaz), além do teólogo Leonardo Boff, foram algumas personalidade referênciais que contribuíram para aproximação e relação metodológica entre a ética cristã e a ética marxista. Esses pontos de relação entre ética cristã e marxismo auxiliam a relevância da ética cristã com a luta de classes nos seus pontos de acordo e congruência. Nesse aspecto seguimos a proposta ética teológica de Marciano Vidal onde ele apresenta quatro aspectos fundamentais que é preciso perceber com clareza sobre a luta de classes para, por conseguinte, explanar um juízo crítico em coerência com a ética cristã:
– [1] A luta de classes é primordialmente a situação objetiva de opressão e antagonismo que dinama da existência das classes. Essa situação é injusta, e, portanto, anticristã. A luta de classes, em sentido estrutural, deve ser condenada sem reservas. [...] Como a estrutura classista da sociedade impede a colaboração e harmonia entre as pessoas de umas e outras classes, as classes devem ser supressas. – [2] A luta de classes é o esforço dos grupos sociais oprimidos por uma estrutura clássica da sociedade, para superar essa situação e alcançar sua libertação sócio-política. Esse esforço é legítimo e a ele devem se somar todos os cristãos. Ninguém pode opor-se, em nome da fé, à defesa legítima, diante de uma situação de injustiça estrutural. [...] – [3] A luta de classes é aplicação de certas estratégias ou táticas, para conseguir a supressão da sociedade classista. A luta de classes, assim entendida, nem sempre é lícita para um cristão. Existe meios morais e meios imorais, inclusive para combater situações de injustiça. O cristão não aceita o uso indiscriminado da violência [...]. – [4]A luta de classes pode significar, finalmente, a repressão exercida pelos beneficiários da estrutura classista da sociedade, contra os que se defendem legitimamente. (VIDAL, 1979, p. 559)    
            Vamos expor cada ponto para esclarecer melhor sobre a coerência ética cristã dentro da luta de classe. Tomamos a América Latina como modelo exemplar para delinear os aspectos positivos da luta de classes e de sua instrumentalização na ética teológica cristã. A luta de classes na ética cristã teológica deve passar pelo crivo ético do Bem Comum. Isso implica que razão de ser e existir na história da luta de classes é contraria ao essencial do cristianismo. Pois o Reino de Deus não é para que uma classe domine e submeta a outra, mas para que todos tenham iguais direitos e condições dignas de vida. Neste sentido é que a luta de classes, como luta antagônica e submissão de um grupo ao outro, deve ser suprimida, pois gera injustiça e opressão quando segue a dinâmica da desigualdade social, a opressão e exploração dos mais fracos. Assim a situação histórica, de grupos antagônicos, de luta de classes, de exploração e injustiça é a problemática que precisa ser superada. Na América Latina tal realidade histórica se faz patente como foi apresentado no concílio de Medellín e Puebla. Diante dessa situação a ética dos cristãos tenta sanar tal situação injusta, tal dinâmica que privilegia poucos e explora muitos.
Se no primeiro ponto se observou o aspecto negativo e basilar da luta de classes que são considerados pela ética cristã, no segundo ponto se sustenta que a luta de classes é assumida no seu aspecto positivo: ela se constitui como a luta da classe oprimida por libertação sócio-política. Se há um antagonismo estrutural então a dinâmica a que se apoia a ética cristã é a luta do oprimido por libertação, por justiça, por paz, por dignidade. É nesse aspecto que a classe oprimida se esforça por amenizar ou sanar o antagonismo existente. Isto ela faz lutando por direitos e condições igualitárias. A teologia da libertação segue tal orientação ética. Ela parte da realidade dos oprimidos, os pobres, para libertá-los do pecado estrutural e social. É um esforço de libertação: “esse esforço é legítimo e a ele devem se somar todos os cristãos. Ninguém pode opor-se, em nome da fé, à defesa legítima, diante de uma situação de injustiça estrutural”.
O terceiro ponto se remete à práxis. Ao caminho, ou ação realizada para alcança a libertação, a supressão do sistema classicista. Este ponto nos orienta para termos uma moralidade e legitimidade que seja realizada em concordância com a possibilidade cristã de realizar a dinâmica do Reino. Neste sentido a luta exercida pela classe oprimida não pode ser aquela da classe opressora. Neste campo a situação se torna delicadíssima, pois envolve as possibilidades e condições de libertação. Todavia, tal luta não pode agir de má fé, mas para a plena realização da justiça, do Bem Comum. Tal dinâmica pode ter como norte a ação evangélica do “fazer aos outros aquilo que queremos para nós”. Se a práxis da libertação for uma imitação da perversão do opressor, então ela estará fora da ética cristã. Pois a libertação autêntica engloba aquilo que nos é de direito e justo de acordo com a variabilidade das condições nas suas problemáticas nuanças.
O quarto ponto se reporta à medida que se volta contra aquele que está na situação de oprimido. Essa situação de repressão se demonstra por uma coação e normalmente é exercida por aqueles que são beneficiados pela estrutura injusta. Trata-se das ações legalistas e jurídicas alheia à vontade cívica, que denigre e transgride o Bem Comum e a Dignidade Humana. Tal medida contrária à equidade social constitui um abuso injustificável que necessita de uma constante denúncia. A Reforma no Ensino, na Previdência Social e na Terceirização trabalhista foram medidas exercidas no Brasil que não passaram pela opinião pública, pelo voto popular. Tais medidas foram protocoladas de acordo com a legalidade, todavia, o sistema político representativo não consultou a opinião pública, mas decidiu pelos direitos que a lei governamental lhe concedia. Neste sentido tais questões tão pertinentes à sociedade como um todo não passaram por um amadurecimento e vigência pública, mas pelos interesses pertinentes às empresas particulares estatais e à economia de um específico setor empresarial capitalista: o setor primário. As consequências de tais medidas é a redução no sistema econômico público em prol de um crescimento dos bens privados. Portanto, a conta de tal desigualdade e desequilíbrio econômico será posta na grande massa populacional trabalhadora. Tais medidas estão passando pela legitimidade, mas não se pode dizer que assumem o caráter de eticidade cristã e do Bem Comum. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário