quinta-feira, 17 de maio de 2018

Profetismo contínuo: os três Isaias, Santo Afonso e o 25º Capítulo Geral.


É comum falarmos sobre Santo Afonso em três dimensões, a saber: a clerical, a episcopal e a moral. Porém, pouco ou quase nada se fala sobre Santo Afonso numa perspectiva profética. Diante dessa lacuna, o presente texto pretende expor um olhar profético sobre tal santo para desvelar esse aspecto pouco explorado. Porém, para justificar corretamente essa perspectiva partimos, no primeiro tópico, de alguns pontos que classificam e delineiam de modo geral o profetismo bíblico, tendo como destaque os escritos proféticos que se remetem ao(s) profeta(s) Isaias. A partir de então destacamos alguns postos – chave da vida, ação e mensagem afonsiana que sinalizam, concordam e apresenta certa continuidade com o profetismo bíblico. Para além de uma simples justificação e exposição do profetismo afonsiano, sustentamos a continuidade de tal dimensão na contemporaneidade a partir dos documentos finais do 25º Capítulo Geral.

O fenômeno profético nos escritos bíblicos e os textos proféticos dos três Isaias. 

Etimologicamente a palavra “profeta” provém do hebraico Nabí e do grego Profétes. Ela se refere às personalidades de destaque no movimento profético clássico bíblico e extra – bíblico. No profetismo bíblico o profeta é caracterizado por quatro pontos: a) ser interpelado por Deus para orientar o povo, como ocorreu com Abraão (Ex 3,10). Neste aspecto o profeta é um vocacionado de Deus para uma missão; b) o profeta é aquele que estar nas ruas, inserido na realidade pública e social, nas periferias existenciais. Os oráculos de Jeremias contra Joaquim, a casa real e as nações (Jr 21-25), denotam sua inserção na realidade de Israel, no séc.VI, quando o império babilônico dominou Israel e deportou seus líderes; c) o profeta passa por perseguição, prisão e até morte, devido à mensagem que anuncia. Em 1Rs 18,4 vemos que Jezabel, a esposa do rei Acab, mandou massacrar os profetas de Iahweh; d) o profeta possui um carisma que transcende o tempo histórico. Deus chama homens (Abraão, Samuel, Ezequiel...) e mulheres (Débora, Hulda...) para serem a ‘boca de Deus’. O profeta extrapola as classes sociais, as barreiras religiosas e políticas; e) a ação profética visa realizar a vontade de Deus, retomar a fidelidade da “Aliança” e direcionar o povo para Deus; f) o profeta é uma pessoa da Palavra. Ele transmite-a por diversos meios.
Dito isto, podemos delinear alguns pontos proféticos importantes que marcam os textos isaianos. Segundo os historiadores e biblistas o livro de Isaias (1-66) é atribuído a três Isaias (ou grupos proféticos): o Proto-Isaias, o Dêutero-Isaias e o Trito-Isaias. O primeiro se situa no tempo que vai de Amós até o exílio, enquanto que os dois últimos se situam no pós-exílio.
No Proto-Isaias (Is 1-39) o profeta se situa no séc. VIII a.C. e participa de dois momentos fortes: 1) o momento em que os assírios entram em ação na Síria-Palestina e querem atacar a Israel, a Judá e a circunvizinhança, 2) e o momento em que o rei de Jerusalém (Faceia, um rei golpista) quer confrontar contra o rei da Assíria (Teglat-Falasar III) (ASURMENDI, 1988, p.42). Mas para que seu grupo se torne mais forte, ele terá que fazer coligação com o Rei de Judá, Acaz, ou destituí-lo do trono.
Deste modo Acaz se ver diante do perigo de ser atacado pelos assírios, ou ser destituído do poder pelo rei de Israel. Acaz é pressionado a fazer coligação política com um dos grupos poderosos (Is 7). Neste percurso vemos – como primeiro ponto do profeta Isaias – a sua postura diante da realidade. O profeta vai orientar Acaz a confiar somente na promessa de Deus e não fazer a coligação com nenhum dos dois. O discernimento do confiar em Deus é acompanhado pela profecia da vinda de um menino que iria salvaguardar o trono e continuar o reinado de Davi. “Isaias crer na fidelidade de Deus e, em um momento especialmente crítico, lembra ao rei a promessa que é a origem de sua realeza” (Ibid., p.46).
O segundo ponto da profecia de Isaias está relacionado com a ética e o culto (Is 1, 10-20) de Israel e Judá, ou melhor dizendo: contra Sodoma e Gomorra. A religião bíblica tem uma marca ética. Porém, no contexto referido e fé o povo de Deus passa pela supervalorização do culto desvinculada do seu aspecto ético – social. A postura do profeta se situa na crítica ao culto, vazio de sentido, isto é, fora da luta pela justiça e pelo direito do povo. Por esse desvinculo Isaias denuncia que os líderes religiosos e políticos, e suas mulheres, não observam a justiça que deveria provir do culto: desprezam os órfãos, as viúvas e os pobres. Assim profetiza Isaias: “Ouvi a palavra de Iahweh [...] Estou farto de holocaustos de carneiros e da gordura de bezerro. [...] Basta de trazer-me ofertas vãs [...]. Tirai de mim as vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem!” (Is 1, 10-17).
No Dêutero – Isaias (Is 40-55) nos situamos no séc.VI a.C., período em que o Império Babilônico está em decadência e o Império Persa se torna uma potência. Se com as invasões inimigas parte significativa de Israel foi deportada para Babilônia, isso gerou, no povo, uma sensação de que Deus lhes abandonara. Se Israel estava fora da terra natal e sob o domínio Babilônico era porque Deus estava castigando-os. Porém com a presença de Ciro, o rei persa, o povo inicia uma expectativa de libertação da Babilônia e Retorno para casa natal. Nesse contexto de transição – de prisão e abandono para a libertação e esperança – o profeta desenvolve uma teologia marcada por uma mensagem profética consoladora: “Consolai, consolai meu povo, diz vosso Deus” (Is 40,1). Na teologia profética o tema da misericórdia aparece e segue a mesma dinâmica do tema da redenção.
A Redenção também se relaciona com o Goel tratado no Antigo testamento. Trata-se do personagem do direito veterotestamentário. O Goel tinha a tarefa de “tomar as dores do seu protegido e fazê-lo recuperar a liberdade, reaver a propriedade ou, em caso de morte, vinga-lo. De modo especial, os mais fragilizados da sociedade deveria ser protegido, de forma a não sofrerem abusos e serem aviltados de sua dignidade” (VITÓRIO, 2016, p.14-15). Na profecia isaiana (Is 41, 14) Deus assume essa identidade de Goel-redentor para o resgate do povo de Israel que estava no exílio: “Não temas, vermezinho de Jacó, e vós, pobres pessoas de Israel. Eu mesmo te ajudarei, oráculo de Iahweh; o teu redentor é o Santo de Israel”.
Outro ponto que se assenta na profecia do Dêutero-Isaias é a dinâmica do servo sofredor (Is 42,l-9; 49,1-7; 50,4-11; 52,13-53,12). No contexto do exílio e libertação de Israel a temática do servo sofredor se relaciona com a fidelidade a Deus para a plena libertação, salvação e realização humana. Nesta dinâmica vemos o valor redentor que há no sofrimento. Essa dinâmica tem relevância na mensagem cristã em que se o grão de trigo não morrer, não poderá produzir fruto. No sentido que as dores existências feitas pela opção de Deus e sua mensagem tem um valor santificador e contribuinte para a redenção humana.
Outro ponto da teologia profética isaiana é o endurecimento do coração (Is 6,10; 29, 9-11). O profeta sabe que a sua missão não será fácil. Porém, o profeta também é um anunciador da esperança e da alegria. Mas não se trata de qualquer alegria: mas da alegria, que mesmo passando pela dor, progride incessantemente para um futuro melhor. O próprio nome Messias já é uma abertura para a esperança. Os textos do Dêutero- Isaias (Is 7, 3; 8, 23b -9, 6; e 11, 1-9) são da esperança.
O Trito-Isaias (Is 56-66) se encaixa na temática profética da justiça. A proposta divina é: “Observai o direito e praticais a justiça, porque minha salvação está prestes a chegar e minha justiça, a se revelar” (Is 56,1).  Mas não se trata da justiça pela justiça, mas de uma justiça que liberta e gera felicidade aos que estão oprimidos e excluídos: “O espírito do Senhor Iahweh está sobre mim, porque Iahweh me ungiu; enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres; a cura os quebrantados de coração e proclamar a liberdade aos cativos, a libertação aos que estão presos, e proclamar um ano aceitável a Iahweh” (Is 61,1-2).

Os pontos – chave da vida, ação e mensagem afonsiana na perspectiva profética.

Após apresentarmos um esboço sintético sobre o profetismo e a figura emblemática do profeta e da mensagem isaiana (s), podemos observar alguns pontos – chaves que identificam a vida, a ação e a mensagem afonsiana como profética. Primeiramente consideramos que a infância religiosa afonsiana é marcada profeticamente pela experiência de Deus. A educação de Santo Afonso tem essa marca espiritual profunda mediada pela presença de sua mãe Ana Catarina Cavaliere: “Foi sua própria mãe quem assumiu inteiramente essa responsabilidade, e exclusivamente” (REY-MERMET, 1984, p. 47). Além desta, o Pe. Tomás Pagano, dentre outros, foram pessoas que contribuíram para a maturidade espiritual de Santo Afonso.
Tais mediações ajudaram Santo Afonso na sua espiritualidade e experiência de Deus. Com doze anos, Afonso é chamado, por um amigo, para jogar. Tal menino perde várias partidas e chega a ofender Afonso. Após o conflito este vai parar num parque a contemplar a imagem de Nossa Senhora: “Ele a traz sempre consigo. [...] Está tão absorto em sua oração, tão surdo ao mundo sensível, que é preciso um momento para que o barulho à sua volta o retire de seu êxtase” (Ibid., p. 53).  Os sinais proféticos dessa experiência se encontra na própria vocação ao chamado de Deus: “viu-se de repente envolto por uma grande luz, o edifício lhe pareceu completamente abalado, e seu coração ouviu uma voz, distintamente: – Deixe o mundo e entregue-se a mim. Afonso se detém, interiormente aterrado:  – Meu Deus, diz chorando, resisti demais a vossa graça. Eis-me aqui: fazei de mim o que quiserdes...”(Ibid., p. 133).
Outro elemento profético afonsiano se apresenta no seu itinerário de vida, que aos poucos vai incutindo em Afonso uma especial atenção profética aos últimos de Nápoles: os desassistidos sociocultural e espiritualmente. Sua vida, inicialmente delineada pela nobreza generosa, é marcada processualmente por um ritmo de vida em adesão aos prediletos de Jesus. “Esse aristocrata [, Afonso,] em quem habitará a angustia dos pobres seguiu por instinto o ritmo de trabalho dos pobres” (Ibid., p.97) (Acréscimo nosso). O sinal profético da aproximação com os excluídos é perceptível quando ele vai trabalhar no hospital dos incuráveis.   Na Congregação da Visitação Afonso vai “tocar com suas mãos, todas as semanas, durante anos, o homem no chão, despojado, esfoliado, que geme na fossa, à beira do caminho do rico. Durante oito anos vai ‘se inclinar’ sobre ele, com amor, [...]. Este pobre, este crucificado, é o Cristo” (Ibid., p. 116). “Aos pobres, dedica-se ainda nosso advogado numa outra confraria com a qual os Ligórios se acham muito comprometidos: a de Santa Maria da Misericórdia” (Ibid., p. 117). A experiência com os pobres cabreiros em Scala é um dos mais altos pontos que demarcam fortemente a proximidade profética de Santo Afonso com os últimos. “Afonso só tem olhos, ouvidos e língua para os habitantes daqueles lugares afastados; sua decisão será de consagrar sua própria à sua ajuda” (Ibid., p.229).
Outro elemento profético em Santo Afonso é a inspiração bíblica (Palavra de Deus) pela qual ele fundou a Congregação e desenvolveu o carisma redentorista. O texto chave é de Lc (4, 16-9) em que Jesus inicia o seu itinerário querigmático público e começa fazendo referência ao profeta Isaias (61, 1-2): “O espírito do Senhor Iahweh está sobre mim, porque Iahweh me ungiu; enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres; a cura os quebrantados de coração e proclamar a liberdade aos cativos, a libertação aos que estão presos, e proclamar um ano aceitável a Iahweh” (Is 61,1-2). Essa passagem explicita a razão profética redentora, esperançosa e libertadora da Congregação Redentorista. Nela está a retomada profética a luz da Revelação, encarnação, morte, ressurreição e eucaristização de Jesus Cristo: os inúmeros meios pelo qual Jesus demonstrou a amor inesgotável do Pai para conosco, e de modo especial, para com os pobres.
Por último, encontramos em Santo Afonso elementos que fazem referência aos textos proféticos isaianos. O mais significativo deles está na aproximação e equivalência entre o termo “Goel” e “Redentor”, como explicitado anteriormente no primeiro tópico. Outro termo de ação equivalente á a “justiça”. Podemos conjeturar que tais palavras se relacionam diretamente com a vida de Santo Afonso. O termo “Goel” é propriamente do âmbito jurídico e Santo Afonso aos 16 anos se torna advogado. A luta pela justiça (sobretudo de Deus) perpassa o ideal afonsiano: “Afinal de contas, as virtudes que constituem o advogado são a ciência, a aplicação (diligenza), a verdade, a fidelidade e a justiça” (Ibid., p.104). Santo Afonso atua nos tribunais ao mesmo tempo que também se aproxima dos pobres e excluídos. Há uma relação nisso, que não cabe aqui aprofundar.  Porém, se Afonso abandona os tribunais, isso não implica deixar de lados tais princípios jurídicos como a justiça e a goelança (redentora), mas observá-los sobre uma experiência mais profunda e essencial, isto é, no âmbito da experiência com Deus e da prática humana, no âmbito da moral. Pois a história confirma uma busca mais aprofunda da justiça e da dinâmica do “Goel” fora do âmbito jurídico: trata-se do anuncio da Redenção, da justiça e da misericórdia para com a causa dos pobres e excluídos da sociedade da presença de Deus. Tais pontos são continuados e se delineiam com mais clareza, e sob outro contexto, na contemporaneidade com os Missionários Redentoristas.

Documentos finais do 25º Capítulo Geral: continuação profética.

Após destacarmos alguns elementos que marcam o profetismo afonsiano, podemos dizer que, na contemporaneidade, tal inspiração permeia os trabalhos dos Missionários Redentoristas. Principalmente nos documentos finais do 25º capítulo Geral (DF25ºCG) cujo o tema do sexênio foi: “Testemunhas do Redentor: Solidários para a Missão em um mundo ferido”. Uma das motivações desses documentos é fazer com que sejamos “‘testemunhas do Evangelho da graça de Deus’ (Const. 7). E profetas da redenção abundante que Deus oferece ao mundo” (DF25ºCG, 2016, p. 8).
O primeiro elemento importante é a compreensão geral da realidade contemporânea a qual somos interpelados profeticamente: “Vivemos em um mundo ferido pelo pecado, pela violência, pelas injustiças e, hoje mais fortemente, pelo medo. A degradação ambiental feriu nosso planeta, e são os pobres os que mais dramaticamente sentem o impacto dessa degradação” (Ibid., p.7).
O segundo se reporta aos espaços de atuação profética ao qual somos desafiados: “a ir para as periferias do mundo. [...] abandonemos nossa comodidade e eliminemos tudo que nos impede de ser livres e proféticos” (Ibid., p.14). Para descentralização do nosso egoísmo é preciso converter e “revitalizar nossa vida consagrada” para o serviço a Deus e aos irmãos. A motivação é que “Sejamos profecia para nosso mundo com nosso estilo de vida, com nossa denúncia das estruturas de pecado, e com o anúncio da copiosa redenção em Jesus Cristo, que liberta e dignifica o ser humano” (Ibid., p.18). A Reestruturação interna e para a Missão (Ibd., p. 22-24) faz parte do novo suspiro profético que estamos tendo para ser de modo original, porém renovado, profetas dos novos tempos.
Sem mais delongas: a práxis profética se situa no âmbito da urgência da solidariedade, na dinâmica de um só corpo missionário (Ibid., p.16), em missão compartilhada com toda a família redentorista (Ibid., p.17). “Aceitemos o desafio de viver e construir solidariedade: solidariedade com nosso mundo, com a criação e com os homens e mulheres de nosso tempo; solidariedade com os menos favorecidos da nossa sociedade” (Ibid., p. 17).

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