quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A perspectiva da Ética cristã sobre o Conflito social e a Luta de classes: a busca do Bem Comum.

O conflito social é um “fato” histórico que não podemos negar. A vida humana é marcada por esse aspecto que de um modo ou de outro, direta ou indiretamente, perpassa os momentos mais fortes e determinantes de nossa história.  A Igreja reconhece tal fato, apesar de não ter uma explicação sistemática e elaborada para tal causa conflitiva. Porém, assim como a conflitividade marca o mundo hermenêutico da estrutura social, a mesma faz parte da configuração moral da sociedade. Pois todos os aspectos das relações sociais, que, em caso extremo, estão nas linhas de tensões, nas fronteiras decisórias e conflitivas da existência, reivindicam do ser humano um juízo de valor e uma praticidade social.
Santo Afonso é um exemplo dessa necessidade de juízo de valor e praticidade social na sua famosa Teologia Moral. Ela surge do impasse entre a lei e a liberdade, ou mais concretamente dizendo: do conflito entre a normatividade casuística de dois grupos religiosos antagônicos (laxistas e rigoristas) e um povo periférico (cabreiros) que vivia em outras condições sociais, com uma mentalidade e costume diferente das duas potencias religiosas. É a partir desse conflito entre duas posições contrárias e a realidade particular de um povo simples que Afonso constrói uma Teologia Moral da Benignidade, uma Teologia em que a “consciência” possuiu as faculdades e luzes divinas necessárias para julgar e decidir sobre sua própria vida, em vista do Bem Comum. Ainda hoje, inevitavelmente, é a partir dessas espécies de conflitos sociais contemporâneas que se exige da ética cristã uma resposta á altura de sua promessa salvífica redentora.
Para falar de conflito social necessariamente vamos passar pela temática da luta de classe. Porém, antes de tudo, é preciso distinguir que: o que caracteriza um conflito como social é o seu aspecto de oposição coletiva, isto é, oposição entre certas camadas sociais ou no interior de uma mesma camada. Um conflito que na maioria das vezes se realiza em vista da tomada do poder. Portanto, o conflito social não se trata de desacordos ou conflitos entre dois indivíduos, mas entre dois grupos, ou certa coletividade, ou categorias sociais em vista de um poder. É possível encontrar tais conflitos no campo cultural, político, econômico, religioso e etc. Mas vamos nos ater ao aspecto conflitivo social em relação com a ética cristã. Segundo o alemão e sociólogo Ralf Gustav Dahrendorf (1929-2009) o conflito social pode ser definido em dois pontos: 1) por “volume de unidade social”, isto é, entre representantes, dentro de grupos sociais, agrupamentos ou unidades maiores. Ou 2) por categorias de grupos como entre empresários e sindicatos, entre setores políticos e etc. Já o filósofo Ildefonso Murillo trata de dois tipos de conflitos: a) o ideológico (quando há oposição de valores e ideais de mundo entre dois grupos) e b) os conflitos por escassez de bens e valores (quando os bens de alguns grupos excluem outros grupos dos mesmos direitos de bens). O Brasil é um exemplo visível desta última categoria de conflito. Tais conflitos demarcam de modo geral a experiência humana social, nas suas relações econômicas, políticas e religiosas.
A partir disso podemos agora sustentar que a realidade social do conflito parte sob duas posições: uma negativa e outra positiva. A negativa sustenta o conflito como doença patológica, algo anormal, ação irracional do sujeito ou grupo social. A posição positiva observa o conflito como dinâmica que transforma a sociedade. Assim, seguimos a orientação moral do teólogo Marciano Vidal em que:
o conflito social não se deve ser interpretado unicamente em relação com a situação presente dos sistemas sociais, mas também e, sobretudo, em referência as mudanças da estrutura social. ‘Minha tese é que a missão constante, o sentido e o efeito dos conflitos sociais se concretizam em manter e fomentar a evolução da sociedade em suas partes e em seu conjunto [...] (VIDAL, 1979, p. 568).
Tal visão positiva é concordante com uma proposta ética social e está de acordo com a ética social cristã. Entre as causas dos conflitos há uma postura que não pode deixar de ser vista e refletida pela ética cristã. Trata-se da observação do conflito social determinado pela base econômica, pela injusta desigualdade do sistema de produção. É o conflito que numa visão marxista está relacionado com a luta de classes. Ora, a Igreja não tem uma resposta pronta ou fechada sobre a causa de tal conflito, apenas ela constata que cada dia está mais claro que existe uma guerra entre as classes, mas que não se sabe suas causas. Sobre o fenômeno específico do âmbito da conflitualidade – a luta de classes – é possível considerar que ela pode ser vista como fato e como método: “‘A luta de classes é ao mesmo tempo um fato e um método. É um fato: isto é, a divisão da sociedade em classes, irredutivelmente antagonistas entre elas, em seus interesses [...]. Este fato é além disso considerado como uma lei histórica” (Ibidem, p.571).“A luta de classes é [...] um método que se impõe às classes oprimidas para se livrarem, no sentido de que a transformação da sociedade passa por uma iniciativa solidária, sistemática, de luta de classes oprimidas contra as classes dominantes” (Ibidem.).
Após esses esclarecimentos podemos fazer algumas considerações acerca da postura e posição da Igreja sobre a questão da luta de classes. Pois quando se fala em tal conceito, ele está implicado como fator social, da conflitividade, que exige uma análise cristã. Ao primeiro momento é importante esclarecer que tal temática não é tranquila de ser debatida, pois “é um tema que preocupa visivelmente a consciência cristã, mas a respeito dele não existe uma elaboração teórica suficiente” (Ibidem, p.555). Na Encíclica Rerum Novarum de 15 de Maio de 1891 a posição da Igreja se demostra contrária à visão da história como luta de classes: “Não luta, mas concórdia das classes” (nº 8). Na numeração oitava o documento continua: “O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas inatas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado”. Na Mater et Magistra (nº 23) João XXIII chega a afirmar que “tanto a concorrência de tipo liberal, como a luta de classes no sentido marxista, são contrárias à natureza e à concepção cristã da vida”. Pio XII na sua obra Pio XII e os problemas do mundo moderno, de 1959, no tópico sobre a luta de classes sustenta a postura de “concórdia social para o progresso e a utilidade comuns” (p.189) contrárias da luta de classes.
Nesse sentido poderíamos até pensar equivocamente que a posição da Igreja é totalmente contrária à luta de classes. Todavia, há posições que se sustentam ora favoráveis e de aceitação (total ou gradual), ora de repulsa em relação á luta de classesa. Porém, como sustenta Vidal: “De nossa parte cremos que a ética cristã tem na atualidade uma dupla missão em relação com a luta de classes. Por uma parte, compete-lhe submeter à revisão crítica a posição vigente na doutrina social católica; por outra parte, compete-lhe fazer um discernimento sobre a coerência cristã dentro da luta de classes” (VIDAL, 1979, p. 556). A primeira revisão que se poderia fazer é que a “doutrina social católica não teve em conta o caráter histórico-social das classes sociais e de sua luta; considera-as como algo ‘natural’ confundindo assim classes sociais com ‘funções’ sociais” (Ibidem). “A oposição e o medo ao marxismo introduziram um ‘prejuízo’ inicial na análise e na valoração da luta de classes” (Ibidem). “A visão interclassista da sociedade que os Papas propocionaram, desde Leão XIII até Pio XII, é ideológica e carente de realismo” (Ibidem). Tais posturas denotaram uma visão reduzida, artificial, ideológica e ingênua da Igreja acerca da luta de classes.
Porém, no decorrer da histórica a questão da luta de classes foi sendo revista com mais propriedade e analisada como hermenêutica da realidade econômica e política social. A teologia desenvolvida na América Latina promoveu uma nova reflexão acerca dos elementos significativos que compunham a questão da luta de classes. O decorrer do tempo foi suficiente para que em 1991 o Papa João Paulo II apresenta-se uma visão menos ingênua e mais esclarecida acerca da contribuição que a concepção de luta de classes poderia oferecer para o anúncio da salvação integral do ser humano e o resgate de sua dignidade. Essa postura é vista na Encíclica Centesimus Annus (nº14) do Papa João Paulo II, quando, na relação entre conflito social e luta de classes, ele mesmo acentua que:
não pretende condenar toda e qualquer forma de conflitualidade social. A Igreja sabe bem que, ao longo da história, os conflitos de interesses entre diversos grupos sociais surgem inevitavelmente, e que, perante eles, o cristão deve muitas vezes tomar posição decidida e coerentemente. A Encíclica Laborem exercens, aliás, reconheceu claramente o papel positivo do conflito, quando ele se configura como luta pela justiça social; e na Quadragesimo anno escrevia-se: «com efeito, a luta de classes, quando se abstém dos actos de violência e do ódio mútuo, transforma-se pouco a pouco numa honesta discussão, fundada na busca da justiça.
Nesse sentido, a nova proposta ética cristã pós-conciliar atuou com uma nova postura de diálogo e abertura, sem reduzir a história humana à luta de classes, mas de fazer dela a chave de leitura e o instrumento metodológico de transformação social no seu aspecto positivo. Neste aspecto foi que houve uma aproximação da proposta cristã com o comunismo, da luta de classes pela e para a busca e plenificação do Reino. O economista Paul Lehmann, os teólogos jesuítas (Gonzalo Arroyo, Jean-Yves Calvez e Henrique Cláudio de Lima Vaz), além do teólogo Leonardo Boff, foram algumas personalidade referênciais que contribuíram para aproximação e relação metodológica entre a ética cristã e a ética marxista. Esses pontos de relação entre ética cristã e marxismo auxiliam a relevância da ética cristã com a luta de classes nos seus pontos de acordo e congruência. Nesse aspecto seguimos a proposta ética teológica de Marciano Vidal onde ele apresenta quatro aspectos fundamentais que é preciso perceber com clareza sobre a luta de classes para, por conseguinte, explanar um juízo crítico em coerência com a ética cristã:
– [1] A luta de classes é primordialmente a situação objetiva de opressão e antagonismo que dinama da existência das classes. Essa situação é injusta, e, portanto, anticristã. A luta de classes, em sentido estrutural, deve ser condenada sem reservas. [...] Como a estrutura classista da sociedade impede a colaboração e harmonia entre as pessoas de umas e outras classes, as classes devem ser supressas. – [2] A luta de classes é o esforço dos grupos sociais oprimidos por uma estrutura clássica da sociedade, para superar essa situação e alcançar sua libertação sócio-política. Esse esforço é legítimo e a ele devem se somar todos os cristãos. Ninguém pode opor-se, em nome da fé, à defesa legítima, diante de uma situação de injustiça estrutural. [...] – [3] A luta de classes é aplicação de certas estratégias ou táticas, para conseguir a supressão da sociedade classista. A luta de classes, assim entendida, nem sempre é lícita para um cristão. Existe meios morais e meios imorais, inclusive para combater situações de injustiça. O cristão não aceita o uso indiscriminado da violência [...]. – [4]A luta de classes pode significar, finalmente, a repressão exercida pelos beneficiários da estrutura classista da sociedade, contra os que se defendem legitimamente. (VIDAL, 1979, p. 559)    
            Vamos expor cada ponto para esclarecer melhor sobre a coerência ética cristã dentro da luta de classe. Tomamos a América Latina como modelo exemplar para delinear os aspectos positivos da luta de classes e de sua instrumentalização na ética teológica cristã. A luta de classes na ética cristã teológica deve passar pelo crivo ético do Bem Comum. Isso implica que razão de ser e existir na história da luta de classes é contraria ao essencial do cristianismo. Pois o Reino de Deus não é para que uma classe domine e submeta a outra, mas para que todos tenham iguais direitos e condições dignas de vida. Neste sentido é que a luta de classes, como luta antagônica e submissão de um grupo ao outro, deve ser suprimida, pois gera injustiça e opressão quando segue a dinâmica da desigualdade social, a opressão e exploração dos mais fracos. Assim a situação histórica, de grupos antagônicos, de luta de classes, de exploração e injustiça é a problemática que precisa ser superada. Na América Latina tal realidade histórica se faz patente como foi apresentado no concílio de Medellín e Puebla. Diante dessa situação a ética dos cristãos tenta sanar tal situação injusta, tal dinâmica que privilegia poucos e explora muitos.
Se no primeiro ponto se observou o aspecto negativo e basilar da luta de classes que são considerados pela ética cristã, no segundo ponto se sustenta que a luta de classes é assumida no seu aspecto positivo: ela se constitui como a luta da classe oprimida por libertação sócio-política. Se há um antagonismo estrutural então a dinâmica a que se apoia a ética cristã é a luta do oprimido por libertação, por justiça, por paz, por dignidade. É nesse aspecto que a classe oprimida se esforça por amenizar ou sanar o antagonismo existente. Isto ela faz lutando por direitos e condições igualitárias. A teologia da libertação segue tal orientação ética. Ela parte da realidade dos oprimidos, os pobres, para libertá-los do pecado estrutural e social. É um esforço de libertação: “esse esforço é legítimo e a ele devem se somar todos os cristãos. Ninguém pode opor-se, em nome da fé, à defesa legítima, diante de uma situação de injustiça estrutural”.
O terceiro ponto se remete à práxis. Ao caminho, ou ação realizada para alcança a libertação, a supressão do sistema classicista. Este ponto nos orienta para termos uma moralidade e legitimidade que seja realizada em concordância com a possibilidade cristã de realizar a dinâmica do Reino. Neste sentido a luta exercida pela classe oprimida não pode ser aquela da classe opressora. Neste campo a situação se torna delicadíssima, pois envolve as possibilidades e condições de libertação. Todavia, tal luta não pode agir de má fé, mas para a plena realização da justiça, do Bem Comum. Tal dinâmica pode ter como norte a ação evangélica do “fazer aos outros aquilo que queremos para nós”. Se a práxis da libertação for uma imitação da perversão do opressor, então ela estará fora da ética cristã. Pois a libertação autêntica engloba aquilo que nos é de direito e justo de acordo com a variabilidade das condições nas suas problemáticas nuanças.
O quarto ponto se reporta à medida que se volta contra aquele que está na situação de oprimido. Essa situação de repressão se demonstra por uma coação e normalmente é exercida por aqueles que são beneficiados pela estrutura injusta. Trata-se das ações legalistas e jurídicas alheia à vontade cívica, que denigre e transgride o Bem Comum e a Dignidade Humana. Tal medida contrária à equidade social constitui um abuso injustificável que necessita de uma constante denúncia. A Reforma no Ensino, na Previdência Social e na Terceirização trabalhista foram medidas exercidas no Brasil que não passaram pela opinião pública, pelo voto popular. Tais medidas foram protocoladas de acordo com a legalidade, todavia, o sistema político representativo não consultou a opinião pública, mas decidiu pelos direitos que a lei governamental lhe concedia. Neste sentido tais questões tão pertinentes à sociedade como um todo não passaram por um amadurecimento e vigência pública, mas pelos interesses pertinentes às empresas particulares estatais e à economia de um específico setor empresarial capitalista: o setor primário. As consequências de tais medidas é a redução no sistema econômico público em prol de um crescimento dos bens privados. Portanto, a conta de tal desigualdade e desequilíbrio econômico será posta na grande massa populacional trabalhadora. Tais medidas estão passando pela legitimidade, mas não se pode dizer que assumem o caráter de eticidade cristã e do Bem Comum. 

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Santo Afonso e a Reestruturação.

Foi com alegria que toda a Igreja e nós, Missionários Redentoristas, celebramos no dia 1º de agosto desse ano a festa de Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1787): o fundador de nossa Congregação Missionária cujo carisma inspirador é levar às pessoas abandonadas, principalmente, aos pobres e excluídos, a Copiosa Redenção. No prosseguir desse projeto- de continuar Jesus Cristo Redentor- os Missionários Redentoristas da Vice-província de Fortaleza tiveram em Assembleia capitular na Casa de Retiro das Irmãs Cordimarianas (Caucaia) entre os dias 24 e 28 de 2017.  
Neste Capítulo tratamos sobre o tema do 24º Capítulo Geral (2009): "Reestruturação para a missão: esperança em ação”. O tema da Reestuturação foi inspirador para deslumbrarmos os novos percursos acerca da Missão Redentorista nas nossas áreas de atuação. Apesar desta temática ser nova, ela não deixou de estar presente no percurso de fundação e itinerário de origem da Congregação. Por isso, fazendo memória celebrativa do nosso Fundador em sintonia com o tema da Reestruturação dos Missionários Redentoristas, apresentamos aqui quatro pontos da vida de Santo Afonso de Ligório que marcam e perpassam as linhas gerais e fundamentais da proposta de Reestruturação presente no 24º Capítulo Geral e meditada na Assembleia da Vice-província.
A primeira reflexão se refere a vocação específica de Santo Afonso. Falamos da Inspiração para fundar a Congregação do Santíssimo Redentor. A vida de Santo Afonso foi sempre em busca de saber o que Deus queria dele. Por isso que estando em Scala sentiu a necessidade de criar uma Congregação que ajudasse espiritualmente aos cabreiros, pobres e abandonados, da igreja e da sociedade de Nápoles. O despertar da fé foi concedido por uma Irmã chamada Maria Celeste Crostarosa. Foi ela quem assegurou a Santo Afonso: Jesus quer criar um Instituto o qual o senhor (Padre Afonso) será o fundador. Essa maturidade vocacional para atender ao chamado de Deus foi se realizando aos poucos. Portanto, a origem dos Missionários Redentoristas se deu por um despertar vocacional, uma chamado de Deus, no coração de Afonso, para algo novo, que precisou de uma mudança vocacional. Isso reestruturou a vida de Afonso e abriu um novo horizonte de maturidade e discernimento vocacional, para além de uma vida clerical-sacramental. O projeto de Reestruturação da Congregação é mais do que uma mudança de estrutura, é um despertar vocacional para um novo horizonte que estamos nos deparando na pós-modernidade: o horizonte de uma realidade frágil e ferida. Portanto assim como Santo Afonso despertou vocacionalmente para águas mais profundas, do mesmo modo é a direção que a Reestruturação tenta realizar em nós: uma Reestruturação em função da validade, necessidade e vitalidade de nossa vocação.
O despertar da vida vocacional de Santo Afonso se deu em um horizonte que poucos sacerdotes observavam em Nápoles: as periferias. A Capital napolitana era cheia de sacerdotes que viviam sob os cuidados das grandes famílias. Estas eram as ricas madrinhas de hoje. O serviço apostólico estava acomodado mais ao status e regalias do que ao trabalho clerical e missionário. A missão destes sacerdotes era mais de manutenção sacramental e religiosa das famílias do que a construção de um novo estilo e modo de experimentar e viver a fé. Enquanto que a capital era abarrotada de clérigos, as periferias e lugares precários (como os hospitais dos incuráveis e a região dos lazzarones) eram locais escasso do trabalho ministerial e apostólico dos sacerdotes. Santo Afonso não se acomoda ao status quo, não se submete às vantagens de uma Nápoles que acomoda sacerdotes para um bem estar clerical pessoal e até egoísta. Afonso vai para as periferias, toma uma atitude diferenciada, vai até aos pobres-cabreiros- de Nápoles. Seu itinerário é em vista de uma nova missão: acolher aos pobres e viver a partir deles. Amparar aos esquecidos pela Igreja. É nesse sentido que a missão afonsiana se apresenta na constituição de um carisma específico, de um povo específico, de uma área específica. Assim como o itinerário de Santo Afonso, a Reestruturação se dá em vista da ressignificação do carisma e Missão Redentorista. As periferias continuam sendo um polo especial pelo qual a Vice-província de Fortaleza revitaliza a sua missão e prioridade apostólica. A Reestruturação está na revitalização de uma missão que não pode esquecer as periferias existenciais hoje. Um ir ao encontro dos pobres e abandonados, e não esperar por eles em berço esplendido.
A vida de Santo Afonso foi uma busca incessante por conversão. As mortificações, os silícios, os jejuns e abstinência que Santo Afonso realizou durante toda a sua vida tem uma marca forte de conversão. Era um coração que gastou suas forças em fazer a vontade de Deus. Os escritos deste Santo possuem marcas de uma pessoa que nunca estava satisfeita com o que alcançou da graça divina, mas que se via sempre na necessidade de mudar a partir de dentro: era uma conversão interior que se manifestava no cotidiano da vida. As horas de oração, a preocupação em assistir aos que o procuravam, a inquietude para sempre fazer mais pelo Reino de Deus e o gastar a vida em função dos seus confrades e da missão nos faz ver Santo Afonso como um homem que não perdeu tempo para se converter e se solidarizar com os seus, a fim de que todos amassem cada dia mais a Deus. A proposta de Reestruturação é antes de tudo para a conversão interior, uma conversão do coração e um ser solidário em vista da união constante e estreita ligação do outro com Deus. Sem conversão a Reestruturação é projeto falido, sem solidariedade e responsabilidade mútua a caridade redentora trai o carisma fundacional da Congregação.   

Sem a constante unidade e paixão de Santo Afonso por Jesus Cristo, a Congregação não teria surgido. É a experiência do amor por Deus que faz nosso Santo fundar uma Congregação sem nenhuma condição ou segurança de prosperidade. A única coisa que realmente motivou Afonso foi a fé. E isso se deu por uma constante comunhão com Deus. Uma união de amor que confiou em Deus, mesmo quando as coisas pareciam chegar ao fim, quando tudo pareceu dar errado. Foi assim que o pequeno grupo fundacional redentorista começou, num casebre, sem quase nada, em condições precárias de vida e com algumas pessoas que posteriormente deixaram o projeto de Deus. Somente a união e paixão por Jesus Cristo fez com que Santo Afonso não abrisse de mão do projeto. De modo semelhante o projeto de Reestruturação implica a necessidade de uma união e comunhão com Deus, uma paixão decidida por Jesus e uma confiança em quem nos chamou por primeiro. Em poucas palavras: a Reestruturação deve nos motivar para um revivamento de nossa Espiritualidade. Sem isso o projeto de Deus não vai funcionar. Pois mesmo que a origem da Congregação seja divina, portanto, sob a vontade de Deus, a sua existência e continuidade depende de nossa constante busca e união com Deus. É a nossa resposta de amor para um Deus redentor que nos amou por primeiro, que nos fez sem nós, mas que não pode nos salvar sem a nossa opção por Ele.     

domingo, 30 de julho de 2017

Aspectos gerais de uma Teologia Fundamental



Introdução
A expressão Teologia Fundamental tem sua origem conceitual disciplinar a partir do século XX, após o Concílio Vaticano II, quando as primeiras obras publicadas pelos teólogos J. N. Ehrlich, A. Knoll, I. L Guzmics, dentre outros, utilizaram a nova nomenclatura de Teologia Fundamental (KERN, 2004, p. 756) para se reportar aos conteúdos essenciais da fé, aos elementos fundamentais e fundantes da Teologia cristã. Porém, no seu aspecto conteudista a Teologia Fundamental “nasceu da apologética clássica e de uma reflexão, feita por esta, sobre a necessidade de reformar-se, sob pena de desaparecer” (FISICHELLA, 1994, p. 949) na história. Essa reforma se deu para que a Teologia, inspirada nas verdades essenciais da fé, continuasse respondendo de modo atualizado e contínuo aos questionamentos e problemas que a sociedade lhe apresentava. Tais questionamentos foram de grande contribuição tanto para a construção de uma Teologia Fundamental, sobre a fé e vida dos cristãos na Igreja, como para a civilidade ética e humanização processual da sociedade. Se por um lado a Teologia Fundamental nasce da apologética, por outro sua inspiração se assenta nas Sagradas Escrituras ou especificadamente na Primeira Epístola de Pedro (3,15), onde ele afirma: “santificai a Cristo, o Senhor, em vossos corações, estando sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pede”.  É partindo dessas considerações que tratamos aqui sobre o percurso da Teologia Fundamental na história da Igreja, nos seus diversos períodos de documentos conciliares, assim como na realidade da América Latina.
Categorias base da Teologia Fundamental
A Teologia Fundamental pode ser resumida categoricamente em três palavras que se inter-relacionam: Revelação, Fé e Credibilidade. A Revelação é a proposta de Deus uno e trino para o ser humano (LIBANIO, 2004, p. 13). Trata-se da verdades de Deus comunicada a nós e anunciada pelos profetas, plenamente realizada em Jesus Cristo, transmitida e continuada pela Igreja, enquanto esta é espaço que acolhe e conserva a boa nova de Deus. A Revelação se destina a salvação humana e nesse aspecto ela é uma resposta aos anseios da humanidade, às perguntas que esta tem (LIBANIO, 2004, p. 31). Sendo a Revelação essa proposta, a fé pode se defini em dois aspectos: primeiro como uma adesão à Revelação, uma acolhida do que nos é comunicado. E, por conseguinte, uma resposta de Fé (Creio) diante do revelado (LIBANIO, 2004, p. 14). Neste segundo aspecto a Fé se torna ativa, pois envolve a liberdade do ser humano para dizer “sim” com palavras e com ações ao projeto de Deus. Portanto, trata-se tanto de uma fé aberta, que contempla e acolhe a verdade de Deus (LIBANIO, 2004, p. 135), como uma fé prática, que atua no compromisso social como resposta da verdade que lhe foi revelada (LIBANIO, 2004, p. 165). A Credibilidade que a Revelação possui e que, por conseguinte, a fé confirma está em Deus mesmo. A Palavra de Deus merece fé porque é o próprio Deus que a comunica e tal verdade revelada não pode contradizer ou negar a quem nos fala: Deus. Dito de outro modo: a Revelação tem credibilidade em Deus mesmo que não pode se contradizer e nem nos enganar (DH 3017). Pelo aspecto da Credibilidade podemos perceber que a “Revelação e fé constituem uma unidade profunda” (LIBANIO, 2004, p. 14), pois tanto a Revelação como a fé são dons de Deus, assim como a Revelação implica a fé, enquanto esta se realiza mediante a Revelação divina.
Períodos históricos da Teologia Fundamental
Os conteúdos que qualificam e especificam a Teologia Fundamental foram construídos e definidos ao longo do percurso histórico da Igreja-comunidade-crente, na sua caminhada com a sociedade cívica e na sua relação com as diversas expressões religiosas e antirreligiosas que existiram em certos períodos históricos. No século I, período em que o cristianismo germina e acontece a cisão com o Judaísmo, os elementos essenciais de fé cristã se inserem com força na cultura greco-helenista. Tais elementos primários e originários da Teologia dos primeiros cristãos se apresentam nos escritos de caráter narrativo-catequético, como podemos ver nas cartas Paulinas e no livro dos Atos dos Apóstolos. Em Atos 8,26-35 podemos encontrar Felipe esclarecendo a fé cristã para o eunuco. Felipe ressalta o ponto central fé cristã como chave de leitura para explicar ao Eunico o trecho de Isaias 53,7-8: “Dirigindo-se Filipe, disse o eunuco: ‘Eu te pergunto, de quem diz isto o profeta? De si mesmo ou de outro? Abrindo então a boca, e partindo deste trecho da Escritura, Filipe anunciou-lhe a Boa Nova de Jesus”. É neste aspecto teológico-catequético que se dá o querigma fundamental da fé cristã nos seus primórdios.
No século II, a saber, da Teologia patrística, quando o cristianismo se expandia, ainda não como religião oficial do império romano, houve grandes perseguições aos primeiros cristãos. É desse contexto que a Teologia começa a se moldar com uma reflexão de fé e com o discurso intuitivo pastoral, na figura dos Padres apostólicos como Clemente, Inácio, Policarpo, e dos Padres Apologistas como Justino, Taciano e Teófilo, dentre outros. A Teologia cristã desse período ganha a base inicial com o dogma cristológico-trinitário e as práticas sacramentais (LIBANIO; MURAD, 2011, p. 110). Do século III ao VI nos situamos na fase esplendorosa da Patrística e no período de oficialização do cristianismo como religião obrigatória em Roma. É o período de heresias cristológicas e de mistura da Teologia cristã com o gnosticismo e outras correntes contrárias a doutrina cristã. A figura de Santo Agostinho, Santo Ambrósio, Leão Magno e São Jeronimo, dentre outros, marca o esforço teológico de se fazer inteligível, compreensível e racional a Teologia. Trata-se da Teologia Fundamental na sua forma apologética da fé e na sua refutação contra a heresias.
Na Idade Média que vai do século VIII ao XV a Teologia assume outras formas de organização e recursos argumentativos para uma melhor fundamentação da fé. Neste período os comentários das Escrituras se tornam um dos pontos fortes da Teologia. Os escritos aristotélicos influenciam a forma como a Teologia se fundamenta, isto é, pelo instrumental racional apologéticos. Neste sentido as verdades teologais são expostas em premissas e numa argumentação dedutiva lógica. Pelo viés da Disputatio a Teologia refuta os argumentos contrários a sua sacra doctrina e se auto afirma como Ciência. Vale ressaltar que só após esse período é que se utiliza conceitualmente o termo Teologia para os saberes referentes às coisas de Deus. A Suma Teológica de Santo Tomas é um exemplo de como a Teologia se estruturou mais categoricamente, discursivamente e metafisicamente (LIBANIO; MURAD, 2011, p. 111-116). Tais recursos facilitaram para que a Teologia possuísse uma estrutura sistemática mais elaborada acerca dos elementos importantes da fé cristã.
No período do Humanismo renascentista a Teologia retoma os escritos antigos e dá ênfase ao estudo da língua e traduções literárias. Os padres copistas da tradição medieval continuam no seu trabalho de tradução e interpretação dos escritos bíblicos. Porém, há uma preocupação maior com os saberes esquecidos pela tradição escolástica-aristotélica, como a poesia, a literatura, a prosa e a filologia, dentre outros. Há um valor relevante para com a cultura pré-cristã, um certo relativismo religioso e uma teologia voltada para o aspecto antropológico, com destaque nas experiências existenciais e culturais humanas. Nesse contexto os teólogos Erasmo de Roterdão e Pico Della Mirandola observam saberes de outras culturas e religiões em concórdia com o cristianismo. Mas uma figura emblemática na Teologia é Martinho Lutero que na viragem do humanismo renascentista retoma a Teologia, porém, fundamentada nos escritos bíblicos, na exclusividade de Jesus Cristo como autor único de Salvação e na predominância da Graça na vida do indivíduo. A postura luterana contribuirá para que na Modernidade e Pós-Modernidade se observe no campo fundamental e sistemático da teologia as Sagradas Escrituras e Jesus Cristo como a alma da Teologia.
No início da Modernidade, do século XVIII em diante, a Teologia é questionada pelos pensadores da dúvida. É o Iluminismo racionalista autônomo, as novas ciências humanas que surgem (sociologia e psicologia), as correntes teológicas protestante e reformistas, os diversos pensadores da dúvida, o secularismo e a cultura ateia que se manifesta no ethos social. Nesse contexto os elementos fundamentais e secundários da Teologia são colocados em questionamentos. E a postura apologética da Igreja persiste na explanação de suas verdade fundamentais e no decretar Anátema para os que discordavam de sua postura e doutrina de fundamento teológico.
A Teologia Fundamental no Concílio Vaticano II
Todavia, é no Concílio Ecumênico do Vaticano II que a teologia muda de uma postura defensiva e excludente do mundo e da sociedade moderna, para uma postura mais aberta, ecumênica e dialogal. É no florir do século XX para o XXI que a Teologia muda, não somente o seu discurso e postura, mas também a nomenclatura de uma Teologia apologética para uma Teologia Fundamental. Na modernidade e pós-modernidade conciliar a Teologia Fundamental assume o estatuto semântico, conceitual-conteudista e disciplinar.
Do Concílio Vaticano II à Contemporaneidade as questões referentes à Teologia Fundamental tiveram nova reflexão teológica e filosófica, assim como uma abertura dialogal às novas ciências que emergiram na sociedade e ao novo aparato tecnológico-instrumental-científico moderno e pós-moderno. Porém, duas tendências marcam a orientação da Teologia Fundamental: a primeira é a relação da Teologia com a Antropologia, em que o sujeito da experiência se torna o destinatário moderno e pós-moderno das verdades fundamentais da fé cristã. Essa abordagem antropológica tem como expoente teológico o jesuíta Karl Rahner (1904-1984). Para ele a Teologia se caracteriza como uma antropologia (LIBANIO, 2004, p. 32), pois a comunicação de Deus e a experiência humana possuem uma correspondência.
A segunda tendência se reporta à história. O mundo não se torna o lugar estranho ou de negação humana, mas realidade histórica, o lugar onde o ser humano se salva e onde a humanização acontece. Nesse sentido Rahner contribui na construção de uma Teologia que sustenta que a história da salvação realizada por Deus na história não é contraria à história da humanidade, mas se identifica com esta. Isto é, que a história da salvação é a história da humanidade. E que “é necessário dizer antes de tudo que a história do homem, verdadeiramente entendida, [...] é precisamente a história dum ser transcendental enquanto tal” (RANHER, 1965, p. 40). Tal história se relaciona diretamente com a nossa fé e com o modo de ser humano na história. Por isso que tal história faz parte dos elementos abordados na Teologia Fundamental.  
A Teologia Fundamental, na Modernidade do final do século XX para o século XXI, assumiu na América Latina o seu aspecto histórico, cultural, social e prático, como espaço importante de teologização. Deste modo a Teologia assumiu o adjetivo de Libertação, a partir de uma inspiração bíblico teológica, na leitura da realidade injusta, desigual e opressiva que se passou com a maioria do povo do continente latino-americano: os pobres (LIBANIO, 2004, p.  50). A Teologia Fundamental tratou de seus elementos categóricos- Revelação, Fé e Credibilidade- em relação com outros elementos teológicos como o Reino, Mundo e a Libertação. Nesse período a reflexão da teologia não se reporta predominantemente pela inter-relação fé/razão, sustentada na Idade Média e até por Bento XVI, mas pela inter-relação teoria/práxis. Esta inter-relação reflete: se realmente aquilo que se acredita tem efeito e concordância com a pratica do cristão ou se é pura ideologia. É nessa dialética que a Teologia tenta fazer um caminho coerente com suas verdades fundamentais em sintonia com a realidade da América Latina.
A Teologia Fundamental a partir dos documentos da Igreja das Conferências da América Latina
Após essa necessária exposição do percurso da Teologia Fundamental desde sua inspiração bíblica e histórica com a trajetória dos primeiros cristão até a contemporaneidade, se faz necessário observar os conteúdos dessa Teologia presentes em alguns documentos conciliares e nas duas conferencias da América Latina (Medellín e Puebla) para percebermos como o aspecto tri-categorial (Revelação-Fé-Credibilidade) da experiência teológica cristã marcou e delineou a Teologia Fundamental nos seus conteúdos e no ato do crer cristão até hoje. O aspecto tri-categorial se concretiza e se desenvolve em diversos períodos da história da Igreja. Eles se expressam nos diversos documentos da Igreja.
Na primeira parte do Concílio de Trento (1545-1563) encontramos nos documentos conciliares duas bases de fundamentação da Teologia, a saber, nas sagradas Escrituras e na Tradição (LIBANIO, 2004, p. 29). O Decreto sobre os livros sagrados e as tradições a serem acolhidas (1546) vai se ocupar de falar da natureza da Fé e relacionar a Revelação com o “Evangelho”, que deve ser pregado “‘a toda criatura’ [Mc 16,15] como fonte de toda a verdade salutar” (DH 1501), que conduz à nossa salvação e também é uma regra de costumes. Ora, a verdade de tal Fé está contida nos “livros escritos e nas tradições não escritas” (DH 1501). O Decreto trata dos elementos fundamentais transmitidos pela Igreja como “a verdadeira e são doutrina” (DH 1520). O aspecto da Credibilidade se situa no próprio Deus que é autor do Antigo e do Novo testamento (DH 1501). A Revelação também se relaciona com a Graça para a justificação do homem no Decreto sobre a justificação (1547). Porém, tal Graça não anula o arbítrio humano na sua adesão e resposta de Fé para a salvação humana. O significativo desse Decreto está na tensão entre a graça, a predestinação e a ação humana diante das posições errôneas e contrárias da reforma protestante. Tais ensinamentos se demonstram contrários à Teologia Fundamental da Igreja.
No Concílio Vaticano I (1869-1870) o aspecto tri-categorial da Teologia segue o recurso linguístico e argumentativo escolástico-tomista. A tensão contextual está na legitimidade da autoridade da Igreja, da infalibilidade papal, da explicação da fé católica e a doutrina a respeito da Igreja de Cristo.  Na Constituição Dogmática “Dei Filius” sobre a fé católica (1870) a perspectiva da Fé se situa no crê e confessar que “há um [só] Deus verdadeiro e vivo, Criador e Senhor do céu e da terra, onipotente, eterno, imenso, compreensível, infinito em intelecto. Vontade e toda a perfeição” (DH 3001). A Revelação perpassou o segundo capítulo, onde Deus se deu a conhecer pela via da razão humana, das coisas criadas, pelo conhecimento das suas obras, “mas que aprouve à sua misericórdia e bondade revelar-se à humanidade a si mesmo e os eternos decretos da sua vontade, por outra via, e esta sobrenatural, conforme diz o Apostolo” (DH 3004). A Credibilidade não se situa somente na ação divina de Deus, mas na própria condição humana que tem a possibilidade de encontrar-se com a verdade revelada, pois a Revelação divina pode ser conhecida por todos, “com firme certeza e sem mistura de erro, aquilo que nas coisas divinas não é por si inacessível à razão humana” (DH 3005). Nessa dinâmica o documento expressa a relação entre fé e razão: “Mas, ainda que a fé esteja acima da razão, jamais pode haver verdadeira desarmonia entre uma e outra [*2776; 2811], porquanto o mesmo Deus que revela os mistérios e infunde a fé, dotou os espírito humano da razão” (DH 3017). A credibilidade também se situa em “crer ‘ser verdadeiro o que Deus revelou’” (LIBANIO, 2004, p. 68)
Ainda no segundo capítulo, a Revelação de Deus é intermediada pelos “profetas” e expressa pelo “Filho” de Deus. A Revelação se situa 1) na relação com no conhecimento natural de Deus, 2) no aspecto sobrenatural, 3) na dupla necessidade da revelação sobrenatural, 4) nas escrituras e tradição e numa trajetória histórica e cultural 5) da tradição para o magistério eclesial (THEOBALD, 2006, p. 228-238).  O capítulo 3 trata especificadamente da Fé. Nesta somos obrigados a prestar “plena adesão do intelecto e da vontade” (DH 3008) a Deus que se revela.  A Fé e razão estão em sintonia. A autoridade e credibilidade de Deus que não pode se enganar e nem nos enganar é ressaltada. Porém a postura de Fé não pode ser “um movimento cego da alma” (DH 3010), mas sob a iluminação e a inspiração do Espírito Santo. O aspecto tri-conceitual da Teologia demarcou a resposta da Igreja para os erros das três correntes da Modernidade: o racionalismo, o materialismo e o ateísmo.
No Concílio Vaticano II (1962-1965) estamos diante de outra realidade que exige da Igreja uma reformulação teológica. A Teologia se situa numa necessidade de abertura para com o mundo, com um aprofundamento da vida cristã, uma adaptação à nova realidade “moderna”, para a promoção da unidade dos cristãos e o ardor missionário da Igreja. A Teologia esboça seu aspecto pastoral, com uma linguagem mais moderada e dialogal, porém sem desprezar os pontos essenciais do crer cristão. A Constituição dogmática sobre a Revelação divina “Dei verbum” (1965) foi a que mais tratou e desenvolveu o tema da Revelação. A Dei verbum subdivide-se em 7 capítulos, situando a Revelação nos seus princípios fundamentais (LIBANIO, 2004, p. 31) até seu modo de atuação e relação na vida da Igreja e do povo de Deus. De modo prevalente a Dei Verbum tratou da Revelação com a “sua plenitude e sua mediação absoluta na Palavra feita carne, Jesus Cristo” (RIVAS, 2015, p. 323). Tal constituição expressava uma abertura, diálogo e interação do Concílio com a Modernidade.
A Revelação é concebida como uma autocomunicação de Deus (RAHNER, 1989, p. 180 Rahner), de um Deus que se doa como Dom e Graça. Dessa relação comunicativa se desencadeia uma história de salvação pessoal e da humanidade. Há um modo de pensar a Revelação como um vínculo estreito de amizade com a criatura. “Mediante esta revelação, portanto, Deus invisível [cf. Cl 1,15; 1Tm 1,17], levado por seu grande amor, fala aos homens como a amigos” (DH 4203).  O aspecto da Fé está ligado à obediência “pela qual o homem livremente se entrega todo a Deus, prestando ‘ao Deus revelante plena adesão do intelecto e da vontade’ e dando voluntariamente assentimento à verdade por ele revelada” (DH 4205).   A Credibilidade se situa na própria Palavra de Deus que se fez carne, o Verbo divino que comunica “e consuma a obra salvífica que o Pai lhe confiou” (DH 4204). Por isso, “, ao qual quem vê o Pai [cf. Jo 14,9]. Por toda a sua presença e manifestação por palavras e obras, sinais e milagres, e especialmente por sua morte e gloriosa ressurreição dentre os mortos e, enfim, pelo envio do Espírito de verdade, realiza e completa a revelação, e confirma com testemunho divino de que Deus está conosco” (DH 4204). A Teologia desse Concílio está objetivada no aggiornamento da mensagem cristã para com as novas realidades modernas e pós modernas que surgem. A abertura da Teologia, numa perspectiva ecumênica e dialogal, não deixa perder de vista a essência e os fundamentos da crença e vida cristã.
Na América Latina pós conciliar é possível considerar como relevante à Teologia Fundamental as duas Conferências que marcaram significativamente a Teologia da América Latina, a saber, de Medellín e Puebla. As Conclusões da Conferência de Medellín (1968) tiveram a finalidade clara de renovar e aproximar do homem da América Latina o dom da Fé. A teologia de então acentuava a tomada de consciência das condições de exploração, escravidão, pobreza e miséria. “Essa miséria, como fato coletivo, é qualificada de injustiça que clama aos céus” (CCM, 2010, n. 1, p. 45).
A Teologia se fundamenta, então, a partir da ação de Deus que “envia seu Filho para que feito carne, venha libertar todos os homens, de toda as escravidões a que o pecado os sujeita: a fome, a miséria, a opressão e a ignorância, numa palavra, a injustiça e o ódio que têm sua origem no egoísmo humano” (CCM, 2010, n. 3, p. 46). O aspecto da Fé se situa nos princípios teológicos para uma pastoral e religiosidade popular. A Fé e a Igreja “semeiam-se e crescem na religiosidade culturalmente diversificada dos distintos povos. Fé, que embora imperfeita, pode encontrar-se ainda nos níveis culturais mais inferiores” (CCM, 2010, n. 5, p. 112). Na relação intrínseca da Fé com o Verbo, “a Igreja aceita com alegria e respeito, purifica e incorpora à fé os diversos ‘elementos religiosos e humanos’ que estão presentes nesse religiosidade como ‘semente oculta do Verbo’ e que constituem ou podem constituir uma ‘preparação evangélica’” (CCM, 2010, n. 5, p. 112). Na perspectiva da Conferência a “evangelização deve orientar-se para a formação de uma fé pessoal, adulta, interiormente formada, operante e constantemente em confronto com os desafios da vida atual” (CCM, 2010, n. 13, p. 120).
É no âmbito da catequese renovada que o documento expressa mais claramente a conexão da Revelação com a vida humana, numa unidade integradora entre a salvação humana e a história da mesma. Daí “deve-se expressar sempre a unidade profunda que existe entre o plano divino de salvação, realizado em Cristo, e as aspirações do homem [...]; entre a Igreja, Povo de Deus, e as comunidades temporais; entre a ação reveladora do Deus e a experiência do homem” (CCM, 2010, n. 4, p. 126). “De acordo com esta teologia da revelação, a catequese atual deve assumir totalmente as angústias e esperanças do homem do homem de hoje, para oferecer-lhe as possibilidades de uma libertação plena, as riquezas de uma salvação integral em Cristo, o Senhor” (CCM, 2010, n. 6, p. 127). Tal afirmação sobre a Revelação de Deus que se faz patente em Jesus Cristo, não somente é válida para a catequese formativa da evangelização, mas para todo o povo de Deus. Dai é possível perceber alguns princípios fundamentais da teologia que impulsionam o compromisso com a realidade social da América Latina.
As Conclusões da Conferência de Puebla (1979) se situam numa compreensão histórico-concreta da América Latina e da atuação da Igreja na mesma. O aspecto da Teologia latino-americana trata “da comunicação da Palavra e da Vida de Deus, que deve[...] ser luz e fermento de toda a vida humana” (CCP, 1987, n. 2, p. 51). A Teologia não está embasada no aspecto dogmático e nem pastoral, mas na incidência da evangelização no nosso continente. O crer cristão se relaciona com a comunhão e participação do povo na evangelização. É nesse percurso que podemos encontrar os elementos fundamentais da Teologia Latino-Americana. Tal Teologia tem como base o Evangelho. É a partir dele que podemos refletir para uma práxis transformadora da realidade de injustiça e miséria da América Latina. Assim a Teologia atua “num PROCESSO DINÂMICO E PERMANENTE de evangelização, de tal forma que todo o cultural, o político, o econômico, o social, seja lido e discernido a partir do Evangelho” (CCP, 1987, n. 5, p. 54).
A dimensão da Fé passa pelo prisma da Política no sentido aristotélico de direito natural e compromisso com a realidade social. A Fé insere o cristão “na realidade do homem latino-americano, realidade essa que é expressa em suas esperanças, em seus triunfos e suas frustrações. Impele-nos esta fé a discernir as interpelações de Deus nos sinais dos tempos” (CCP, 1987, n. 15, p. 91). O aspecto da Revelação de Deus, do livro do Êxodo e da Encarnação de Deus, em Jesus, está de modo atualizado em vista da realidade do “coração dos vários países que formam a AL” (CCP, 1987, n. 87, p. 105). Trata-se de “um clamor cada vez mais impressionante. É o grito de um povo que sofre e que reclama justiça, liberdade e respeito aos direitos fundamentais dos homens e dos povos” (CCP, 1987, n. 87, p. 105).
A Revelação em Cristo é “a verdadeira grandeza e só nele é que se conhece, em plenitude, a realidade mais profunda do homem” (CCP, 1987, n. 169, p. 121). “Revela-nos Cristo que a vida divina é comunhão trinitária. Pai, Filho e Espírito vivem, em perfeita intercomunhão de amor, o mistério supremo da unidade. Daqui procede toda comunhão, para grandeza e dignidade da existência humana” (CCP, 1987, n. 212, p. 131). Em Cristo somos “iluminados pela fé, situamo-nos na realidade do homem latino-americano. No aspecto da Credibilidade, é o Espírito de Cristo que impele cada um a anunciar o Evangelho e que, no fundo da consciência, faz aceitar e compreender a Palavra de salvação (CCP, 1987, n. 220, p. 133). A Fé se encarna, assume as culturas e busca o Reino de Deus que se faz na luta por justiça estrutural, social e pelo direito e dignidade humana.   

BOFF, Leonardo. Da libertação e ecologia: desdobramento de uma mesmo paradigma. In ANJOS, Márcio Fabri dos (org.). Teologia e novos paradigmas. São Paulo: SOTER/Loyola, 1996, p.75-88.
BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
CARTA APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO. Às pessoas Consagradas: em ocasião do ano da vida consagrada. São Paulo: Paulinas, 2014.
CARTA ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
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CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Alegrai-vos: carta circular aos consagrados e às consagradas do magistério do papa Francisco. São Paulo: Paulinas, 2014.
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quinta-feira, 29 de junho de 2017

O Crer em América Latina


Introdução
            O aspecto do Crer em América Latina (AL) tem uma marca no Espírito do Concílio Vaticano II que contribuiu para a articulação da fé no nosso continente. Os pressupostos inter-relacionais e fundamentais do “Crer” – Revelação, Fé e Credibilidade – dinamizam-se para uma experiência vivencial cristã latino-americana. Tal experiência possui um modo particular e diferenciado de expressão que é distinto da experiência dor Crer cristão na Europa e nos diversos períodos da história do ocidente. A realidade do continente latino-americano de pobreza, injustiça, desigualdade e degradação ambiental é o espaço que se configura e se define o Crer cristão numa acolhida da Boa-Nova de Deus e com uma práxis evangelizadora e libertadora da pessoa humana. O Papa Francisco é esse referencial de continuidade e revitalização para o crer-revolucionário em tal continente. 
1 Revelação, Fé e Credibilidade: uma exigência do Crer em América Latina
            A experiência cristã na AL pressupõe teoricamente os três termos básicos presentes na Teologia Fundamental, a saber, a Revelação, a Fé e a Credibilidade. É no vínculo entre essas temáticas que podemos nos orientar para compreender o que significa e como se caracteriza o Crer em América Latina. A Revelação é a proposta de Deus para o ser humano, ela não provem do homem, mas faz parte da “autocomunicação de Deus” que se manifesta ao ser humano e exige dele uma resposta de fé. Neste sentido a Fé se classifica como um ato livre de acolhida de Deus e de sua Revelação. O ato de fé presente na AL só é possível pela Credibilidade que a Revelação possui. Assim só se acolhe a Revelação porque ela é possível e porque tem credibilidade em Deus mesmo que não pode se contradizer e nem nos enganar (DH 3017). Todavia, em vez de falarmos do conceito de “fé” na AL, como expressão relevante da experiência cristã nesse continente, seguimos a linha do Teólogo Jesuíta Eugenio Rivas, no artigo Creer en América Latina, acerca do conceito que seria mais apropriado para falar da experiência cristã: o “crer”.
A rigor, crer em AL ou a fé em AL são equivalentes. Porém preferimos o verbo crer, precisamente, porque queremos sublinhar o dinamismo prospectivo e ascendente da proposta que se nos oferece como caminho, verdade e vida (Cfr. Jn 14,6) e que o substantivo fé poderia obscurecer, pela mesma função do substantivo no artifício de linguagem, ao sugerirmos a imagem ou a ideia de uma substância estável, de um fato adquirido, de um absoluto. O verbo nos dá a imagem viva deste ato singuar e único (ato de fé), mantem seu caráter itinerante e provisório, nos trasmite o sentimento de que na respota fica sempre algo que necessita ser restabelecido e completado, nos abre à invenção.[1]
            O Crer em AL dá continuidade ao que foi tratado no Concílio Vaticano II, na Dei Vebum: “a obediência da fé” (DV, n. 5). Ele se classifica como uma adesão há aquilo que Deus nos revelou por meio dos “nossos primeiros pais” (DV, n. 3), por meio dos profetas e “pelo Filho” (DV, n. 4) Jesus, a Palavra de Deus encarnada.  O Crer também é uma resposta para Deus em um diálogo de salvação. Para além de um reducionismo conceitual, o Crer se refere àquilo que nos foi Revelado e o que nos é transmitido pela Igreja (LIBANIO, 2004, p. 25). Na AL os parâmetros do Crer se situam em novos e particulares espaços contextuais distintos dos espaços e contextos da Europa.
2 Espaços históricos e referenciais do Crer em América Latina
Na AL o Crer cristão estar em espaços geográficos e históricos distintos dos espaços da cristandade medieval. Esta vivenciou a experiência do Crer numa identificação entre o ser cristão e o ser cidadão (PALÁCIO, 2004, p.181) a partir dos centros hegemônicos das cidades e na união entre a Igreja e o Estado. Porém, na AL isso não se patenteou. A especificidade do Crer latino-americano se realiza “na periferia do mundo, num continente que vive terrível situação de injustiça [...]” (LIBÁNIO, 2004, p. 50). Trata-se de uma mudança de paradigma, na experiência de fé a partir de uma realidade e de uma posição esquecida na história: a dos vencidos, dos explorados, dos excluídos. Tais vencidos possuem rostos específicos: os índios, os negros, as mulheres (RICHARD, 1987, p. 6). É nesse sentido que o Crer em AL se redireciona a partir das periferias. Tal espaço deslocou o polo dinamizador da fé cristã tradicional para a experiência humana do oprimido. Trata-se de uma virada antropológica sob o clímax da importância pessoal dos espoliados e o esquecimento de um tipo de doutrina ou tradição não compatível com essa nova realidade. Isso “provocou, num primeiro momento, uma concentração no sujeito que crer” (LIBANIO, 2004, p. 64-65) sob uma experiência de fé particular, nunca tanto explicitada na história: a experiência do Crer a partir de um contexto e sob a condição de vida dos fracos e oprimidos. O sujeito crente latino-americano se classifica categoricamente como “o Pobre”:
Nunca na história das teologia cristãs, o pobre ganhou tanta centralidade. Procurar construir toda teologia a partir da perspectiva das vítimas para denunciar os mecanismos que as fizeram vítimas e ajudar, com a bagagem espiritual do cristianismo, na sua superação mediante a gestação coletiva de uma sociedade com mais chances de vida, de justiça e de participação[...]. (BOFF, 1996, p.81)
A opção preferencial pelos pobres, além de ter o seu caráter espiritual, se fundamentou em uma concretude histórica, com uma preocupação e prática social.  A AL “deu uma guinada em direção ao social, repensando a fé nesse horizonte. Neste momento, a opção pelo pobre, [...], assumiu relevância especial questionando todo o pensar teológico, cristão e simplesmente humano” (LIBANIO, 2004, p. 22).  Adjunto a opção preferencial pelos pobres também está a realidade ecológica que interpela o olhar do crente para a natureza. Esta se relaciona diretamente com a causa dos pobres, pois assim como há um grito pela justiça para com os pobres, a terra também clamar por justiça: “Há um grito absolutamente iniludível: o da terra. Esta morrendo, todos morremos juntos” (Ibid., p.137). É nesse aspecto que o Crer cristão assume os espaços de atuação e atualiza como resposta para os novos tempos. Todavia, uma nova categoria faz parte da experiência do Crer latino-americano: a práxis. É em vista desta que o Crer em AL se define como uma experiência antropológica e transcendental, que tanto compromete o sujeito com a realidade como o impulsiona a transformá-la. Assim o Crer latino-americano é tanto comprometido como transformador da realidade que o cerca, para que nesta mesma realidade se patenteie as sementes do Reino. A Teologia da Libertação se fez como uma referência significativa para a vivencia da fé na AL:
A teologia da libertação sobressai na compreensão operativa da fé. Já desde suas primórdios, ela insiste nesse aspecto. Sua pretensão é ser uma teologia da prática do cristão. Isso significa que a fé leva o cristão a uma ação transformadora. [...] A fé participou dessa atitude prometeica da modernidade com toda a sua ambiguidade. Deixou de ser fonte alienadora de pura contemplação enquanto as forças conservadoras dominavam e dirigiam a sociedade. Nisso deu passo gigantesco. (LIBANIO, 2004, p. 137-138).
A experiência cristã na AL é marcada por momentos históricos contextuais particulares que influenciaram e contribuíram para atualização da mensagem salvífica divina encarnada. É nesse espaço de injustiça, exploração e desigualdade social que o sujeito que Crer é chamado para responder com maior disponibilidade aos apelos do Evangelho, nessa nova realidade que o interpela, na fé e na vida, para ser um sinal de Cristo que liberta seu povo na história e leva o ser humano para a sua plenificação escatológica. Atualmente está emergindo novas tendências de vivencia do Crer cristão em AL. “Acentuam-se a decisão, a ecumenicidade, a vivência do cotidiano, a dimensão simbólica, estética e comunicativa, o lado emocional-carismático” (Ibid., p.22). Se o concílio Vaticano II foi o impulsionador de um aggiornamento do Crer da Igreja e para a AL, no Papa Francisco encontramos o sinal referencial dessa atualização que continua.
3 Papa Francisco: referência contemporânea para o Crer em América Latina
            Desde o início do pontifício do Papa Francisco que a Igreja em vários continentes do mundo vem renovando o Crer cristão e sua experiência prática teológica. Esse fato tem grande significado para os cristãos da AL porque tal Papa possui um espírito continuador do Concílio Vaticano II assim como da experiência do Crer no nosso continente. Tal vitalidade espiritual pode ser observada nos seus diversos escritos. Na Carta Circular aos Consagrados e às Consagradas do Magistério do Papa Francisco (:Alegrai-vos, 2014) alguns elementos da mensagem de Francisco têm relevância fundamental para a experiência cristã latino-americana. Nela o Crer se situa no mistério da “Boa-Nova que, acolhida no coração da pessoa, transforma” (ALE, n. 1) a vida humana. Essa experiência possui uma novidade revolucionária: “Uma alegria do coração (cf. Is 66,14) que passa por Deus [...] e se difunde em meio a um povo mutilado por mil humilhações” (ALE, n. 13). É a experiência da Revelação da Palavra de Deus encarnada que produz a verdadeira alegria em um mundo marcado por injustiça, desigualdades, humilhações e exclusão. É nesse sentido que o Crer cristão traz em Deus a resposta gratuita e generosa para os anseios humanos. O Crer cristão não se fundamenta no homem em si, mas em Deus que toma a iniciativa de salvar e redimir a humanidade desde a sua vocação primeira vital: “não fostes vós que me escolhestes, fui Eu que vos escolhi” (Jo 15,16).
            A relevância do primado divino na fé cristã situa o ser humano numa abertura e relação para com o outro. É uma resposta de fé que está em comunhão, solidariedade e diálogo com Deus e com o próximo de modo dinâmico. A dinâmica com a Palavra de Deus “suscita a fé, a alimenta, a regenera. É a Palavra de Deus que toca os corações, converte-os a Deus e à sua lógica que é tão diferente da nossa” (ALE, n. 6). Na Misericordiae Vutus encontramos dois conceitos que Francisco desenvolve na proposta do Ano Santo da Misericórdia. Tais conceitos chegam a ter uma ressonância na experiência do Crer no nosso continente. Trata-se da dinâmica entre Misericórdia e Justiça na fé: “Não é a observância da lei que salva, mas a fé em Jesus Cristo, que, pela sua morte e ressurreição, traz a salvação com a misericórdia que justifica. A justiça de Deus torna-se agora a libertação para quantos estão oprimidos [...]” (MV, p. 24).  
Na Evangelii Gaudium encontramos elementos que expressam essa continuidade revolucionária do Crer, como: a nova evangelização para a transmissão da fé, pela pastoral ordinária, pelas pessoas que não vivência uma pertença à Igreja e não experimentam uma consolação da fé, e a necessidade da proclamação da palavra de Deus como missão primeira de evangelização (EG, n. 14). O aspecto dialogal teológico da AL é motivado para uma Igreja “em saída”: “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG, n. 20). A proposta renovada de fé se relaciona com o amor: “Aqui o que conta é, antes de mais nada, ‘a fé que atua pelo amor’” (EG, n. 37).
A postura cristã na AL é motivada para uma continuidade profética do “não” à economia da exclusão, à idolatria do dinheiro e à desigualdade social que gera violência (EG, n. 53-60). A dinâmica da fé proposta pelo Papa tem um respaldo renovado na AL sob o signo da justiça e misericórdia de Deus, da Boa-Nova da fé e da praticidade profético-libertadora e dignificadora da humanidade. Na Laudato Si’ é possível encontrar no âmbito da experiência cristã a intrínseca relação entre a experiência humana com Deus e as relações sociais com o outro e com a natureza. Assim o âmbito do Crer em AL se amplia e se relaciona na busca do bem comum como práxis do Crer:
O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral. Exige também os dispositivos de bem-estar e segurança social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios, aplicando o princípio da subsidiariedade. Entre tais grupos, destaca-se de forma especial a família, enquanto célula basilar da sociedade. Por fim, o bem comum requer a paz social, isto é, a estabilidade e a segurança de certa ordem, que não se realiza sem uma atenção particular à justiça distribuitiva, cuja violação gera sempre violência. (LS, n. 157)
Conclusão
            A partir de tais colocações sobre a experiência fundamental do Crer no continente latino-americano e as inspirações pós-conciliares do Papa Francisco, podemos concluir que estamos diante de novos caminhos e desafios em tal continente. Trata-se da necessidade de uma articulação maior entre as raízes culturais múltiplas da América Latina, a saber, a raiz africana, indígena e europeia que perpassou o ethos latino-americano. É nesse entrelaçamento cultural que a Teologia e a Igreja, enquanto povo de Deus, corpo do Espírito Santo, deve reafirmar o seu Crer. Tentar separar uma das partes é desprezar a história pela qual nosso continente assumiu a sua identidade singular e criativa.
De modo mais amplo o Crer na América Latina precisa se relacionar, se ampliar e dialogar com um mundo global e integrado, pois as relações na pós-modernidade saíram do nível regional e nacional para um nível internacional. Neste sentido o Crer latino-americano precisa estar ligado e se relacionar com os outros países e suas expressões culturais e religiosas. A Contemporaneidade exige isso. Por outro lado, tal vivência de fé cristã latino-americana precisa continuar e amadurecer o seu espaço de reflexão teológica (as periferias espaciais e existenciais) e o ponto de partida da fé crista, no nosso continente, que se tornou o referencial predileto da razão teológica e ética cristã: o pobre.
Tal sujeito teológico não pode ser concebido reduzidamente como o ser humano carente no seu aspecto econômico e político, mas assume apropriada e plena compreensão teológica como a pessoa que tem a necessidade e dependência de salvação em Deus. Também neste aspecto- espiritual- podemos encontrar sinais na América Latina de pessoas que não conhecem à Jesus Cristo e não possuem uma experiência profunda e comprometida com Ele, mesmo que diga ser cristã. Não se está afirmando que o pobre não é aquele que está em condição social, cultural e existencial inferior à determinados grupos de boa condição de vida, mas que além destes, que são muito importantes e urgente suas causas, também há outros pobres que precisam de vida digna em outros âmbitos da vida humana e espiritual. Por outro lado, na América Latina ainda há espaços geográficos onde Jesus ainda não foi anunciado por nós. Por isso é urgente a continuação do projeto de Deus e da comunicação dessa Boa-Nova pela experiência do Crer atualizado em América Latina.   
Bibliografia
BOFF, Leonardo. Da libertação e ecologia: desdobramento de uma mesmo paradigma. In ANJOS, Márcio Fabri dos (org.). Teologia e novos paradigmas. São Paulo: SOTER/Loyola, 1996.
BULA DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
CARTA APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO. Às pessoas Consagradas: em ocasião do ano da vida consagrada. São Paulo: Paulinas, 2014.
CARTA ENCÍCLICA. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Alegrai-vos: carta circular aos consagrados e às consagradas do magistério do papa Francisco. São Paulo: Paulinas, 2014.
CONSTITUIÇÃO Dogmática “Dei Verbum” sobre a Revelação divina. In CONCÍLIO VATICANO (2.: 1962-1965).Vaticano II: mensagem, discursos e documentos. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2007. (p. 345-358)
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA. Evangelii Gaudium: do Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.
LIBANIO, João Batista. B. Eu creio, nós cremos: tratado da fé. 2ed. São Paulo: Loyola, 2004.
RICHARD, Pablo (Org.). Raízes da teologia latino-americana. São Paulo: Paulinas, 1987.
RIVAS, Eugenio. Creer en América Latina. Texto disponível em http://theologicalatinoamericana.com/?p=457. Acesso em: 02 Jun. 2017.




[1] RIVAS, Eugenio. Creer en América Latina. Texto disponível em http://theologicalatinoamericana.com/?p=457. Acesso em: 02 Jun. 2017. (tradução nossa)

sábado, 13 de maio de 2017

Confissão sobre um inesquecível amor: Mãe!

Uma das coisas que ainda hoje me arrebata o coração e me deixa fora de orbita, como que afetado no profundo da minha alma, é o mistério que experimentei na minha mãe. Sou muito grato a Deus pelo que Ele fez por mim, de tal modo como ninguém nunca o fez. Digo do mistério de Deus que envolveu a minha vida e de minha mãe numa comunhão profunda. Algo que brotou desde o começo de minha existência e aos poucos foi modelando e influenciando a minha forma de ser e experimentar o mundo.
Justamente pensando nisso é que gostaria de realizar o que poucas vezes tive coragem de fazer para com as pessoas que muito amo: deixar brotar uma mensagem de amor no mais íntimo de minha alma. Lá onde está o nécta mais doce de uma flor, o brilho mais puro de um diamante reluzente. Lá onde Deus habita e faz a vida se tornar o bem mais precioso que qualquer pessoa pode ter. O que pretendo fazer é meio que uma confissão, diante de momentos da vida em que nem sempre temos tempo, coragem, ou disposição, para expressar aquilo que envolve o nosso mais íntimo, o mais profundo de nossa vida, o mais frágil e inseguro de nossa pessoa, o mais simples, livre e verdadeiro de nosso ser.
Nessa confissão você pode caminhar comigo, mas o que realmente acredito que importa para você é se no seu coração é possível despertar uma experiência apaixonante e fascinante para as coisas que são tão simples e bobas, porém, que são as mais importantes na vida. Importante de serem experimentadas, ditas e comungadas, porque delas depende o nosso caminho de felicidade. Assim começo, tentando criar coragem para confessar à minha mãe:
Mãe! Não sei tanto o que dizer, o que sinto por você. Você é um mistério que nunca cansei de querer conhecer e amar. Quando era bem pequeno recordo-me dos teus braços, sentia-me tão seguro, tão em paz, tão confortado. Se de dia você me acordava, mandava-me tomar banho. Mandava-me sentar à mesa, e me dava o café pronto. Se acaso eu me apressasse em comer, outro pão ia me dar. Mas então se eu demorasse, não deixava de me falar: “come logo, está na hora e não deixe sobrar nada!”. Logo logo eu ia brincar. E muito me divertia. Mas se estava cansado ou com fome, era você que me acolhia. Trazia-me coisas gostosas, com carinho e alegria. Muitas vezes se preocupava tanto comigo que até se esquecia de si. Normalmente você era a última a comer.  Mas quando ti via comendo, não hesitava em comer contigo. Não era só o gosto da comida que era boa, mas o estar comendo com você que me fazia bem.  De repente aparecia algum problema, comíamos rápido para você ir correndo resolvê-lo.  Como me amavas e eu também a ti.
            Roupas limpas, casa limpa, comida pronta e eu em paz, eram coisas que fazia todo o dia, incansavelmente. Como esquecer que sua vida era uma doação pela minha vida. Como não perceber que de ti recebia tanto amor que não se comparava ao que eu podia dar. Se temia alguma coisa, eu queria minha mãe. E quando me machucava, era você que eu, chorando, procurava. Quando a noite chegava, era aos seus braços que eu corria para poder descansar, ou perder o medo do escuro. Muitas vezes você me enganava. Deixava-me junto contigo até eu dormir e quando eu percebia, já estava na rede, ou na cama, ou em outro local que eu não queria estar, fora de teus braços.
Quando ia para escola, você sempre me avisava o horário. Mandava-me ir tomar banho e ir correndo comer. Enquanto eu não saia, você não sossegava: “Vamos! Está ficando tarde! Está na hora! Peste você está atrasado! Acorda pra vida!”. Eu não gostava de ir para a escola, mas você sempre dava um jeito de me levar ou mandava alguém me levar. A dor que muitas vezes sentia, acontecia quando o portão da escola se fechava e eu não te via mais. Era como se tivessem te roubado de mim! Mas a grande alegria era quando você aparecia no final da aula para me pegar. E levar em paz para casa.
Você sempre estava atenta às minhas palavras. Muitas vezes perguntava o que tinha aprendido na escola. Entre uma conversa e outra ganhava um presente, um bombom, um pirulito, um pedaço de bolo: coisas que me diziam que você pensou em mim. E com alegria eu dizia sobre o que aprendia na escola. Era muito bom ouvir de ti: “muito bem”. “Você é inteligente”. Eu sempre escutava quando você falava de mim (coisas boas e ruins, srsrsr). O que mais me envergonhava era quando você falava dos meus defeitos, ou dos meus sentimentos para meus amigos ou pessoas estranhas. Você me deixava sem graça. Em outros momentos não conseguia entender quando me mandava ficar calado. Que não dissesse o que pensava ou o que percebia, pois não convinha. Mas em todas essas situações era você mãe querida que estava comigo. Era engraçado, perceber-te falando. Eu te conhecia tão bem que sabia quando você não queria desagradar alguém, ou quando você não gostava de alguém.
Conhecia teu jeito de sorrir, teu modo de falar, tuas palavras desacertadas, teu jeito as vezes ingênuo e simples de ser, teu modo de andar, teu jeito de se vestir. Eu ti conhecia, não tudo, mas o suficiente para continuar te amando.
Muitas vezes estávamos a só e você falava de si: era um privilégio conhecer-te por dentro. Seus medos, suas esperanças, suas alegrias e felicidades, suas preocupações e desafios.  Quanto mais te conhecia, mais podia te amar, e quanto mais eu te amava, mais podia te ajudar.  Era esse o caminho. Todas essas coisas eram sinais da tua pessoa, o teu ser que atuava em mim. Mas isso foi o suficiente para perceber que teu amor por mim é mais do que especial. É algo que sempre tive, mas que poucas as vezes pude descrever como hoje o faço.
          Sua forma de pensar, o seu modo de agir era diferente. Um mistério vindo do alto. Possuía uma intuição preciosa. Sabia quando eu estava bem ou mal. Sabia se alguém era meu amigo ou me queria fazer mal. Não conto as vezes que você falava comigo para ser: mais cuidadoso e não ser tão ingênuo diante das coisas. Amava-me a tal ponto de não deixar de chamar-me atenção sobre as coisas erradas que eu fazia. E quantas vezes errei. E quando sofria era seus braços que me acolhia, era seu peito que me confortava, era sua voz que me acalmava. Se eu chorava, você chorava comigo. Suas lágrimas eram como gotas de amor que aos poucos ia confortando-me e deixando-me em paz. E me fazia sentir que tudo ia passar. Você me ensinava a continuar a viver e dar a volta por cima. Aprendendo com a vida e com os erros.  Se acaso alguém me reclama-se você mãe era a primeira a me defender. E era a última a me abandonar. Quantas vezes perdestes noites de sono, o juízo ou até a cor dos cabelos, preocupada comigo? É um amor que só vindo de Deus.
         Diante de você, eu não conseguia esconder muita coisa, porque me conhecias e me amavas e tua intuição de mãe nunca falhava. Eras tão verdadeira comigo que te enganar era uma coisa que me doía o coração. E infelizmente cheguei a fazer isso, pelo que muitas vezes me arrependi de tê-lo feito. E muito mais sinto por tê-la esquecido em algumas situações, por ter sido insensível ou até ignorante, ou desrespeitoso em outras. Ao mesmo tempo, como sofri ao te ver chorar, como fiquei irado ao ver pessoas que te machucaram profundamente, como me orgulhei ao ti ver vencer na vida diante de tantas dificuldades, desencontros e traições. Como me alegrei ao ti ver realizar sonhos quase impossíveis de serem feitos e como profundamente te amei por ti ver dando a vida por mim, motivando-me em minhas inseguranças e sendo um testemunho de que Deus existe e de que você é um exemplo de vida.
Mãe você me percebia muito bem, e muito bem sabia o que passava em meu coração. Contigo eu ficava sempre sem defesa, exposto ao perigo, sem reservas. Porque te amava a tal ponto de me entregar por inteiro. Mesmo que eu não concordasse com algumas de suas ideias. Mas era essa a dinâmica da vida. Uma relação autentica e verdadeira. E não conto as vezes que aprendi contigo, diante das poucas vezes que um pouco te ensinei. Se queria fazer uma coisa boa você me motivava. E mesmo quando persistia numa decisão tomada, era você mãe que me apoiava. Tenho no coração o teu cheiro, que ficou impregnado no lençol que você usava, o teu jeito de sorrir, as músicas que você gostava, as caretas que você fazia, e os cestos (manias) que você evitava. Pela voz eu já sabia, se você estava feliz, se você estava triste ou preocupada com alguém. O seu rosto me dizia, se você dormiu ou não bem.  Quando assim chegava em casa era você que procurava, e se acaso não estava, a sua ausência me faltava. Deste modo percebia o quão era importante para mim, eu fazia parte de você assim como você fazia parte de mim.
Por fim querida mãe eu só queria te dizer que fizeste por mim mais do que eu esperava receber, amaste-me mais do que eu podia merecer, lutaste por mim além de toda a coragem que eu poderia ter. Fostes um sinal de Deus. E sou infinitamente grato a Deus por ter tido você como Mãe.  O teu coração formou o meu coração, a tua vida concebeu a minha vida, o teu amor me ajudou a ser hoje o que sou. Sei que o tempo e a morte nunca me deixou distante de você, porque para o amor não há limites. Por isso, que confesso-te como um dos meus grandes amores, na certeza de que, de algum modo caminhas comigo. A tua presença foi um sinal tão precioso da Mãe de Deus. O que ela fez para com Jesus foi o que fizestes para comigo, o que ela preocupou-se com seu precioso Filho, foi o que você se preocupou comigo, o que ela aceitou de Deus de bom agrado, foi o que você fez por mim, em amor a Deus. Por isso és sinal comparável a Maria, porque assumiste o desafio de amar a mim e aos meus irmãos até o fim. Se o Reino de Deus está no meio de nós, então você está comigo mais do que eu imagino, espero e confio. Se você foi um sinal de Deus aqui na terra, então é em Deus que tenho a paz de te encontrar novamente, de um modo inexplicável. Muito obrigado por tudo. TE AMO ETERNAMENTE MAMÃE. E para todos vocês que têm o dom misterioso de ter uma mãe: Feliz dia do(a)s filho(a)s. Porque dizer feliz dia do(a)s filho(a)s é muito mais dizer: Feliz dia das Mães. Porque vocês merecerem uma boa mãe. Que Deus nos abençoe em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo: Amém!