quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Filosofia e Experiência Mística na Oratio de Pico Della Mirandola



Isaias Mendes Barbosa[1]
20/05/2015. (X Simpósio de Filosofia-FCF)

A presente comunicação objetiva apresentar os elementos místicos presentes na Oratio Hominis Dignitate (1486) de Giovanni Pico Della Mirandola. Numa articulação complementar e harmónica entre filosofia e teologia, Pico desenvolve uma proposta filosófica que destaca tanto o valor da dignidade humana em relação aos demais seres assim como a concórdia entre saberes e doutrinas diversas descartados ou contraditórios até então. Nessa pretensão piquiana, destaca-serelevância da mística na fundamentação e articulação de diversos saberes concordes. Neste sentido coloca-se em questão os seguintes pontos:i) A mística e a dignidade humana em relação aos demais seres; ii) A Experiência mística de Jacó no processo (filosófico) da dignidade humana; iii) o resgate da filosofia clássica e seus elementos místicos na filosofia de Pico Della Mirandola; iv) A hierarquia celestial na promoção da Dignidade Humana. v) a relevância de elementos místicos da cabbalah e da magia na concordia dos diversos saberes e doutrinas vinculados ao Cristianismo. Esta exposição reconhece, sobretudo, a experiência mística piquiana como elemento relevante na Oratio para construção do pensamento filosófico-teológico de Pico Della Mirandola. O percurso, gnosiológico,antropológico, ontológico e ético humano, pelo viés da filosofia e teologia, estão entrelaçados com a mística pertencente aos diversos saberes, pretendidos conciliares e complementares entre si por Pico.
PALAVRAS-CHAVE: homem, dignidade, concórdia, mística.




Introdução
A Orátio de Hominis Dignitatede Pico Della Mirandola, segundo alguns comentadores[2], está dividida em duas partes, de equivalente valor, que são relevantes para a compreensão do pensamento piquiniano. A primeira aborda o valor da dignitas homini e a segunda ressalta a concórdia, ou seja, o acordo ou limite entre os diversos pensadores acerca de uma mesma verdade[3]que, segundo Pico, se efetiva no Cristianismo. A sua filosofia se expressa em temas que tanto fazem parte do período do Renascimento, como estão anterior a ele, ou seja, pertencentes a tradição clássica e antiga. É evidente que existe a presença de outros saberes vinculados a pretensa dignidade humana, como a mística. A temática do homem, como objeto de discussão filosófica e a sua relação entre Deus e mundo, faz parte da história da filosofia e das temáticas trabalhadas por diversos filósofos[4] como Protágoras, Aristóteles, Platão, Al-Farabi, Agostinho, Averróis, dentre outros.
Porém, pode-se dizer que em Pico Della Mirandola as questões que envolvem a concepção do homem e seu valor central no mundo ligados há uma mística pertencente a diversos saberes, atingem uma importância singular é marca característica piquiana. Essa concordia põe em relevo a importância do homem, de sua moralidade e razão no processo de autonomia e determinação de sua realidade e de auto-plenificação. Daí ser fundamental discernir que no contexto de Pico, os estudos humanísticos, as artes liberais, a temática do livre arbítrio e da liberdade, da responsabilidade e autonomia do homem, assim como questões que envolvem a moral e uma valorização da Filologia, da erudição e da eloquência como complemento filosófico destacam-se na posição filosófica de Della Mirandola, assim como se apresentam como elementosinovadores. A busca pela verdade é o ponto em que ele valoriza a sua filosofia que é o recurso intermediário por onde o homem deve se exercer, pela dialética, para atingir o grau mais elevado de sua aspiração: a paz interior, a felicidade em Deus.
As pontuações apresentadas no presente artigo pretendem dá uma melhor compreensão acerca do filósofo Pico Della Mirandola e da presença de elementos místicos nos diversos saberes da tradição, com sua importância significativa na Orátio.
A mística e a dignidade humana em relação aos demais seres
Pico Della Mirandola inicia aOratio (1486) fazendo referência há um escrito dos Árabes. Deste escrito se destaca a figura de Abdala Sarracenoque, interrogado sobre qual seria “o espetáculo mais maravilhoso, neste senário do mundo”, tinha respondido: ‘que nada havia de mais admirável do que o homem’. (Cf. MIRANDOLA, 2008, p. 53). A relevância dessa resposta perpassa toda a Orátiopiquiana, pois nela está inserida uma de suas maiores pretensões: destacar o sentido e valor da dignidade humana.
Porém, as respostasconcedidas até então, pela tradição, sobre o significado, valor e grandeza dessa dignidade não satisfazia Pico.Elas eram “grandes coisas (...), sem dúvida, mas não as mais importantes, isto é, não tais que consintam a reinvindicação do privilégio de uma admiração ilimitada” à dignidade humana. (Cf. MIRANDOLA, 2008, p. 53). Diante desta problemática, Pico apresenta a novidade da sua Orátio:
Finalmente, pareceu-me ter compreendido por que razão é o homem o mais feliz de todos os seres animados e digno. Por isso, de toda a admiração, e qual enfim a condição que lhe coube em sorte na ordem universal, invejável não só as bestas, mas também pelos astros e até pelos espíritos supramundanos. (Cf. MIRANDOLA, 2008, p. 55).
A dignidade e admiração pelo valor da natureza humana perpassa a criação do mundo. Nela o homem se destaca entre os diversos seres, segundo a vontade de Deus. Assim, Pico recorre a elementos da mística da tradição bíblica e neoplatónica, dentre outros, para justificar sua nova orientação filosófica:
O Sumo Pai, Deus arquitecto, tinha construído segundo leis de arcana sabedoria este lugar do mundo como nós o vemos, augustíssimo templo da divindade.(...) Mas consumada a obra, o Artífice desejava que houvesse alguém capaz de compreender a razão de uma obra tão grande, que amasse a beleza e admirasse a sua grandeza. Por isso, uma vez tudo realizado, como Moisés e Timeu atestam, pensou por último criar o homem. (...) Assim, tomou o homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo: Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possua aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão.(Cf. MIRANDOLA, 2008, p. 57).
Essa citação destaca a relevância da dignidade do homem em relação aos demais seres. Em Pico, o homem é possibilidade universal. Ele é um ser universal porque pode ser o que quiser ser: estar no centro do mundo implica ser o promotor e o produtor de toda a sua realidade. A sua natureza é multiforme e variada, múltipla de significados, síntese de todas as partes do universo[5], que na hierarquia dos seres, tanto pode se elevar à categoria de ser divino, como se rebaixar a categoria de besta. Deste modo Pico destaca a relevância do homem em relação aos demais seres:
As bestas, no momento em que nascem, trazem consigo do ventre materno, como diz Lúcio, tudo aquilo que depois terão. Os espíritos superiores ou desde o princípio, ou pouco depois, foram o que serão eternamente. Ao homem nascente o Pai conferiu sementes de toda a espécie e germes de toda a vida, e segundo a maneira de cada um os cultivar assim estes nele crescerão e darão os seus frutos. Se vegetais, torna-se-á planta. Se sensíveis, será besta. Se racionais, elevar-se a animal celeste. Se intelectuais, será anjos e filhos de Deus, e se, não contente com a sorte de nenhuma criatura, se recolher no centro da sua unidade, tornado espírito uno com Deus, na solitária caligem (*) do Pai, aquele que foi posto sobre todas as coisas, estará sobre todas as coisas.(Cf. MIRANDOLA, 2008,p. 58- 59).
O homem, portanto, é provido na sua natureza de todas as potencialidades dos seres. Eis, aí, o fato de o homem ser um milagre. A sua natureza tem uma extensão entre dois mundos: o espiritual, inteligível, celeste que é superior aos demais e um mundo terrestre que é o mundo inferior, dedicado às formas animalescas. O primeiro é voltado para uma plena realização de si, que o põe em condição de identidade com Deus. Este é o ponto de transcendência e mística que nos deixa imersos na paz da contemplação[6]. Portanto, o homem é um microcosmo de uma realidade metafísica, terrestre e humana.
A Experiência mística de Jacó no processo (filosófico) da dignidade humana
            Por conseguinte, na relevância da dignificação do homem e de sua experiência mística-transcendente de ascensão, Pico recorre ao texto bíblico da experiência mística de Jacó:
Consultemos o patriarca Jacob, cuja figura resplandece esculpida em sede de Glória. O sapientíssimo patriarca ensinar-nos-á que, se dormia no mundo terreno, velava no reino dos céus. Mas ensinar-nos-á mediante um símbolo (...) que existem escadas que sobem do fundo da terra até ao cume dos céus, distintas numa longa série de degraus até ao cume dos céus, distintas numa longa série de degraus, no alto dos quais está sentado o Senhor, enquanto os anjos contemplantes por elas sobem e descem, alternando-se cada um por sua vez. (Cf. DELLA MIRANDOLA, 2008, p.65- 67).   
            Essa experiência mística da escada de Jacó é tomada como simbologia para descrever o processo de ascensão do homem, que deve seguir semelhante aos anjos, subindo e descendo a escada. Porém, em Pico, só é possível fazer essa ascensão com os pés e mãos lavadas, ou seja, puras. Deste modo, as mãos e os pés, ou seja,“toda a parte sensível onde estão sediadas as seduções corpóreas quetêm subjugada a alma” precisam ser lavadas “com a filosofia moral, como um vivo rio, para não sermos expulsos daquela escada como profano e imundo”.(Cf. DELLA MIRANDOLA, 2008, p.75).
            Neste sentido, o percurso da purificação e ascensão se realiza pela filosofia moral que limpa a alma e pela dialética que progride de degrau e degrau, até ao cume do homem, quando ele está em unidade com Deus, em repouso, na paz, ou felicidade teológica:
Mas nem isto será suficiente, se queremos ser companheiros dos anjos que percorrem a escada de Jacob, se primeiro não tivermos sido bem habilitados e instruídos a mover-nos com ordem de degrau em degrau, (...). Quando tivermos conseguido isso com a parte discursiva ou raciocinante, animados então por um espírito querubínico filosofando ao longo dos degraus da escada, (...) repousaremos na felicidade teológica. (Cf. DELLA MIRANDOLA, 2008, p.75).

O resgate da filosofia clássica e seus elementos místicos na filosofia de Pico Della Mirandola
            É notório o resgate de elementos da filosofia antiga e clássica na orientação Piquiana. Por muitas vezes Picofaz referência a Aristóteles e Platão, assim como a outros pensadores da antiguidade. Esse resgate tem a pretensão de conciliar diversos saberes que manifestam uma mesma VERDADE acerca da dignidade humana e de seu percurso gnosiológico. Portanto, de certo modo, todas as religiões e saberes possuem um fundamento metafísico e estão de acordo com a Verdade presente no Cristianismo.
            A Oratio expõe esseselementostão bem estruturado e relacionados entre si, que Pico os expõe com uma grande erudição e eloquência: ora os comparando entre si, ora justificando a sublimidade da dignidade humana com os diversos saberes até então desconsiderados ou negados, como os saberes pertencentes a tradição hermética, pagã, ou de outras místicas desconsideradas pelo crisitanismo. Um outra fator singular em Pico é a concordia entre Filosofia e Teologia, pois as duas não estão dissociadas noprocesso de ascensão e no projeto da dignitashominus, mas compõe fundamentalmente a orientação piquiano no percurso de dignificação e plenificação humana. Abaixo temos um exemplo dessa abordagem que apresenta a concordâncias entre diversos saberes:
Mas não só os mistérios mosaicos ou os cristãos, mas também a teologia dos antigos nos mostra o valor e a dignidade das artes liberais, que estou a discutir. Que outra coisa, de fato, querem significar no mistério através de uma purificação obtida com moral com a dialética, artes que já dissemos serem quase purificatórias? E aquela iniciação que outra coisa pode ser se não a interpretação da mais oculta natureza mediante a filosofia?(...) Quem não quererá ser inspirado pelo furor socrático, exaltado por Platão no Fedro, arrebatado em célere voo para Jerusalém Celeste, fugindo rapidamente com um bater de asas daqui, isto é, do mundo, reino do demónio? (Cf. DELLA MIRANDOLA, 2008, p.75).
Sua filosofia vai atingir esse resgate de elementos que têm haver com a tradição clássica a fim de dá uma nova roupagem, melhor, conciliar à tradição clássica com a cristã, na fundamentação de sua filosofia. Na Oratio Pico faz esse acordo. São inúmeras as referências e citações de filósofos antigos que abordam um comum acordo tanto sobre a dignidade do homem como sobre aspectos que envolvem uma unidade de pensamento: daí, o destaque de uma Prisca Theologia e uma Prisca Philosophia[7]. NaOratio vemos um trecho que marca a unidade de concórdia da teologia antiga com o Cristianismo:
Isto, sem dúvida, nos ordena Moisés e ordenando aconselha-nos, incita-nos a exortar-nos a preparar, enquanto pudermos, a via para a futura glória dos céus, por meio da filosofia. Mas não só os mistérios mosaicos ou os cristãos, mas também a teologia dos antigos nos mostra o valor e a dignidade das artes liberais, que estou a discutir.(MIRANDOLA, 2008, p. 73)
            Isso só denota a relação intrínseca entre teologia e filosofia, sendo a primeira afirmada com veemência por Pico, e a segunda confirmação e testemunha a da filosofia. Daí o Zoroatrismo, o Judaísmo, o Cristianismo e a antiga religião grega confirmam a dignidade do homem e o valor da filosofia antiga e filósofos gregos[8].  
No trecho abaixo Pico cita elementos místicos que compõe a filosofia platônica, portanto, grega, com o cristianismo. Existe uma tentativa de sincretismo que envolve uma origem do mundo tanto na tradição cristã com na tradição platônica[9]:    
Já o Sumo Pai, Deus arquitecto, tinha construído segundo leis de arcana sabedoria este lugar o mundo como nós o vemos, augustíssimo templo da divindade. Tinha embelezado a zona superceleste com inteligências, avivado os globos etéreos com almas eternas, povoando com uma multidão de animais de toda espécie as partes vis e fermentantes do mundo inferior. (MIRANDOLA, 2008, p. 55).
         Portanto, encontra-se presenta a intuição piquiana acerca da sua ideia fundamental: a concórdia entre diversos saberes a fim de apresentá-los num sentido de unidade que põe ênfase em questões que envolvem o valor da dignidade do homem e uma busca, de certo modo, e o anúncio de uma verdade que se apresenta latente, nas diversas doutrinas e tradições do saber que está em concórdia com a doutrina cristã. Portanto, o Cristianismo é o núcleo conciliador e de concórdia entre os variados saberes, pois enquanto os diversos saberes estavam em potência de uma verdade, o cristianismo era o ato desta mesma verdade.
A hierarquia celestial na promoção da Dignidade Humana
            Outros elementos místicos que compõe a Orátio se reporta a ordem celestial. São muitos os textos que os destacam e esse processo de ascensão do humano, com a filosofia e a teologia, atinge seu grau elevado, supra-mundano, que Pico define como Celestial, onde estão a ordem hierárquica dos anjos. Assim, Pico afirma:
Desdenhemos das coisas da terra, desprezemos as astrais e, abandonando tudo o que é terreno, voemos para a sede supramundana, próximo da sumidade da divindade. Ali, como narram os sagrados mistérios, Serafins, Querubins e Tronos ocupam os primeiros lugares; deles também nós emulemos a dignidade e a glória, incapazes agora de recuar e não suportar o segundo lugar. E se quisermos, não seremos em nada inferiores a eles. (MIRANDOLA, 2008, p. 55).
A ordem celestial destaca a natureza específica e função de cada ser angelical. Como Pico afirma, “Arde o Serafim no fogo de amor, refulge o Querubim no esplendor da inteligência, está o Trono na solidez do juízo”. Para que o homem siga esse percurso ao qual sua natureza intensa como mais sublime e elevado, faz-se mister fazer o percurso dos que estão na ordem celeste. Se tratarmos as coisas com reto discernimento, seremos como Tronos, se meditarmos na criação de Deus e no Deus da criação, resplandeceremos da luz da contemplação como os querubins, se ardermos por amor somente ao Deus criador, seremos como os Serafins, e se superior a este, seremos um com Deus. Portanto:
Grande é o poder dos Tronos e atingimo-lo com juízo: suma é a sublimidade dos Serafins e atingi-la-emos, com o amor. Mas como pode alguém julgar ou amar o que não conhece? Moisés amor o Deus que viu, e promulgou ao povo, como juiz, aquilo que antes tinha visto na montanha como contemplação. E por que no meio dos querubins com a sua luz nos prepara para a chama serafínica e nos ilumina juntamente com o juízo dos Tronos.(...) Mas, se a nossa vida deve ser modelada sobre a vida dos Querubins, devemos ter claro, frente aos nossos olhos, em que consiste tal vida, quais as acções e quais as obras, este o preço de tal realização. (MIRANDOLA, 2008, p. 63- 65).
A relevância de elementos místicos da cabbalah e da magia na concórdia dos diversos saberes e doutrinas vinculados ao Cristianismo.
As Conclusionesnongentae apresentadas por Pico é uma construção que apresenta em comum concórdia os elementos de diversos saberes e doutrinas. A filosofia piquiana é característica por uma construção filosófica que põe em relevância diversas tradições doutrinais e o retorno à filosofia clássica. Sua novidade está, no seu discurso filosófico, na abordagem de elementos da Qabbalah, da magia: relevantes para a concórdia na promoção do seu pensamento.
A Qabbala faz parte de um corpo de sabedoria antiga, não bem vista pela doutrina cristã. Em sua vida, Pico entrou em contato com o humanista Elias delMedigo, doutor hebreu e comentador de Averróis, pois ele  traduzia textos filosóficos para Pico.[10]
            As suas Conclusiones nongentae não chegaram a ser debatidas, uma vez que foram considerados alguns pontos como portadores de heresias. Daí o congresso não haver se consolidado. Porém é marcante na Oratio argumentos que se referem a uma concepção de elementos da Qabbalah que são característicos de um recurso natural que auxilia no conhecimento humano e na dominação do mesmo sobre seu mundo natural:
         Tendo deste modo sido revelada, por mandamento de Deus, a verdadeira interpretação da lei dada a Moisés por Deus, deu-lhe o nome de Cabala(*), que para os Hebreus tem o mesmo significado que para nós receptio(recepção). [...] Esdras [...] estabeleceu que, reunido os sábios então sobreviventes, cada um manifestasse quanto conservava guardado na memória acerca dos mistérios da lei. Estes em seguida, chamados os escribas, foram escritos em sete volumes,[...] São estes os livros da ciência da Cabala; neles,com razão, Esdras proclamou claramente estar ali a veia do intelecto, isto é, a inefável Teologia da supersubstancial divindade; a fonte de sapiência, isto é, a exata metafísica das formas inteligíveis; e o rio de ciência, isto é, a solidíssima filosofia das coisas naturais.(MIRANDOLA, 2008, p.113)
Portanto, ai vemos que a teologia hebraica está contida ou composta por elementos da Qabbalah, que é um livro místico de caráter metafísico e de ciência natural. Ele ressalta um conjunto de leis escritas para ordenação da vida moral humana e de sua aproximação com Deus. Tais livros são citados por Pico para demostrar a concórdia entre elementos místicos da Qabbalah com a tradição cristã[11].
A Magia é outro elemento da doutrina pagã utilizado por Pico, porém ele faz uma distinção entre dois tipos de magia: uma que é boa e outra que é má:
Propusemos também teoremas mágicos onde demostramos que magia é dupla: uma fundando-se exclusivamente na obra e autoridade dos demónios, é coisa execrável e monstruosa; a outra, pelo contrário se olharmos bem, nada mais é do que a suprema realização da filosofia natural.(MIRANDOLA,2008, p.103)
A magia boa se reporta a magia natural que envolve uma sabedoria dos doutos da Antiguidade como Pitágoras, Empédocles, Demócrito e Platão. Ai se tem um conhecimento natural e um instrumento de culto das coisas divinas. A boa magia é a natural, pois envolve um conhecimento das realidades celestiais e divinas. Sua utilidade para o homem está no alcance de sua dignidade como fruto de seu conhecimento e poder acerca da harmonia do universo para dominá-lo a seu serviço. A magia má é negada por todas as religiões ou estados bem organizados, uma vez que é praticada de modo escondido.
Portanto, a novidade de Pico se destaca em apresentar uma concórdia e valorização de elementos que compõe a Qabbalah e a magia que apresentam uma mística significativa. A ideia de concórdia nas suas Conclusionesnongentae tem uma abrangência espetacular, sua sapiência acerca de diversos saberes e doutrinas, igualmente de elementos que não compõem a doutrina cristã (elementos do paganismo), fundamentando a ideia de compor um conhecimento seguro e verdadeiro cuja as bases está em uma relação entre ratiotheologicae ratiophilosophica, tendo uma importância fundamental a natureza do homem como central no mundo, independente, autocriadora, promotora de sua realidade e com a disposição, segundo o seu livre arbítrio, de se elevar ao  princípio superior (Deus) e transcender a sua realidade antropológica pela filosofia até a teologia como promotora da verdadeira paz.
Considerações gerais
A presente exposição apresentou alguns aspectos fundamentais acerca da filosofia de Giovanni Pico Della Mirandola. Vemos a importância central que o homem atinge na Oratio de Homini Dignitatecomo personagem central e fundamental de toda realidade que o cerca, com uma autoprodução de si e do seu mundo, a fim de elevar-se e dignificar-se como ser essencial no mundo.
Porém, a sua plenificação está em transcender-se: daí a fundamentação de constituir nele uma natureza metafísica. Portanto, a valorização do homem e sua relação, não no sentido medieval, com o transcendente, mas no sentido de uma autorealização que envolve uma transcendência, é marca característica fundamental na filosofia piquiana.
O aspecto da concórdia entre os diversos saberes, doutrinas, tradições filosóficas e teológicas, não estão dissociado de uma mística nodiscurso de Pico, mas fazem parte de uma busca fundamental de mudanças de paradigmas, do pensamento, do conhecimento do homem e da concepção de mundo para o homem no Renascimento.
Neste sentido, podemos dizer que nele temos uma pretensão de conciliação de diverso saberes que marcam e constituem a dignidade do homem e seu intento de autotranscendência, a fim de se forjar ao seu estado mais sublime e elevado como ser-uno-divino- de vontade, livre, autônomo e responsável.

Referências bibliográficas

DOUGHERTY, M. V. Pico dela Mirandola: novos ensaios.[Trad. GetulioSchanoski Jr.]. São Paulo: Madras, 2011.
LACERDA, Bruno Amaro. A dignidade humana em Giovanni pico dellamirandola. Revista Legis Augustus (Revista Jurídica).Vol. 3, n. 1, p. 16-23, setembro 2010.
LOPES, Marília dos Santos. Para uma suma do saber: a cultura do humanismo no Renascimento.GaudiumSciendi Nº 1, Março 2012.
MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso Sobre a Dignidade do Homem. [Trad. Maria de Lourdes Sirgado Ganho] Ed. 1ª, Edições 70, 2008.
NICOLA, Ulbaldo. Antologia ilustrada de filosofia: Das origens à idade moderna. São Paulo: Globo, 2005.
KRISTELLER, Oskar Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento.[Trad. Artur Morão] Edições 70, Lisboa, Porugal, 1995.
REALE. Pré- socráticos e Orfismo: História da Filosofia Grega e Romana. Vol. I. [Trad. Marcelo Perine] Edições Loyola, São Paulo, 2009.



[1] Aluno do curso de filosofia/licenciatura da Universidade Estadual do Ceará.
[2]A Tradutora e comentadora, Maria de Lourdes Sirgado, da obra Discurso Sobre a Dignidade do Homem (1486) de Pico Della Mirandola, inicia a apresentação da referida obra, editada em 2008, (p. xxi), citando que: “a ‘Oratio’ de um modo muito claro, está dividida em duas partes, uma primeira, que diz respeito à dignidade do homem, uma segunda, que tematiza a questão da paz filosófica ou concórdia.”
[3]NICOLA na obra Antologia ilustrada de filosofia; das origens à idade moderna, São Paulo: Globo,2005, p.165 cita: “Todo o pensamento de Della Mirandola se resume na tentativa de distinguir o núcleo de verdade na base das três religiões monoteísta (Hebraísmo, Islamismo, Cristianismo).
[4] Giovanni Reale na História da filosofia Grega e Romana (2009), Vol. I, aborda a temática do homem tratada tanto pelos filósofos tomistas (p159), como pelos sofistas, em Protágoras (p.34), dentre outro. Na obra História da filosofia
[5] M. V. Doughertyna Pico dela mirandola: novos ensaios comenta que: Quando Pico afirma que os seres humanos não possuem um princípio determinante intrínseco, Pico declara que os seres humanos são livres para ecolher dentre as naturezas que existe na criação. Pico apresenta aquilo que poderia ser classificado como uma ontologia moral, já que afirma que a aquisição humana de uma natureza resultará das ações que o ser humano realiza. (Pico dela mirandola, 2011, p.137)
[6] Cf. DELLA MIRANDOLA, 2008, p.63: ‘Se libertos das acções, meditando na criação o artífice e no artífice da criação, estaremos imersos na paz da contemplação, replandeceremos rodeados de querubínica luz’.
[7]A ideia de relação entre a filosofia e teologia se faz por questão que envolve tanto a unidade do pensamento entre diversas doutrinas religiosas (teologia) como em diversas doutrinas ou correntes filosóficas (filosofia). É importante ressaltar que para Pico elas duas tem valor igual e uma completa a outra.
[8] (Cf. DOUGHERTY, 2011, p.80)
[9]  Sobre o sincretismo de Pico, Michael Sudduth, na  PICO DELLA MIRANDOLA: NOVOS ENSAIOS, 2011 , p.83., afirma: ‘Com base em diversas convenções de interpretações alegorias, incluindo ideias do Judaísmo cabalístico, Pico tenta reconciliar o relato mosaico da criação com ideias pagãs da origem do mundo da forma como é apresentada em diferentes fontes, como Timeu de Platão’
[10] Cf. A Tradutora e comentadora, Maria de Lourdes Sirgado, da Discurso Sobre a Dignidade do Homem. Edição bilíngue, 2008.(p.13) quando comenta que foi: “Elias delMedigo, também seu mestre e amigo, douto hebreu, tradutor e comentador de Averróis e que presidia à Ecola Talmúdica de Itália, homem profundamente religioso, que traduziu e compendiou textos filosóficos para Pico, fornecendo-lhe preciosos elementos acerca da filosofia da Cabala.”
[11] Sobre a conciliação da Qabbalah hebraica com a teologia cristã NICOLA, na Antologia ilustrada de Filosofia: Das origens à idade moderna, 2005, p.167, comenta: Na esperança de conciliar a Cabala hebraica com a teologia cristã, o pensamento filosófico com a magia, a doutrina platônica com os escritos de Hermes Trimegistro, Pico empenhou-se em um gigantesco trabalho de comparação de textos, ajudado por uma memória que o tornou célebre entre os seus contemporâneos.

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