Isaias Mendes Barbosa[1]
20/05/2015. (X Simpósio de Filosofia-FCF)
A
presente comunicação objetiva apresentar os elementos místicos presentes na Oratio Hominis Dignitate (1486) de
Giovanni Pico Della Mirandola. Numa articulação complementar e harmónica entre
filosofia e teologia, Pico desenvolve uma proposta filosófica que destaca tanto
o valor da dignidade humana em relação aos demais seres assim como a concórdia
entre saberes e doutrinas diversas descartados ou contraditórios até então.
Nessa pretensão piquiana, destaca-serelevância da mística na fundamentação e
articulação de diversos saberes concordes. Neste sentido coloca-se em questão
os seguintes pontos:i) A mística e a dignidade humana em relação aos demais
seres; ii) A Experiência mística de Jacó no processo (filosófico) da dignidade
humana; iii) o resgate da filosofia clássica e seus elementos místicos na
filosofia de Pico Della Mirandola; iv) A hierarquia celestial na promoção da
Dignidade Humana. v) a relevância de elementos místicos da cabbalah e da magia na
concordia dos diversos saberes e doutrinas vinculados ao Cristianismo. Esta
exposição reconhece, sobretudo, a experiência mística piquiana como elemento
relevante na Oratio para construção
do pensamento filosófico-teológico de Pico Della Mirandola. O percurso,
gnosiológico,antropológico, ontológico e ético humano, pelo viés da filosofia e
teologia, estão entrelaçados com a mística pertencente aos diversos saberes,
pretendidos conciliares e complementares entre si por Pico.
PALAVRAS-CHAVE:
homem, dignidade, concórdia, mística.
Introdução
A Orátio de Hominis Dignitatede Pico Della Mirandola, segundo alguns
comentadores[2],
está dividida em duas partes, de equivalente valor, que são relevantes para a
compreensão do pensamento piquiniano. A primeira aborda o valor da dignitas homini e a segunda ressalta a
concórdia, ou seja, o acordo ou limite entre os diversos pensadores acerca de
uma mesma verdade[3]que,
segundo Pico, se efetiva no Cristianismo. A sua filosofia se expressa em temas
que tanto fazem parte do período do Renascimento, como estão anterior a ele, ou
seja, pertencentes a tradição clássica e antiga. É evidente que existe a
presença de outros saberes vinculados a pretensa dignidade humana, como a
mística. A temática do homem, como objeto de discussão filosófica e a sua
relação entre Deus e mundo, faz parte da história da filosofia e das temáticas
trabalhadas por diversos filósofos[4]
como Protágoras, Aristóteles, Platão, Al-Farabi, Agostinho, Averróis, dentre
outros.
Porém,
pode-se dizer que em Pico Della Mirandola as questões que envolvem a concepção
do homem e seu valor central no mundo ligados há uma mística pertencente a
diversos saberes, atingem uma importância singular é marca característica piquiana.
Essa concordia põe em relevo a importância do homem, de sua moralidade e razão
no processo de autonomia e determinação de sua realidade e de auto-plenificação.
Daí ser fundamental discernir que no contexto de Pico, os estudos humanísticos,
as artes liberais, a temática do livre arbítrio e da liberdade, da
responsabilidade e autonomia do homem, assim como questões que envolvem a moral
e uma valorização da Filologia, da erudição e da eloquência como complemento
filosófico destacam-se na posição filosófica de Della Mirandola, assim como se
apresentam como elementosinovadores. A busca pela verdade é o ponto em que ele
valoriza a sua filosofia que é o recurso intermediário por onde o homem deve se
exercer, pela dialética, para atingir o grau mais elevado de sua aspiração: a
paz interior, a felicidade em Deus.
As
pontuações apresentadas no presente artigo pretendem dá uma melhor compreensão
acerca do filósofo Pico Della Mirandola e da presença de elementos místicos nos
diversos saberes da tradição, com sua importância significativa na Orátio.
A mística e a dignidade humana em
relação aos demais seres
Pico
Della Mirandola inicia aOratio (1486)
fazendo referência há um escrito dos Árabes. Deste escrito se destaca a figura
de Abdala Sarracenoque, interrogado
sobre qual seria “o espetáculo mais maravilhoso, neste senário do mundo”, tinha
respondido: ‘que nada havia de mais admirável do que o homem’. (Cf. MIRANDOLA,
2008, p. 53). A relevância dessa resposta perpassa toda a Orátiopiquiana, pois
nela está inserida uma de suas maiores pretensões: destacar o sentido e valor
da dignidade humana.
Porém,
as respostasconcedidas até então, pela tradição, sobre o significado, valor e
grandeza dessa dignidade não satisfazia Pico.Elas eram “grandes coisas (...),
sem dúvida, mas não as mais importantes, isto é, não tais que consintam a
reinvindicação do privilégio de uma admiração ilimitada” à dignidade humana.
(Cf. MIRANDOLA, 2008, p. 53). Diante desta problemática, Pico apresenta a
novidade da sua Orátio:
Finalmente,
pareceu-me ter compreendido por que razão é o homem o mais feliz de todos os
seres animados e digno. Por isso, de toda a admiração, e qual enfim a condição
que lhe coube em sorte na ordem universal, invejável não só as bestas, mas
também pelos astros e até pelos espíritos supramundanos. (Cf. MIRANDOLA, 2008,
p. 55).
A
dignidade e admiração pelo valor da natureza humana perpassa a criação do mundo.
Nela o homem se destaca entre os diversos seres, segundo a vontade de Deus.
Assim, Pico recorre a elementos da mística da tradição bíblica e neoplatónica,
dentre outros, para justificar sua nova orientação filosófica:
O
Sumo Pai, Deus arquitecto, tinha construído segundo leis de arcana sabedoria
este lugar do mundo como nós o vemos, augustíssimo templo da divindade.(...)
Mas consumada a obra, o Artífice desejava que houvesse alguém capaz de
compreender a razão de uma obra tão grande, que amasse a beleza e admirasse a
sua grandeza. Por isso, uma vez tudo realizado, como Moisés e Timeu atestam,
pensou por último criar o homem. (...) Assim, tomou o homem como obra de
natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo: Ó
Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja
próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possua aquele
lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo
o teu parecer e a tua decisão.(Cf. MIRANDOLA, 2008, p. 57).
Essa
citação destaca a relevância da dignidade do homem em relação aos demais seres.
Em Pico, o homem é possibilidade universal. Ele é um ser universal porque pode
ser o que quiser ser: estar no centro do mundo implica ser o promotor e o
produtor de toda a sua realidade. A sua natureza é multiforme e variada,
múltipla de significados, síntese de todas as partes do universo[5],
que na hierarquia dos seres, tanto pode se elevar à categoria de ser divino,
como se rebaixar a categoria de besta. Deste modo Pico destaca a relevância do
homem em relação aos demais seres:
As
bestas, no momento em que nascem, trazem consigo do ventre materno, como diz
Lúcio, tudo aquilo que depois terão. Os espíritos superiores ou desde o
princípio, ou pouco depois, foram o que serão eternamente. Ao homem nascente o
Pai conferiu sementes de toda a espécie e germes de toda a vida, e segundo a
maneira de cada um os cultivar assim estes nele crescerão e darão os seus
frutos. Se vegetais, torna-se-á planta. Se sensíveis, será besta. Se racionais,
elevar-se a animal celeste. Se intelectuais, será anjos e filhos de Deus, e se,
não contente com a sorte de nenhuma criatura, se recolher no centro da sua
unidade, tornado espírito uno com Deus, na solitária caligem (*) do Pai, aquele
que foi posto sobre todas as coisas, estará sobre todas as coisas.(Cf. MIRANDOLA,
2008,p. 58- 59).
O
homem, portanto, é provido na sua natureza de todas as potencialidades dos
seres. Eis, aí, o fato de o homem ser um milagre. A sua natureza tem uma
extensão entre dois mundos: o espiritual, inteligível, celeste que é superior aos demais e um mundo terrestre que é o mundo inferior, dedicado às formas animalescas. O
primeiro é voltado para uma plena realização de si, que o põe em condição de
identidade com Deus. Este é o ponto de transcendência e mística que nos deixa
imersos na paz da contemplação[6].
Portanto, o homem é um microcosmo de uma realidade metafísica, terrestre e
humana.
A Experiência mística de Jacó no
processo (filosófico) da dignidade humana
Por conseguinte, na relevância da
dignificação do homem e de sua experiência mística-transcendente de ascensão,
Pico recorre ao texto bíblico da experiência mística de Jacó:
Consultemos o patriarca Jacob, cuja figura
resplandece esculpida em sede de Glória. O sapientíssimo patriarca
ensinar-nos-á que, se dormia no mundo terreno, velava no reino dos céus. Mas
ensinar-nos-á mediante um símbolo (...) que existem escadas que sobem do fundo
da terra até ao cume dos céus, distintas numa longa série de degraus até ao
cume dos céus, distintas numa longa série de degraus, no alto dos quais está
sentado o Senhor, enquanto os anjos contemplantes por elas sobem e descem,
alternando-se cada um por sua vez. (Cf.
DELLA MIRANDOLA, 2008, p.65- 67).
Essa
experiência mística da escada de Jacó é tomada como simbologia para descrever o
processo de ascensão do homem, que deve seguir semelhante aos anjos, subindo e
descendo a escada. Porém, em Pico, só é possível fazer essa ascensão com os pés
e mãos lavadas, ou seja, puras. Deste modo, as mãos e os pés, ou seja,“toda a
parte sensível onde estão sediadas as seduções corpóreas quetêm subjugada a
alma” precisam ser lavadas “com a filosofia moral, como um vivo rio, para não
sermos expulsos daquela escada como profano e imundo”.(Cf. DELLA MIRANDOLA, 2008,
p.75).
Neste
sentido, o percurso da purificação e ascensão se realiza pela filosofia moral
que limpa a alma e pela dialética que progride de degrau e degrau, até ao cume
do homem, quando ele está em unidade com Deus, em repouso, na paz, ou
felicidade teológica:
Mas
nem isto será suficiente, se queremos ser companheiros dos anjos que percorrem
a escada de Jacob, se primeiro não tivermos sido bem habilitados e instruídos a
mover-nos com ordem de degrau em degrau, (...). Quando tivermos conseguido isso
com a parte discursiva ou raciocinante, animados então por um espírito
querubínico filosofando ao longo dos degraus da escada, (...) repousaremos na
felicidade teológica. (Cf. DELLA MIRANDOLA, 2008, p.75).
O resgate da filosofia clássica e
seus elementos místicos na filosofia de Pico Della Mirandola
É
notório o resgate de elementos da filosofia antiga e clássica na orientação
Piquiana. Por muitas vezes Picofaz referência a Aristóteles e Platão, assim
como a outros pensadores da antiguidade. Esse resgate tem a pretensão de conciliar
diversos saberes que manifestam uma mesma VERDADE acerca da dignidade humana e
de seu percurso gnosiológico. Portanto, de certo modo, todas as religiões e
saberes possuem um fundamento metafísico e estão de acordo com a Verdade
presente no Cristianismo.
A Oratio expõe esseselementostão bem
estruturado e relacionados entre si, que Pico os expõe com uma grande erudição
e eloquência: ora os comparando entre si, ora justificando a sublimidade da
dignidade humana com os diversos saberes até então desconsiderados ou negados,
como os saberes pertencentes a tradição hermética, pagã, ou de outras místicas
desconsideradas pelo crisitanismo. Um outra fator singular em Pico é a
concordia entre Filosofia e Teologia, pois as duas não estão dissociadas
noprocesso de ascensão e no projeto da dignitashominus,
mas compõe fundamentalmente a orientação piquiano no percurso de
dignificação e plenificação humana. Abaixo temos um exemplo dessa abordagem que
apresenta a concordâncias entre diversos saberes:
Mas
não só os mistérios mosaicos ou os cristãos, mas também a teologia dos antigos
nos mostra o valor e a dignidade das artes liberais, que estou a discutir. Que
outra coisa, de fato, querem significar no mistério através de uma purificação
obtida com moral com a dialética, artes que já dissemos serem quase
purificatórias? E aquela iniciação que outra coisa pode ser se não a
interpretação da mais oculta natureza mediante a filosofia?(...) Quem não
quererá ser inspirado pelo furor socrático, exaltado por Platão no Fedro,
arrebatado em célere voo para Jerusalém Celeste, fugindo rapidamente com um
bater de asas daqui, isto é, do mundo, reino do demónio? (Cf. DELLA MIRANDOLA,
2008, p.75).
Sua filosofia vai atingir esse resgate
de elementos que têm haver com a tradição clássica a fim de dá uma nova
roupagem, melhor, conciliar à tradição clássica com a cristã, na fundamentação
de sua filosofia. Na Oratio Pico faz
esse acordo. São inúmeras as referências e citações de filósofos antigos que
abordam um comum acordo tanto sobre a dignidade do homem como sobre aspectos
que envolvem uma unidade de pensamento: daí, o destaque de uma Prisca Theologia e uma Prisca Philosophia[7]. NaOratio vemos um trecho que marca a
unidade de concórdia da teologia antiga com o Cristianismo:
Isto,
sem dúvida, nos ordena Moisés e ordenando aconselha-nos, incita-nos a
exortar-nos a preparar, enquanto pudermos, a via para a futura glória dos céus,
por meio da filosofia. Mas não só os mistérios mosaicos ou os cristãos, mas
também a teologia dos antigos nos mostra o valor e a dignidade das artes
liberais, que estou a discutir.(MIRANDOLA,
2008, p. 73)
Isso só denota a relação intrínseca entre teologia e
filosofia, sendo a primeira afirmada com veemência por Pico, e a segunda
confirmação e testemunha a da filosofia. Daí o Zoroatrismo, o Judaísmo, o
Cristianismo e a antiga religião grega confirmam a dignidade do homem e o valor
da filosofia antiga e filósofos gregos[8].
No trecho abaixo Pico cita elementos
místicos que compõe a filosofia platônica, portanto, grega, com o cristianismo.
Existe uma tentativa de sincretismo que envolve uma origem do mundo tanto na
tradição cristã com na tradição platônica[9]:
Já o Sumo Pai, Deus arquitecto,
tinha construído segundo leis de arcana sabedoria este lugar o mundo como nós o
vemos, augustíssimo templo da divindade. Tinha embelezado a zona superceleste
com inteligências, avivado os globos etéreos com almas eternas, povoando com
uma multidão de animais de toda espécie as partes vis e fermentantes do mundo
inferior. (MIRANDOLA, 2008, p. 55).
Portanto,
encontra-se presenta a intuição piquiana acerca da sua ideia fundamental: a
concórdia entre diversos saberes a fim de apresentá-los num sentido de unidade
que põe ênfase em questões que envolvem o valor da dignidade do homem e uma
busca, de certo modo, e o anúncio de uma verdade que se apresenta latente, nas
diversas doutrinas e tradições do saber que está em concórdia com a doutrina
cristã. Portanto, o Cristianismo é o núcleo conciliador e de concórdia entre os
variados saberes, pois enquanto os diversos saberes estavam em potência de uma
verdade, o cristianismo era o ato desta mesma verdade.
A hierarquia celestial na promoção
da Dignidade Humana
Outros
elementos místicos que compõe a Orátio se reporta a ordem celestial. São muitos
os textos que os destacam e esse processo de ascensão do humano, com a
filosofia e a teologia, atinge seu grau elevado, supra-mundano, que Pico define
como Celestial, onde estão a ordem hierárquica dos anjos. Assim, Pico afirma:
Desdenhemos das
coisas da terra, desprezemos as astrais e, abandonando tudo o que é terreno,
voemos para a sede supramundana, próximo da sumidade da divindade. Ali, como
narram os sagrados mistérios, Serafins, Querubins e Tronos ocupam os primeiros
lugares; deles também nós emulemos a dignidade e a glória, incapazes agora de
recuar e não suportar o segundo lugar. E se quisermos, não seremos em nada
inferiores a eles. (MIRANDOLA, 2008, p. 55).
A ordem celestial destaca a natureza
específica e função de cada ser angelical. Como Pico afirma, “Arde o Serafim no
fogo de amor, refulge o Querubim no esplendor da inteligência, está o Trono na
solidez do juízo”. Para que o homem siga esse percurso ao qual sua natureza
intensa como mais sublime e elevado, faz-se mister fazer o percurso dos que
estão na ordem celeste. Se tratarmos as coisas com reto discernimento, seremos
como Tronos, se meditarmos na criação de Deus e no Deus da criação,
resplandeceremos da luz da contemplação como os querubins, se ardermos por amor
somente ao Deus criador, seremos como os Serafins, e se superior a este,
seremos um com Deus. Portanto:
Grande é o poder
dos Tronos e atingimo-lo com juízo: suma é a sublimidade dos Serafins e
atingi-la-emos, com o amor. Mas como pode alguém julgar ou amar o que não
conhece? Moisés amor o Deus que viu, e promulgou ao povo, como juiz, aquilo que
antes tinha visto na montanha como contemplação. E por que no meio dos
querubins com a sua luz nos prepara para a chama serafínica e nos ilumina
juntamente com o juízo dos Tronos.(...) Mas, se a nossa vida deve ser modelada
sobre a vida dos Querubins, devemos ter claro, frente aos nossos olhos, em que
consiste tal vida, quais as acções e quais as obras, este o preço de tal
realização. (MIRANDOLA, 2008, p. 63- 65).
A relevância de elementos místicos
da cabbalah e da magia na concórdia dos diversos saberes e doutrinas vinculados ao
Cristianismo.
As Conclusionesnongentae
apresentadas por Pico é uma construção que apresenta em comum concórdia os
elementos de diversos saberes e doutrinas. A filosofia piquiana é
característica por uma construção filosófica que põe em relevância diversas
tradições doutrinais e o retorno à filosofia clássica. Sua novidade está, no
seu discurso filosófico, na abordagem de elementos da Qabbalah, da magia:
relevantes para a concórdia na promoção do seu pensamento.
A Qabbala faz parte de um corpo de sabedoria
antiga, não bem vista pela doutrina cristã. Em sua vida, Pico entrou em contato
com o humanista Elias delMedigo, doutor hebreu e comentador de Averróis, pois
ele traduzia textos filosóficos para Pico.[10]
As
suas Conclusiones nongentae não
chegaram a ser debatidas, uma vez que foram considerados alguns pontos como
portadores de heresias. Daí o congresso não haver se consolidado. Porém é
marcante na Oratio argumentos que se
referem a uma concepção de elementos da Qabbalah que são característicos de um
recurso natural que auxilia no conhecimento humano e na dominação do mesmo
sobre seu mundo natural:
Tendo deste modo sido revelada, por mandamento
de Deus, a verdadeira interpretação da lei dada a Moisés por Deus, deu-lhe o
nome de Cabala(*), que para os Hebreus tem o mesmo significado que para nós receptio(recepção). [...] Esdras [...]
estabeleceu que, reunido os sábios então sobreviventes, cada um manifestasse
quanto conservava guardado na memória acerca dos mistérios da lei. Estes em
seguida, chamados os escribas, foram escritos em sete volumes,[...] São estes
os livros da ciência da Cabala; neles,com razão, Esdras proclamou claramente
estar ali a veia do intelecto, isto é, a inefável Teologia da supersubstancial
divindade; a fonte de sapiência, isto é, a exata metafísica das formas
inteligíveis; e o rio de ciência, isto é, a solidíssima filosofia das coisas
naturais.(MIRANDOLA, 2008, p.113)
Portanto,
ai vemos que a teologia hebraica está contida ou composta por elementos da
Qabbalah, que é um livro místico de caráter metafísico e de ciência natural.
Ele ressalta um conjunto de leis escritas para ordenação da vida moral humana e
de sua aproximação com Deus. Tais livros são citados por Pico para demostrar a
concórdia entre elementos místicos da Qabbalah com a tradição cristã[11].
A Magia
é outro elemento da doutrina pagã utilizado por Pico, porém ele faz uma
distinção entre dois tipos de magia: uma que é boa e outra que é má:
Propusemos também teoremas mágicos onde demostramos que magia é dupla:
uma fundando-se exclusivamente na obra e autoridade dos demónios, é coisa
execrável e monstruosa; a outra, pelo contrário se olharmos bem, nada mais é do
que a suprema realização da filosofia natural.(MIRANDOLA,2008, p.103)
A magia
boa se reporta a magia natural que envolve uma sabedoria dos doutos da
Antiguidade como Pitágoras, Empédocles, Demócrito e Platão. Ai se tem um
conhecimento natural e um instrumento de culto das coisas divinas. A boa magia
é a natural, pois envolve um conhecimento das realidades celestiais e divinas.
Sua utilidade para o homem está no alcance de sua dignidade como fruto de seu
conhecimento e poder acerca da harmonia do universo para dominá-lo a seu
serviço. A magia má é negada por todas as religiões ou estados bem organizados,
uma vez que é praticada de modo escondido.
Portanto,
a novidade de Pico se destaca em apresentar uma concórdia e valorização de
elementos que compõe a Qabbalah e a magia que apresentam uma mística
significativa. A ideia de concórdia nas suas Conclusionesnongentae tem uma
abrangência espetacular, sua sapiência acerca de diversos saberes e doutrinas,
igualmente de elementos que não compõem a doutrina cristã (elementos do
paganismo), fundamentando a ideia de compor um conhecimento seguro e verdadeiro
cuja as bases está em uma relação entre ratiotheologicae
ratiophilosophica, tendo uma
importância fundamental a natureza do homem como central no mundo,
independente, autocriadora, promotora de sua realidade e com a disposição,
segundo o seu livre arbítrio, de se elevar ao
princípio superior (Deus) e transcender a sua realidade antropológica
pela filosofia até a teologia como promotora da verdadeira paz.
Considerações gerais
A presente exposição apresentou alguns
aspectos fundamentais acerca da filosofia de Giovanni Pico Della Mirandola.
Vemos a importância central que o homem atinge na Oratio de Homini Dignitatecomo personagem central e fundamental de
toda realidade que o cerca, com uma autoprodução de si e do seu mundo, a fim de
elevar-se e dignificar-se como ser essencial no mundo.
Porém, a sua plenificação está em
transcender-se: daí a fundamentação de constituir nele uma natureza metafísica.
Portanto, a valorização do homem e sua relação, não no sentido medieval, com o
transcendente, mas no sentido de uma autorealização que envolve uma
transcendência, é marca característica fundamental na filosofia piquiana.
O aspecto da concórdia entre os diversos
saberes, doutrinas, tradições filosóficas e teológicas, não estão dissociado de
uma mística nodiscurso de Pico, mas fazem
parte de uma busca fundamental de mudanças de paradigmas, do pensamento, do
conhecimento do homem e da concepção de mundo para o homem no Renascimento.
Neste sentido, podemos dizer que nele
temos uma pretensão de conciliação de diverso saberes que marcam e constituem a
dignidade do homem e seu intento de autotranscendência, a fim de se forjar ao
seu estado mais sublime e elevado como ser-uno-divino- de vontade, livre,
autônomo e responsável.
Referências bibliográficas
DOUGHERTY, M. V. Pico dela Mirandola: novos
ensaios.[Trad. GetulioSchanoski Jr.]. São Paulo: Madras, 2011.
LACERDA, Bruno Amaro. A dignidade humana em Giovanni
pico dellamirandola. Revista Legis Augustus (Revista Jurídica).Vol. 3, n. 1, p.
16-23, setembro 2010.
LOPES, Marília dos Santos. Para uma suma do saber: a
cultura do humanismo no Renascimento.GaudiumSciendi Nº 1, Março 2012.
MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso Sobre a
Dignidade do Homem. [Trad. Maria de Lourdes Sirgado Ganho] Ed. 1ª, Edições 70,
2008.
NICOLA, Ulbaldo. Antologia ilustrada de filosofia:
Das origens à idade moderna. São Paulo: Globo, 2005.
KRISTELLER, Oskar Paul. Tradição Clássica e
Pensamento do Renascimento.[Trad. Artur Morão] Edições 70, Lisboa, Porugal,
1995.
REALE. Pré- socráticos e Orfismo: História da
Filosofia Grega e Romana. Vol. I. [Trad. Marcelo Perine] Edições Loyola, São
Paulo, 2009.
[1] Aluno do curso de
filosofia/licenciatura da Universidade Estadual do Ceará.
[2]A Tradutora e comentadora, Maria
de Lourdes Sirgado, da obra Discurso
Sobre a Dignidade do Homem (1486) de Pico Della Mirandola, inicia a
apresentação da referida obra, editada em 2008, (p. xxi), citando que: “a
‘Oratio’ de um modo muito claro, está dividida em duas partes, uma primeira,
que diz respeito à dignidade do homem, uma segunda, que tematiza a questão da
paz filosófica ou concórdia.”
[3]NICOLA na obra Antologia
ilustrada de filosofia; das origens à idade moderna, São Paulo: Globo,2005,
p.165 cita: “Todo o pensamento de Della Mirandola se resume na tentativa de
distinguir o núcleo de verdade na base das três religiões monoteísta
(Hebraísmo, Islamismo, Cristianismo).
[4] Giovanni Reale na História da filosofia Grega e Romana (2009), Vol. I, aborda a temática do homem
tratada tanto pelos filósofos tomistas (p159), como pelos sofistas, em
Protágoras (p.34), dentre outro. Na obra História da filosofia
[5] M. V. Doughertyna Pico dela mirandola: novos ensaios
comenta que: Quando Pico afirma que os seres humanos não possuem um princípio
determinante intrínseco, Pico declara que os seres humanos são livres para
ecolher dentre as naturezas que existe na criação. Pico apresenta aquilo que
poderia ser classificado como uma ontologia moral, já que afirma que a
aquisição humana de uma natureza resultará das ações que o ser humano realiza.
(Pico dela mirandola, 2011, p.137)
[6] Cf. DELLA MIRANDOLA, 2008, p.63:
‘Se libertos das acções, meditando na criação o artífice e no artífice da
criação, estaremos imersos na paz da contemplação, replandeceremos rodeados de
querubínica luz’.
[7]A ideia de relação entre a
filosofia e teologia se faz por questão que envolve tanto a unidade do
pensamento entre diversas doutrinas religiosas (teologia) como em diversas
doutrinas ou correntes filosóficas (filosofia). É importante ressaltar que para
Pico elas duas tem valor igual e uma completa a outra.
[8] (Cf. DOUGHERTY, 2011, p.80)
[9]
Sobre o sincretismo de Pico, Michael Sudduth, na PICO
DELLA MIRANDOLA: NOVOS ENSAIOS, 2011 , p.83., afirma: ‘Com base em diversas
convenções de interpretações alegorias, incluindo ideias do Judaísmo cabalístico,
Pico tenta reconciliar o relato mosaico da criação com ideias pagãs da origem
do mundo da forma como é apresentada em diferentes fontes, como Timeu de Platão’
[10] Cf. A Tradutora e comentadora,
Maria de Lourdes Sirgado, da Discurso Sobre a Dignidade do Homem. Edição
bilíngue, 2008.(p.13) quando comenta que foi: “Elias delMedigo, também seu mestre e amigo, douto hebreu, tradutor e
comentador de Averróis e que presidia à Ecola Talmúdica de Itália, homem
profundamente religioso, que traduziu e compendiou textos filosóficos para
Pico, fornecendo-lhe preciosos elementos acerca da filosofia da Cabala.”
[11] Sobre a conciliação da Qabbalah
hebraica com a teologia cristã NICOLA, na Antologia
ilustrada de Filosofia: Das origens à idade moderna, 2005, p.167, comenta:
Na esperança de conciliar a Cabala hebraica com a teologia cristã, o pensamento
filosófico com a magia, a doutrina platônica com os escritos de Hermes
Trimegistro, Pico empenhou-se em um gigantesco trabalho de comparação de
textos, ajudado por uma memória que o tornou célebre entre os seus
contemporâneos.
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