Isaias
Mendes Barbosa[1]
( Artigo apresentado 14/11/2013 na FCF.)
A
presente comunicação pretende tecer algumas considerações acerca das características
culturais e filosóficas pertencentes no Humanismo renascentista italiano, ou
seja, entre o século XI e XV, e sobre a presença da influência agostiniana na
obra de Petrarca.Tendo como base a reflexão de Paul Kristeller em seu escrito Tradição Clássica e Pensamento do
Renascimento, de1995, e a 1ª carta do livro IV dos Rerum familiarium libri(1336),
também conhecida como a carta do Monte
Ventoux, do fundador do Humanismo renascentista, a saber,Francesco Petrarca, destacam-se aqui as
seguintes questões:i) a da especificidade
do humanismo renascentista italiano; ii) a influência das Confissões
agostiniana na carta do Monte Ventoux; iii) a diferença entre a abordagem
filosófica agostiniana nas Confissões e aquela petrarqueana sobre a filosofia de
Agostinho. As pesquisas sobre a obra de Petrarca buscam destacar a presença
agostiniana não só nas Rerum familiarum libri,
mas também no Desecreto conflictum earum curarum:
uma compreensão dos pressupostos culturais e filosóficosdo Humanismo Italiano e
de sua nova antropologia. Trata-se de um marco particular e importante na História
da filosofia, pois se destaca uma atenção especial e valorização dos studia humanitatis,vinculados ao aspecto
social e cívico do renascimento. Petrarca é considerado o fundador desse
movimento humanístico, destacando uma abordagem filológica acerca dos escritos
Antigos e retomando-os em sua originalidade: algodesenvolvido na sua reflexão
como um novo modo de se conceber a experiência humana, desvinculada da tradição
medieval. Por conseguinte,a defesa de novos
valores para bem se conduzir, escrever e falar, isto é, valores para a vida
associada na educação da vida civil.
Palavras-chave: Humanismo renascentista,
Agostinho e Petrarca.
A especificidade do Humanismo
renascentista italiano
Abordar
a especificidade do Humanismo renascentista implica tratar do aspecto
histórico, cultural, literário e filosófico, em seus momentos mais profundos e
nas mudanças significativas,que marcam as suas particularidades, e definem o
período renascentista propriamente dito, ou seja,entre os séculos XI e XV. Isso
é um desafio que poucos estudiosos da história da filosofia, ou do Humanismo
renascentista, como Paul Kristeller,buscaram realizar[2].Atualmente,
em virtude dos desafios e dificuldadesnesse universo de pesquisa, muitas vezes,
o estudante de filosofia se limita a desenvolver uma compreensão e
esclarecimento superficial do que se caracterizou o Humanismo renascentista em
suas especificidades e particularidades. São muitos os comentadores que abordam
esse período, todavia, limita-se aqui apresentar algumas considerações sobre as
especificidades do renascimento na ótica de Paul Kristeller,
Dino
F.Fontana (1969, p.82), na História da
filosofia psicologia e lógica afirma que
o humanismo
[renascentista] é: ‘ Movimento espiritual representado pelos humanistas do
Renascimento (Petrarca, Poggio, LorezoValla, Erasmo, Budé, Ulrico de Hutten) ,
caracterizado por um esforço para elevar a dignidade do espírito humano,
valorizá-lo e, sobrepondo-se à Idade Média e Á Escolástica, restabelecer os
laços entre a cultura antiga e moderna’.[3]
Essa definição é a mais comumente expressada nos
livros de filosofia, porém entender o humanismo renascentista exclusivamente
nesta ótica seria limitá-lo a uma parte do que compreendeu todo o movimento
humanístico do renascimento. Desse modo, o Humanismo Renascentista tinha a
função de destacar e centralizar a dignidade do homem, distinto da compreensão
que se tinha do mesmo no período da Idade Média. Entretanto, segundoPaul
Kristellera preocupação central não era a valorização do homem, apesar de ter
sua relevância em importantes filósofos do renascimento, a saber, Petrarca, Manetti,
Pico Della Mirandolla, dentre outros humanistas[4], mas
do “estudo e na imitação da
literatura clássica, quer grega, quer latina”.[5]
No Dicionário
de Filosofia de Nicola Abbagnano
(2000, p.852) o conceito de ‘renascimento’ apresenta um elemento extra na
compreensão do período renascentista:
Renascimento (...). Designa-se com este termo o
movimento literário, artístico e filosófico que começa no fim do séc. XVI,
difundindo-se da Itália para outros países da Europa.(...) A partir do séc. XV,
porém, essa palavra passa a ser empregada para designar a renovação moral,
intelectual e política decorrente do retorno aos valores da civilização em que
, supostamente, o homem teria obtido suas melhores realizações: a greco-romana.
Assim, o R. foi forçado a ressaltar as diferenças que o distinguiam do período
medieval, em sua tentativa de vincular-se ao período clássico e de haurir
diretamente dele a inspiração para suas atividades.[6]
Essa
compreensão demostra um entendimento mais claro e preciso do renascimento
italiano. Entretanto, como afirma Kristelle (1995, p.12) os momentos mais
significativos e profundos desse período se destacam entre o séc. XII e XIII,
ou XV e VIII. Em questão de sua caracterização como ‘movimento literário,
artístico e filosófico’ não podemos descartar essencialmente a sua ligação,nos studia humanitatis, com a vida
profissional, civil e social, como elementos que fazem parte da especificidade
do Humanismo renascentista.[7]
Reale
(1990, p.31) é um dos comentadores que afirma sobre a relação existente entre o
período do Renascimento com o Medieval. Na
História da Filosofia ele apresenta duas teses entre esses dois períodos: a
daruptura econtinuidade. A primeira implica que o renascimento é um período
totalmente distinto e separado do período Medieval, a segunda se refere ao
renascimento como uma continuidade e consequência daquilo que foi marca
característica dos medievos. Entretanto, uma terceira tese deve-se destacar, a
de diversidade[8]que é o marco
característico deste período.
Contudo,
entre essas duas épocas Kristelle (1995, p.12) afirma que o Renascimento é o
período da história da Europa ocidental que vai entre 1300 e 1600. Sua
preocupação não é afirmar se houve um corte nítido no início e no fim do Renascimento
com o período medieval ou negar que houve uma continuidade. Sua postura é que o
Renascimento é caracterizado por uma fisionomia própria particular.[9]
Delimitando
um mapa cultural do período renascentista, Kristeller aborda algumas
especificidades do que se caracterizou o movimento Humanístico no renascimento,
além do mencionado acima. Um ponto de relevância a destacar no Renascimento é a
retomada dos escritos antigos da Antiguidade clássica, porém numa perspectiva
particular e própria de seu tempo [10].
Desse modo o Renascimento terá sua seleção e interpretação específica que
difere da ocorrida na tradição Medieval e Moderna, apesar de que na tradição da
Idade Média alta, alguns estudos dos autores latinos são retomados, mas numa
tentativa de melhorá-los e conceber um nono contorno humanístico.
Para
compreender o papel dos estudos clássicos é necessário começar pelo termo
‘humanismo’. Kristeller (1995, p.17) afirma que ‘ o termo humanismus’ é
derivado de outro termo semelhante: humanista, para indicar os professores, ou
docentes, ou estudiosos das disciplinas humanísticas. Isso se deu por analogia
com os estudiosos de disciplinas mais antigas, a quem eram aplicados os termos
de ‘legista’, ‘jurista’, ‘canonista’ e ‘artista’. Desse modo Kristeller infere
que o Humanismo renascentista se caracterizou como:
Um programa cultural e pedagógico que valorizava e
desenvolvia um importante, mas limitado, sector dos estudos. Este sector teve
como seu centro um grupo de matérias que não concerniam essencial mente aos estudos
clássicos ou à filosofia, mas ao que grosso modo se designar como literatura.[11]
Portanto,
o Renascimento se refere a uma grande produção literária. E acrescido aesses
estudos estava a moral. É importante frisar que os estudos literários estavam
integrados ao ambiente profissionalizante, social e político. Como Kristeller
mesmo escreve:
A enorme importância ligada a preocupação literária
[...] poderia ser ilustrada pelo estado profissional dos humanistas- muitos
dos quais desenvolveram atividades ou como docentes de disciplinas humanísticas
nas escolas secundárias ou nas universidades, ou como secretários de príncipes
e de Comunas- e pela maioria dos seus escritos, que são discursos, cartas,
poemas e obras históricas, em parte ainda inéditos ou até jamais consultados.[12]
Os
humanistas do Renascimento eram de um ponto de vista profissional os sucessores
dos ditadores italianos medievais, tendo uma heranças epistolográfica e de
oratória pública. Como acrescenta Kristeller, a novidade do renascimento se
consistiu em ‘introduzir a convicção de que para falar e escrever bem era
necessário estudar e imitar os antigos. ’ (KRISTELLER, 1995, p.20.) como
afirmado anterior mente. Nesse sentido a leitura filológica, vinculada às tradições
antigas fazia parte da especificidade do Renascimento italiano.
No campo dos estudos clássicos, o Grego
e o Latim tiveram contributos importantes no renascimento, além dos escritos Romano[13].
Nos estudos latinos houve uma ligação estreita com os interesses retóricos,
ligado a Idade Média e, de modo estreito, a autores clássicos desconhecidos no
período precedido.[14]Já
no campo dos estudos Gregos, os humanistas tiveram uma atenção particular e
especial, porém isso se deu devido a influência bizantina.
Por fim, outros dois elementos eram
característicos do movimento Humanistico no Renascimento: as tendências para
expressar aquilo que fazia parte das sensações, opiniões, experiências e as circunstânciasde
um indivíduo singular, daquilo que fazia parte da natureza humana. Um exemplo disso
é o fundador do humanismo renascentista Francesco
Petrarca que tanto na obra Rerum familiarium
libri (1336), como no Desecretoconflictumearumcurarumaborda
questões que envolve a natureza do homem no modo novo de conceber a experiência
humana. Outra característica do renascimento no modo de retornar aos escritos
antigos é as repetidas tentativas de reviver ou de restaurar as doutrinas
filosóficas de pensadores ou escolas particulares. Nesse sentido alguns
filósofos do renascimento tentaram reafirmar algumas doutrinas ou elementos
doutrinais de várias correntes da tradição filosófica e religiosa antiga como:
o epicurismo, o cristianismo, o paganismo, o estoicismo, o ceticismo, o
platonismo e aristotelismo.[15]
A influência das Confissões
agostiniana na carta do Monte Ventoux
Na obra L’umanismo
italiano da
Petrarca a Valla, Guido Cappelli faz algumas considerações sobre Francisco
Petrarca. Daí ele escrever:
Ainda hoje, pelo grande público Francisco Petrarca
(1304-1374) é mais conhecido, sobretudo, pelo estado único de fundador da
lírica moderna, o poeta que cantou os límpidos sonetos e refinada canções
Laura, a sua senhora. Ainda no aspecto de sua personalidade intelectual ele é
estreitamente conectado com seu papel central na história da cultura não
somente italiana, mas europeia em seu conjunto. Pela sua abordagem inédita aos
estudos clássicos, pelo modo de entendera função do intelectual e afirmar a sua
autonomia, pelo reconhecimento e influência profunda que sofreu sua obra e seu
magistério, Petrarca é considerado como o pai fundador do humanismo.[16]
Expoente e fundador do Humanismo
renascentista, Francisco Petrarca foi um grande produtor de obras literárias de
grande relevância no Renascimento, que marca, alémdos estudos humanísticos, a
preocupação filológica,literária e apresenta também uma retomada dos escritos
clássicos, sem desdconsider a centralidade do indivíduo, como protagonista de
si mesmo, como escreve Cappelli:
Um outro traço fundamental que Petrarca transmite ao
humanismo e a modernidade consiste na ascensão da centralidade do indivíduo,
seja como principal objeto de interesse da reflexão ética , seja como
protagonista dele mesmo, enquanto autor, de atividade literária e artística.
Petrarca alimenta uma verdadeira e própria obsessão pela construção de uma
identidade reconhecível, linear...(CAPPELLI, 2007, p.46, tradução nossa).
A 1ª carta do livro IV dos Rerumfamiliariumlibri (1336), também
conhecida como a Carta do Monte Ventoux,
além de outro escrito particular, a saber, oDe
secreto conflictumearumcurarum, são, entre outros, aquele de relevância que
marca algumas particularidades do pensamento de Petrarca e de sua influência no
que se considerou o humanismo renascentista. Uma particularidade contida nessas
duas obras é a influência do filósofo-teológo Agostinho e de sua obra mais
conhecida, ou seja, asConfissões.
A 1ª carta do livro IV dos Rerum familiarium libri, ou seja, a Carta
do Monte Ventoux, escrita por Petrarca, é dedicada à Diogini da Borgo San Sepolcro, ela retrata em prosa latinaa
ascensão de Petrarca ao Monte chamado de Ventoux. Na carta ele afirma que a
motivação para a subida se deu quando leu a história romana de Tito Lívio que
retratava a passagem em que Felipe Rei dos Macedônios subiu ao monte Emo, na
Tessália. Mesmo sem saber se o fato era verídico ou falso, Petrarca assume a
tentativa de fazer essa mesma experiênciano monte Ventoux. Procurou algum amigo
para fazer com ele essa empreitada, porém não considerava ninguém habilitado
seja físico ou moralmente como ele mesmo afirma:
Este era bastante preguiçoso; aquele bastante ativo;
este bastante débil; aquele bastante desembaraçado; este bastante estouvado;
aquele bastante prudente com respeito ao que desejasse; deste me espantava o
silêncio, daquele a verbosidade; deste o peso e a obesidade, daquele a magreza
e a fragilidade; defeitos que embora graves, em casa se suportam (...) mas que
na viagem se tornam realmente pesados.[17]
Dessa
forma, o único habilitado era seu irmão Geraldo. E juntos, pela manhã, os dois
irmãos, como dois jovens impetuosos, buscam concretizar o plano. O início de
percurso foi fácil, porém com o esforço, houve um cansaço imediato. Enquanto
Geraldo Seguia pelo atalho e subia mais alto, Petrarca, cansado, descia abaixo
por um percurso mais longo, porém mais plano e, por conseguinte, com muito
esforço, retoma o caminho do irmão:
Eu, mais cansado, descia abaixo, a para ele que me
chamava, de novo, me indicava o caminho mais direto, respondia que esperava de
encontrar uma vereda mais cômoda da outra parte do monte, e que não me
desagradava percorrer uma estrada mais longa, porém, mais plana. Pretendia
assim de desculpa a minha preguiça, e enquanto a minha companhia estava no
alto, aqui estou a vagar pelos vales sem avisar em parte alguma uma senda mais
suave; o caminho, ao contrário, aumentava e o inútil esforço me cansava. Enfim
irritado e enfadado deste meu vaguear, decidi apontar diretamente em direção do
alto[18]
Segundo Luís André Nepomuceno, no Princípios da Contemporaneidade:Análise da
carta fam. Iv 1, de Petrarca (2004, p.105): ‘a narrativa da carta deixa
entrever o sentido que o autor quer dar a ela: a viagem pelo Monte Ventoux é
símbolo da condição humana: suas alturas representama vida beata, a virtude;
sua encosta é o mundo terreno, dos vícios’. Nesse sentido o caminho seguido
pelo seu irmão Geraldo, o caminho reto,
é aquele que eleva o homem a condição de dignidade, a uma vida virtuosa,
enquanto Petrarca transita entre essas duas realidades. Esse fato se repetiu
mais três vezes, até que refletindo sobre si, Petrarca fala:
Saibas que aquilo que sentires mais vezes subindo
sobre este monte, se repetirá para ti e para tantos que queiram atingir a
beatitude; e se os homens não sabem fazer disso o julgamento justo, deve-se ao
fato de que os movimentos do corpo são visíveis, enquanto aqueles do ânimo são
invisíveis e ocultos. A vida que nós chamamos de feliz é posta para o alto, e
estreita, como dizem, é estrada que ali conduz. A demais, ao se erguer alto, se
impõem muitas colinas, e nós devemos proceder de virtude em virtude como por
elevados degraus;[19]
A abordagem desse escrito destaca a importância
fundamental da literatura petrarqueana no processo de construção e caracterização
do humanismo renascentista e da abordagem antropológica acerca da natureza do
homem. Sua obra põe em questão o homem e a problemática da consciência humana,
de sua interioridade e das contradições inerentes aos ser humano.Daí a ascensão
ao monte não se trata de um percurso físico, inserido na história, mas de um
percurso espiritual[20]
que entra em destaque o interior do homem, as questões relacionadas à sua
natureza e o percurso ético que lhe é imposto. Daí, Segundo CAPPELLI (2007,p. 48, tradução
nossa): ‘ No percurso metafórico do erro, de peranbulância física,vagância de
incertezas, de busca e de dúvidas, entra em questão a batalha da sua vontade
contra os fantasmas da <>’. Esse
movimento de incertezas e busca desordenada, que ora se move para uma vida
beata, ora cai na comodidade da vida terrena, dos desejos e paixões, fazem
parte do itinerário humanístico petraquesco, do aspecto e drama da vida humana,
como ele escreve:
Mais nada, evidentemente, se não a estrada mais
plana que passa pelos baixos prazeres da terra e que, a primeira vista, parece
também a mais cômoda; mas quando terás vagado muito, então serás finalmente
obrigado a subir sob o peso de um cansaço inoportunamente adiado em direção ao
topo da beatitude, ou então a cair despojado nos vales dos teus pecados; e se
nunca- horrorizo no pensamento- as trevas e a sombra da morte ali devessem te
atingir, deverás viver uma noite eterna em perpétuos tormento.[21]
Finalmente chegando ao Pico do monte,
Petrarca tem uma visãode êxtase: já é possível ver as nuvens abaixo, as regiões
da Itália, a que seu coração esteve sempre apegado, os Alpes gélidos e
nevoentos. Ali, no topo, Petrarcareflete sua juventudee medita seu próprio passado
sobre o fio condutor das Confissões de
Agostinho e afirma: ‘Quero recordar as minhas torpezas passadas e as
devastações da carne na minha alma, não porque as ame, mas para amar a ti, meu
Deus’[22].
Dar-se ai o momento de sua conversão.
Tem-se, dessa forma, uma parcial relação com Agostinho. A avaliação de sai
vida, o voltar sobre si, sua interioridade, e o reconhecimento de suas
fraquezas marcam essa analogia com a obra Confissões de Agostinho, porém, sua
conversão é parcial, porque não se remete a um religioso, mas ao próprio homem.[23]:
Muito são ainda os interesses que me
produzem incertezas e embaraços. Aquilo que, com frequência, eu amava não amo
mais; minto: o amo, mas menos; eis que menti de novo: amo, mas com vergonha,
com mais tristeza; finalmente disse a verdade. É mesmo assim amo, mas o que eu
amaria o que queria odiar; amo, todavia, mas contra a vontade, no
constrangimento.[24]
Depois
desse momento reflexão, pensa sobre sua vida, seus erros, sua existência,seus
desejos carnais, que ele então condena, apezar de não se livrar deles, Petrarca
pega o livro da Confissões que ganhara de Dionísio e lê o capítulo que falava da exortação e meditação do homem
nesses termos:
Para testemunho o chamo com Deus, de que onde
primeiro lancei o olhar ali eu li: ‘E os homens vão admirar os vértices dos
montes, as vastas ondas do mar, as correntes amplíssimas dos rios, a
circunferência do Oceano, as órbitas dos astros, e descuidam de si mesmo[25]
A
essa exortação Petrarca se espanta e fechando o livro indignado consigo mesmo
pela admiração que sentia pelas coisas terrenas, quando deveria ter aprendido
desde os filósofos pagão, que outra coisa não é de maior admiração do que o
homem. Petrarca recebe essa mensagem como uma verdade fundamental assim como
Agostinho quando leu uma passagem das cartas de Paulo. Entramos no ponto que
marca o renascimento e sua filosofia, que toma em questão a condição humana. A
subida, o desgaste, o cansaço, enfim, toda a trajetória até o cume do monte
cuminou numa busca que estava no seu interior, na descoberta do por quê e verdade das coisas. Esse projeto petrarqueano
é marca do humanismo moderno[26]
A
obra De secreto conflictumearumcurarum- O
secreto conflito dos meus pensamentos -(1342), de Petrarca, está dividida
em três livros e trata-se de um diálogo imaginário entre Petrarca, Agostinho e
uma Musa de extraordinária beleza denominada de Verdade, que não tem fala no
diálogo. É um diálogo em que Petrarca fala para si mesmo o seu próprio intimo.
No primeiro livro Agostinho o repreende
por estar com má vontade em querer mudar de vida. A comodidade aos prazeres
terrenos passa a ser o obstáculo. No segundo livro a mesma repreensão é feita,
porém a acusação se dá pela preguiça que o atormenta e a paixão aos clássicos,
dentre outros fatores que ele não confessa a Deus. No terceiro livro lhe é
apresentado o amor pela glória invés do amor por Laura. Portanto, o Secretumpode ser considerado com uma confissão, o testemunho de uma vida complexa e atormentada de
Petrarca. Segundo Cappelli (p.49):
Petrarca conduz [no diálogo] um tipo de minuciosa
autoanálise, começando do exame dos pecados capitais afim de alcançar e por em
discursão os seus mitos mais caros: o amor por Laura e o desejo de glória
literária- ‘Fantasmas ‘ e ‘vans opinião’ , segundo a linguagem estoica que
caracteriza a sua reflexão madura.[27]
Mas
nem no Secretum Petrarca tem uma forma definitiva de pacificação: no final,
contra a vontade a recomendação de Agostinho e os seus chamados a vontade, a
resposta do poeta é incerta e ambígua, e fatalmente se representa o fragmento
da alma que constitui a identidade moderna, aos afazeres mortais, a dimensão
humana: serei presente a mim mesmo quanto mais eu posso, e reunirei os diversos
fragmentos de minha alma, e demorarei em mi com atenção. Mas agora, enquanto
falamos, me é esperado muito e importante afazeres, porque ainda sou mortal.
A diferença
entre a abordagem filosófica agostiniana nas Confissões e aquela petrarqueana sobre a filosofia de Agostinho.
A obra Confissões,
escrita entre 397 e 398,de Aurélio Agostinho (354-430)é marca contextual do
período em que a Igreja, na figura de seus estudiosos, produzia um bom material
especulativo, filosófico-teológico a cerca da doutrina cristã católica, a fim
de firmá-la nos parâmetros da razão como recurso da fé, do revelado, e ao mesmo
tempo refutar a algumas correntes do pensamento reflexivo-místico-religioso
consideradas heréticas, como o pelagianismo, o arianismo, a astrologia, de
caráter místico, e o maniqueísmo: corrente da qual Agostinho estava inserido
antes de sua conversão.
Sua posição na história é marcada por conflitos
pessoais, divergências e conflitos de fé, enganos e desenganos, na qual a busca
da verdade, a partir da leitura de Cícero, é seu principal anseio de vida e
conduta. Nesse sentido, a abordagem Agostiniana na confissões, o título já o diz,é uma autoavaliação do percurso da vida do autor numa relação de diálogo
com Deus, onde é apresentado a trajetória de sua vida desde sua infância, com
ênfase ao momento de sua conversão e aderência ao cristianismo. Esse processo
de interiorização e reflexão tem duas finalidades: apresentar a natureza do homem,
suas fraquezas e vícios, marcada de pecados, desejos, que Agostinho avalia com
culpa, e exaltar a misericórdia de Deus, de sua graça e bondade. O mesmo Agostinho nas Retractationes (II,6)apresenta a especificidade da obra: ‘Os trezes
livros das minhas Confissões louvam o Deus justo e bom por meus males e bens, e
elevam até e a mente e o coração dos homens’(AGOSTINHO, 1984, p.10).
Desse modo, enquanto que a abordagem do
Agostinho, nas Confissões, é de um viés
religioso, que apesar de destacar elementos antropológicos, ou aquilo que faz
parte, do homem, está orientado em um caminho de conversão e orientação do
homem para Deus, em Petrarca, apenas o desta que se dá em um Agostinho que está
fadado ao erro, as paixões terrenas e precisa da purificação para atingir uma
vida beata, ou virtuosa. Em Petrarca a questão dotranscendental não é abordada,
mas o aspecto do humano, seja pelas inclinações terrenas, ou seja pela busca da
vida virtuosa,
Em Petrarca, tanto na Carta do Monte
Ventoux como no Secretu, a figura de Agostinho é inserida e
abordada no texto, porém, sua abordagem é tratada de modo diverso da própria
abordagem agostiniana. Se no Confissões
Agostinho fala de si, de sua natureza errante, que perambula no pecado, na
busca declinada e desordenada em desejos aos bens inferiores. Essa abordagem
tem um ponto teleológico. Ele fala de sua vida errante para enaltecer a
presença de Deus e sua importância exclusiva na vida do homem, sendo que este
só se torna pleno e feliz, quando converge sua vontade para seu criador.
Na
Carta
do Monte Ventoux Petrarca aborda
um Agostinho que indica um caminho de beatitude, pela purificação e vida
virtuosa, porém sem nenhuma ligação direta com Deus, no sentido de fundamento
de sua purificação. Neste sentido, o teor de religiosidade não é abordado. Isso
indica justamente a característica própria do humanismo no renascimento.
Em
quanto Santo Agostinho afirma que a direção de busca da felicidade e plenitude
do homem deve convergir para seu interior, pois ai está Deus, no seu mais
intimo, sendo particípio de sua alma, Petrarca também aborda um Agostinho que
orienta a procura do homem para seu interior, porém, o sentido dessa busca por
verdade está restrita ao homem, como ser sublime e de maior importância entre
os demais seres e realidades que cerca o homem. Portanto, enquanto Santo
Agostinho fundamenta o homem em Deus como promotor de sua natureza e objeto de
sua procura, Petrarca enaltece um Agostinho que aborda o humano e aquilo que
faz parte de sua experiência espiritual desvinculada do aspecto religioso.
Referência
bibliográfica
CAPPELLI,
Guido Maria. L’umanesimo italiano da
Perarca a Valla.1ª edizione italiana, , Carocci editore, S.p.A., Roma,
2010. (p.1-54)
AGOSTINHO,
Santo. Confissões. [tradução Maria
Luiza Amarante; revisão cotejada de acordo com o texto latino por Antônio da
Silveira Mendonça]. São Paulo; Paulus, 1984.
KRISTELLER, Oskar Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento. [Trad. Artur Morão]
Edições 70, Lisboa, Porugal, 1995.
[1] Graduando do curso de Filosofia/
Licenciatura na Universidade Estadual do Ceará.
[2]KRISTELLER, Oskar Paul. Tradição Clássica e Pensamento do
Renascimento. [Trad. Artur Morão] Edições 70, Lisboa, Porugal, 1995.Kristeller
é um expoente do pensamento humanístico no renascimento, na referida obra (p.12)
ele aborda o que foi o Humanismo Renascentista entre o século XIV e XV um
período marcado por uma fisionomia própria porém menos profundas do que as
acontecidas entre os séculos XII e XIII, ou XVII e XVIII.
[3] (FONTANA, História da filosofia
psicologia e lógica, 1969, p.82).
[4]
Cf.KRISTELLLER, 1995, p.27.
[5]Cf.
Ibid., p.130.
[6](ABBAGNANO,
2000, p.852.).
[7]KRISTELLE na Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento (1995, p.131.)
escreve: Quase todos os humanistas faziam parte de um de três grupos
profissionais, e por vezes pertenciam ao mesmo tempo a mais de um: ou eram
docentes (universitários ou de escolas médias); ou eram secretários de
príncipes ou de cidade; ou eram diletantes nobres ou ricos que combinavam os
afazeres ou a autoridade política com os interesses intelectuais de moda no seu
tempo.
[8] Segundo Reale: “A tese correta é
uma terceira. A teoria da ruptura pressupõe a oposição e a contrariedade entre
as duas épocas [: a época medieval e a do Renascimento], ao passo que a teoria
da continuidade postula homogeneidade substancial. Mas, entre a contrariedade e
a homogeneidade, existe a ‘diversidade’. Ora, dizer que o Renascimento é uma
época ‘diversa’ da Idade Média não apenas permite distinguir as duas épocas sem
contrapô-las, mas também identificar facilmente os seus nexos e as suas
tangências, bem como as suas diferenças, com grande liberdade crítica.”(REALE,
1990, p. 31)
[9]Sobre a ideia de contradição e
continuidade KRISTELLE (1995, p.12) escreve: “Não irei repetir ou refutar
argumentos formulados por outros, mas limitar-me ei a afirmar que por
Renascimento entendo o período da história da Europa ocidental que vai
aproximadamente de 1300 a 1600,[...]. Não pretendo afirmar que houve um corte
nítido no início e no fim do Renascimento, ou negar que houve uma boa dose de
continuidade.[...] Sustento simplesmente que o dito Renascimento tem uma
fisionomia própria particular, e que a incapacidade dos historiadores para dele
fornecer uma definição simples e satisfatória não autoriza a pôr em dúvida a
sua existência;”( KRISTELLE, 1995, p.12)
[10]Cf.
KRISTELLLER, 1995, p. 13.
[11]
(Cf. Ibid., p.17.).
[12]
(Cf. Ibid., p.18.).
[13]
Cf. Ibid., p.20.
[14] Kristeller comenta na Tradição Clássica e Pensamento do
Renascimento (1995, p.20.): Por outros lados alguns autores clássicos
latinos, como Virgílio, Ovídio, Séneca, ou Boécio, terem sido largamente
conhecidos durante a Idade Média não altera o fato igualmente óbvio de que
outros autores, como Lucrécio, ou Tácito ou Manílio, foram descobertos pelos
humanistas.
[15] KRISTELLER, 1995, p.28.
[16] (CAPPELLI, 2007, p.31, tradução
nossa)
[18]
Le Familiari, a cura di V. Rossi, vol. I,
Sansoni, Firenze 1933 (rist.anast. Le Lettere, Firenze 1997), pp. 153-61, trad.
It. Di E.Bianchi, Riccianchi, Riacciardi, Milano 1955, p.835.20. Ivi, p.839.
[20]Segundo Luís Andre Nepomuceno
(2004, p.104) escreve: Petrarca deixa claro, antes de tudo, que o sentido
atribuído a sua escalada, na carta, terá uma orientação espiritual. Parágrafos
adiante, esclarece que o alpinismo na montanha é metáfora de nossa escalada
espiritual, em que o cume serve como ponto máximo da espiritualidade e de
contemplação da condição humana.
[26]Cappellino L’umanismoitalisno da Petrarca a Valhaescreve:‘A estrutura das
citações clássicas ( sobretudo de Sêneca) e o duplo jogo de espelhos entre o
escritor Francesco Petrarca e Agostinho ( com meditação de Agostinho Dionísio)
não faz se não que remeter a inevitável condição do homem já moderno.’ (CAPPELLI,
2007, p.49, tradução nossa.).
[27](CAPPELLI, 2007, p.49, tradução
nossa.).
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