domingo, 28 de agosto de 2016

Vida Religiosa: percursos, percalços, equilíbrio e renovação.


Isaias Mendes Barbosa.

A Vida Religiosa (VR) iniciou-se, nas raízes da história humana, por uma inquietação e busca; uma falta e necessidade de completude; uma insatisfação e desejo profundo de nova vida até então não trilhada. É a experiência e o anseio da nova criatura (2Cor 5,17) que quis emergir e brota de dentro do humano à imagem e em comunhão com o Sagrado. Foi o descontentamento com o modo cultural, social, religioso-cívico de viver de épocas remotas (nas proximidades do século IV) e, ao mesmo tempo, uma sede por novas e radicais experiências com e para Deus, renovadamente na luz da fé, que fizeram com que homens e mulheres (os ascetas, os cenobitas, os mártires e as virgens, os padres do deserto, os cônegos regulares e as ordens mendicantes, os frades menores, as ordens dos pregadores, as congregações clericais e laicais, femininas e masculinas, os institutos seculares...) até hoje trilhassem caminhos inusitados, inéditos e esperançosos, de entrega radical e particular a Deus na Vida Religiosa Consagrada (VRC). 
É de comum acordo, para Contemporaneidade, que o período bastante significativo na história da Igreja e da Vida Religiosa Consagrada foi o Concílio Vaticano II. Nos documentos do Concílio, especificadamente no VI capítulo da constituição Lumen Gentium (Cf. CONCÍLIO VATICANO, 2007, p 222-231) e no decreto Perfectae Caritatis (Ibidem, p. 301-313), pode-se observar as significativas declarações e orientações que mudaram o itinerário da Vida Religiosa Consagrada até os tempos atuais. Tal evento é tão significativo que o Papa Francisco o retoma, na Carta Apostólica às Pessoas Consagradas (2014, p. 8), afirmando que: “[...] graças ao Concílio, de fato, a vida consagrada empreendeu um fecundo caminho renovado, o qual, com suas luzes e sombras, foi um tempo de graça marcado pela presença do Espírito”. 
Pode-se dizer que esse tempo de mudaças positivas, de graças divinas, na Vida Religiosa Pós-conciliar, foi marcado por autos e baixos, prós e contras. Esse extremismo provocou duas direções perniciosas que dificultaram a renovação, o caminhar e o progresso da Vida Religiosa, a saber, a) uma orientação que estava a favor das mudanças imediatamente e sem escrúpulo de discernimento moderado, b) e outra que estava contra qualquer mudança, preferindo se sustentar exclusivamente na segurança das estruturas antigas e dos meios tradicionais de vida consagrada. Entre os antagonismos extremistas, pode-se considerar que o meio termo, o equilíbrio e a equidade foram sempre os mais razoáveis, valioso e melhores caminhos trilhados na VRC. Em meio a tais mudanças positivas e negativas que ainda hoje se repercute nesse itinerário religioso, pontua-se alguns elementos reflexivos considerados relevantes para a identidade, a dignidade, o caminhar e a finalidade da Vida Religiosa Consagrada, e algumas questões para tal seguimento.       
Se no Concílio se afirmou que a santidade era para todos, isto é, nas diversas profissões e formas de vida (Cf. CONCÍLIO VATICANO, 2007, p. 223), tal declaração, apesar de ter acarretado reações diversas na mentalidade dos (as) religiosos (as) da época, não diminuiu o valor e a importância da VRC tanto para Igreja, a qual ela faz parte, como para a Humanidade, a qual ela dá testemunho evangélico e exemplo de santidade (Ibidem, p 222). Em razão da dignidade da Vida Religiosa, “as diversas famílias religiosas desenvolveram-se, tanto para o proveito de seus membros como de todo o corpo de Cristo” (Ibidem, p.227). E de uma forma distinta, especial e radial, a VRC constituiu, e ainda se constitui um “entrega[r]-se inteiramente a Deus amado acima de tudo, ligando-se a ele e a seu serviço de maneira nova e toda especial” (Ibidem, p.228). Para destacar sua importância em meios aos diversos modos de vida e santidade o Concílio afirmou que:
A vida religiosa imita e representa para sempre na Igreja, de maneira mais direta, a forma de vida adotada pelo Filho de Deus quando veio ao mundo, cumprindo a vontade do Pai e que ele mesmo propôs aos discípulos que o queria seguir. Manifesta, de maneira toda especial, as supremas exigências do reino de Deus, que está acima de todas as coisas terrestres. Demonstra enfim, a todos os homens, a força superior do reino de Cristo e o poder infinito do Espírito Santo, que atua admiravelmente na Igreja (Ibidem, p. 229).
   
Para uma reflexão mais coerente sobre a caminhada religiosa, se observou que a herança da tradição Antiga- clássica, grega e neoplatônica- cristianizada incutiu na Idade Média uma visão ideal cristã de busca pela “perfeição”, essa herança perdurou na Vida Religiosa durante muito tempo (quem sabe até hoje?). Isso se apresenta na Lumen Gentium  quando se afirmou sobre as famílias religiosas do seguinte modo: “Essas famílias proporcionam a seus membros um apoio estável, um modo de vida firme, caminho já bastante experimentado para a busca da perfeição [...]” (Ibidem, p.228, grifo nosso). Porém, tal afirmativa “caminho experimentado para a busca da perfeição” é um erro, isto é, um ideal ilusório. Está mais que claro, nos tempos atuais, que a perfeição em si é algo impossível para o ser humano. A História da Igreja é prova de que tal escrúpulo pela “perfeição” só trousse problemas inumeráveis para o progresso, maturidade e revitalização da VRC. Neste sentido, como solução para um renovado seguimento religioso, pode-se dá ênfase assertiva àquilo que aparece nas entrelinhas do próprio documento, a saber, “[...] o amor para com Deus e para com o próximo [...]” (Ibidem, p. 229). Essa afirmativa esquecida, mas já presente na tradição dos primeiros religiosos (monges), é essencial para a identidade, caminho e missão mais radical da VR. Sobre essa postura, o Teólogo Missionário Redentorista Pe. Lourenço, na A Teologia da Vida Consagrada, afirma:
O projeto original da vida consagrada no século quarto é tão simples que chega a ser chocante. É tão evangélico que revela como esquecemos o essencial, indo atrás de tantas coisas secundárias com nossas estruturas. Os Padres do deserto, e mais tarde as primeiras comunidades religiosas, somente queriam uma coisa: viver a aliança do seu batismo numa forma radical. Mais nada! E qual é a essência dessa aliança do batismo? Ela fala de amor: amor a Deus de “todo o coração, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento e com toda a sua força”(Dt 6, 4-9; Mc 12,28-30). [...] A segunda parte é que queremos amar ao próximo de uma forma radical (Mc 12,31) (LOURENÇO, 1999, p.18-19).

Outro ponto, no percurso religioso, que se poderia destacar como erros de caminhada foram às posturas unilaterais que se tomou, como o aspecto estritamente vertical da espiritualidade e missão da VRC. A tradição medieval e até moderna, nos seus primeiros séculos, persistiu muito na busca da santidade e salvação pela via estritamente espiritual, muitas vezes, sem a colaboração da comunidade religiosa e sem se considerar o seu aspecto humanitário. Isso foi problemático. Por outro lado no final da Modernidade, até os tempos atuais, se considerou radicalmete o aspecto humanitário da VRC, pelo aprofundamento e abertura às novas ciências humanas que surgiram, como a sociologia e a psicologia. A limitação de postura em relação a este aspecto humanitário foi a restrição do humano em detrimento do aspecto espiritual e transcendente que confugurou parte da natureza religiosa e humana. Neste sentido o problema de tais posturas unilaterais é à exclusividade e exageros, que ora valoriza um aspecto em detrimento do outro. O seguimento de Cristo Jesus (100% humano e divino) nos atesta a melhor forma de viver a vida religiosa, pelo sinal da CRUZ. Nela se observa o entrelaçamento entre dois pontos: o vertical e horizontal. O valor pelo aspecto espiritual, de fé e transcendental, e uma integração harmônica com o aspecto humanitário e suas limitações, constituem o caminhos mais plausível, necessário, renovador e progressivo para a VRC.
Uma orientação iluminante e essencial para nosso tempo, que é indicada para VRC, é “uma volta constante às fontes de toda a vida cristã, à inspiração original de cada um dos institutos religiosos e à sua adaptação às condições dos tempos que mudaram” (CONCÍLIO VATICANO, 2007, p. 302). A retomada das fontes originárias de cada Instituto possibilita para os (as) religisos (as) um reavivamento e consciência da sua própria história. Segundo acentua sobre isso, o Papa Francisco: tal percurso ajuda a “manter viva a identidade e também robustecer a unidade da família e o sentido de pertença dos seus membros” (FRANCISCO, Papa. 2014, p. 8). Não se trata, portanto, de uma arqueologia, mas de uma retomada dos elementos essenciais do carisma e o encontro de inspirações para as novas realidades contemporâneas. Outro ponto a considerar é uma renovação espiritual como elemento chave da VRC. “As adaptações às necessidades do tempo podem não resultar em nada, se não forem animadas por uma renovação espiritual, que deve ser considerada primordial em relação a tudo mais” (CONCÍLIO VATICANO, 2007, p. 303).
A reestruturação é algo que precisa se revisto na caminhada da VRC. É importante fazer um discernimento seguro e comunitário das estruturas utilizadas no modo de vida e missão religiosa. Algumas coisas, métodos e instrumentos de evangelização, não respondem mais aos tempos atuais. Todavia, não se trata de desconsiderar toda a estrutura, mas somente aquilo que não propicia o processo e progresso do carisma e não responde com testemunho profético aos tempos atuais. 
O modo de viver, orar e agir será aquele que melhor convenha às condições atuais, físicas e psíquicas de seus membros, de acordo com a índole e a natureza de cada instituto, as necessidades apostólicas, as exigências culturais e as circunstâncias sociais e econômicas; isso em toda parte, mas, de modo especial, nas missões (Ibidem.).

Sabe-se que: pelos conselhos evangélicos a vida religiosa está ordenada a fim de que todos os seus membros sigam Cristo e se unam a Deus (Ibidem, p.303). Tais votos são meios desse seguimento radical, porém, pode-se observar que os conselhos evangélicos não estão desvinculados de outros fatores fundamentais na própria vida cristã e na sua interação e testemunho profético na sociedade. O que a tradição anterior ao concílio Vaticano II observou sobre os conselhos evangélicos não respondeu definitivamente as questões surgidas na Modernidade e Contemporaneidade. E no pós-Concilio, salvo progressos significativos, teve-se grandes dificuldades para ressignificar os novos horizontes e radicalidades dos votos. 
É importante perceber que se teve aprofundamento em relação aos votos, no radical seguimento de Cristo e a sua doação total para o Reino. Isso foi de inspiração magnífica. Porém, faltou e ainda falta até certo ponto, uma maturidade e abertura para com outros elementos essenciais da Vida Religiosa como, a vida de fraternidade, a comunhão com a referida comunidade e a amizade religiosa. A fraternidade na VR é o coração da Igreja. Segundo Giuseppe Colombero (2003, p. 9), sustenta:
[...] é sobre esse aspecto da vida religiosa que se assenta concretamente a sua autenticidade e credibilidade. Mas é nessa área também que repousa a alternativa de sermos felizes ou infelizes, de fruirmos o sentimento prazeroso de ter feito a escolha certa, entrando num instituto religioso, ou de ter cometido um grande erro. Há escolhas na vida sobre as quais jogamos realmente tudo.

A comunidade é o lugar decisivo para a vida religiosa. “Quem escolhe a vida consagrada decide viver com outros, seus semelhantes, numa comunidade. Como consequência, crescer na vida espiritual implica também crescer no modo de estar com os outros [...]” (Ibidem, p.11). A própria Santíssima Trindade é exemplar para se viver na a dinâmica da ‘comunhão’ em comunidade.
Todavia outro fator que auxilia não só a maturidade dos votos, como a castidade, mas também a integração e realização na própria vida pessoal e comunitária religiosa, enquanto entrega e doação de si ao projeto do Reino, é a amizade na comunidade e até entre religiosos (as) . Isso se observa como fundamental na própria experiência de Cristo que quis seus discípulos juntos de si como amigos (Jo 15, 15). Este elemento é de suma importância na sustentação e testemunho da Vida Religiosa. Portanto, 
                                                                                                                              [...] há a necessidade de cultivar amizades profundas e afetuosas com nossos coirmãos na comunidade religiosa e apostólica. A maioria já experimentou como essas amizades são preciosas. Há muita riqueza e realização humana nesses relacionamentos, em que a intimidade é até muito maior do que com nossos próprios familiares. Amamos e somos amados no contexto comunitário, que realiza toda a nossa sexualidade humana e espiritual (LOURENÇO, 1999, p.180).

É importante percebermos que tais elementos citados só têm a contribuir para maturidade e radicalidade da opção de vida do (a) consagrado (a). Atualmente poderia se observar com alegria que as outras formas de vida cristã, a saber, laical e eclesiástica, podem contribuir muito para a vida religiosa, pois até certo ponto a caminhada religiosa não está distante ou separada das outras formas de vida. Pelo contrário, a VR se frutifica, apresenta ao mundo sua identidade específica e expande seu horizonte de radicalidade à Jesus Cristo, na medida em que ela se insere e se compromete com a realidade do diferente e do distinto, de modo profético. Não se trata, portanto, de uma perda de identidade, mas de uma caminhada fraterna naquilo que toca o comum das diversas opções de vida, desafios e missões evangelizadoras. Um discernimento aprofundado e maduro, um diálogo transparente, a um equilíbrio para os limites da vida religiosa sempre é necessário para a caminhada e radicalidade do compromisso batismal e dos votos evangélicos. 
Pode-se observar que no percurso da vida religiosa, após o Concílio Vaticano II, houve alguns percalços no seguimento da VRC. Até certo tempo, tanto o ativismo missionário e apostólico, assim como, após os escândalos da Igreja, uma busca por seguranças nas estruturas fechadas da Igreja, um reducionismo religioso ao aspecto contemplativo e exclusivamente espiritual, foram formas de Vida Religiosa Consagrada que trouxeram problemas, frustações, contra testemunho profético e até desistências lamentáveis. A moderação diante dos exageros de vida é um caminho que até os tempos atuais contribui para a observância do essencial, original e fundamental da VRC. 
O último ponto a considerar no caminhar da VRC é a questão da formação preparatória. É evidente que não se tem bons (boas) religiosos (as), com um índice maduro de capacidade, sem se promover uma boa, qualificada e digna formação.  Nesse aspecto é preciso observar se o processo formativo, com suas estruturas, está auxiliando na radicalidade e maturidade da VRC. Segundo o documento de Aparecida afirma sobre isso:
A realidade atual exige de nós maior atenção aos projetos de formação dos Seminários, pois os jovens são vítimas da influência negativa da cultura pós-moderna, especialmente dos meios de comunicação, trazendo consigo a fragmentação da personalidade, a incapacidade de assumir compromissos definitivos, a ausência de maturidade humana, o enfraquecimento da identidade espiritual, entre outros, que dificultam o processo de formação de autênticos discípulos e missionários. (DOCUMENTO DE APARECIDA, 2007, p.145.).
           

Diante de lacunas que se pode encontrar atualmente e até futuramente na Vida Religiosa, se faz necessário cada vez mais um projeto formativo integral: “humano, espiritual, intelectual e pastoral, centrado em Jesus Cristo Bom Pastor” (Ibidem, p.146). E atualmente poderia se considera como necessária uma compreensão sobre a realidade estrutural, política e social, do país onde se situa a vida e atividade religiosa. No caso do Brasil, atualmente, se faz necessário uma compreensão e maturidade nesse sentido.  Tais elementos contribuem para situar a VR na sua resposta profética e radical ao Reino de Deus.

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