quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

História sagrada e história profana na reflexão na Ciência Novade Giambattista Vico



Isaias Mendes Barbosa[1]

01 a 4/12/2014. (II Encontro Internacional de História, Memória, Culturas e Oralidade)


Giambattista Vico (1669-1744) serve-se,na Ciência Nova (1744), da História não como fato e consequência deste no tempo, mas como um saber dinâmico e dialogal com outros saberes, como a Filologia, Filosofia, Retórica, ou seja, com a erudição. Nesse sentido, a História tem a sua importância primordial na obra viquiana, pois se trata do conteúdode uma Ciência do Mundo Civil. Nesta obra, a história assume um caráter universal, por apresentar os fundamentos originários de todos os povos. Trata-se aqui de uma história universal da humanidade e a sua constituição nas três idades do mundo. A história tanto auxilia para realização da Ciência Nova, como apresenta suas especificidades. Neste sentido, a história sagrada e história profana assumem a sua relevância, na Ciência Nova, para um saber que tem como questão a vida civil. Tendo como base uma reflexão acerca da nuovascienza, de Giambattista Vico,apresenta-se aqui as seguintes questões:i)A História Sagrada na Ciência Nova de Giambattista Vico; e ii) A História Profana na Reflexão de Giambattista Vico.Essas duas perspectivas da História são contributos para história universal desde a sua gênese, como os primeiros povos, as nações gentílicas de caráteres fabulosos, como no seu percurso, pela ação da providência divina, até sua humanização.  Vico apresenta, assim, a nova importância das fabulas, dos mitos, do saber e das coisas que resultam do fazer humano, ou seja, a constituição da vida civil.

Ciência Nova. História Profana. História Sagrada.




Introdução

O conceito de História possui, nos diversos momentos do tempo, cultura e contexto social de um povo, uma significação e abordagem particular. Neste sentido, a história como pensou a tradição grega e romana possuiu uma abordagem distinta do período patrístico-escolastico e da modernidade.  Em Giambattista Vico (1669-1744) a História é um tipo de saber ligados a outros elementos culturais, morais, religioso, jurídico, ontológico e gnosiológico detodos o povos. Porém, se pensar a história composta por esses elementos já é um desafio e tanto, muito mais impressionante é pensar numa ‘história ideal’ ou ‘universal’ que abarca os princípios de todos os povos e nações. Esta é uma das novidades da proposta filosófica de Vico na sua bela obra: ScienziaNuova (1944).
Articulando História e Filosofia, também com uma abordagem filológica e uma boa erudição, Vico apresenta na sua Ciência Nova uma história ideal, da mente humana, da natureza comum humana, originária de todos os povos e dos princípios metafísicos, como leis, que regulam a vida comum das nações e do fazer humano. O presente artigo apresenta: i)A História Sagrada na Ciência Nova de Giambattista Vico; eii)A História Profana na Reflexão de Giambattista Vico.Com base na reflexão sobre a Tábua cronológica, que classifica a história de todos os povos, Vico considera a história sagrada e história profana como dois elementos fundamentais da história universal humana. A sua reflexão buscarefletir sobre essas duas históriasa fim de pensar os primeiros povos para sua humanidade, valendo-se de três idades: idade dos deuses, dos heróis e dos homens e nos seus princípios originários desta ciência civil. 

A História Sagrada na Ciência Nova de Giambattista Vico

Na Ideia da obrada Ciência Nova,Vico apresenta, com uma nova arte crítica, também metafisica, uma das novidades geniais
que sua obra irá tratar: a ciência do mundo civil, ou seja, o mundo das mentes humanas, mundo das nações. (Cf. VICO, 2005, p.3-4). Porém, para se chegar a esse saber como Ciência é preciso apreender a história de todos os povos e os seus princípios originários, os quais
fazem parte dos costumes de todas as nações, daquilo que todas as gentes há de concordante e comum entre si.
Para isso,Vico faz uma análise acerca da tábua cronológica, pois esta denota a cronologia histórica de todos os povos, conforme sua autoridade de Antiguidade. Esta tábua é o material em que Vico se serve, nas suas ‘Anotações’, para refletir sobre a origem de todos os povos e alencaros seus princípios originários. Segundo ele escreve:
Esta Tábua cronológica apresenta o mundo das nações antigas, que desde o dilúvio universal vai girando, desde os Hebreus, passando pelos Caldeus, Citas, Fenícios, Gregos e Romanos até à sua segunda guerra cartaginesa.E nela surgem homens ou factos famosíssimos, determinados em certos tempos ou em certos lugares pela comunidade dos doutos, homens ou factos esses que, ou não existiram nos tempos ou nos lugares em que são comumente determinados, ou não existiram de fato no mundo.(Cf. VICO, 2005, p.49).
Porém, Vico com uma sapiência genial, numa abordagem filológica e filosófica sobre a história de todas as nações na Tábua, apresenta as incoerências e contradições contidas esta e suas erroneas afirmações. Em suas Anotações acerca da Tábua cronológica, Vico considera: “Tudo isto se demonstra nestas Anotações, para dar a entender quanto à humanidade das nações tem os princípios incertos, ou indecorosos, ou defeituosos, ou vãos.” (Cf. VICO, 2009, p.49). Daqui pode-se inferira sua crítica aos grandes cronologistas e eruditos de sua época como JohnMarsham, John Spencer e Hermann Wits, que erroniamente tentaram classificar na ordem do tempo e antiguidade as diversas nações.
Nessa abordagem, Vico apresenta a presunção das nações e dos doutos que querem atribuir para si os primeiros começos do mundo, portanto, a autoridade da sua antiguidade em relação às demais nações. Nesse sentido, Vico apresenta a quem deve ser atribuído origem do mundo:
De uma tal reflexão acerca da vã opinião que tinham estas nações gentias sobre a sua antiguidade e, sobretudo, a dos Egípcios, deviam começar todo o saber gentílico, tanto para conhecer cientificamente este importante princípio: onde e quando teve ele os seus primeiros começos no mundo –como para apoiar com razões também humanas todo o credível cristão, o qual começa todo a partir disto: que o primeiro povo do mundo foi o Hebreu, do qual foi príncipe Adão, que foi criado pelo verdadeiro Deus com a criação do mundo.(VICO, 2005, p.57).
Para Vico, os primeiros povos ou nações são os Hebreus de onde provieram, pela tradição, o povo judeu e cristão. A justificativa dessa afirmativa se dá pelo conteúdo historiográfico, as fontes bíblicas, a Torá, e pela natureza de suas memórias que comprovam isso. Na orientação de Vico, os primeiros povos, chamados gentílicos, possuiamprincípios fabulosos, em que as fábulas são as primeiras histórias das nações originárias. Deste modo, as memórias do ‘pentateuco’, os primeiros escritos do povo Hebreu, são suas memórias escritas que comprovam ser composta de histórias fabulosas e possuem a autoridade para se classificar entre os primeiros povos da humanidade. Vico afirma: “ que deve ser um argumento invencível de que os Hebreus foram o primeiro povo do nosso mundo e de que preservaram, com verdade, as suas memórias na história sagrada desde os princípios do mundo.” (Cf. VICO, 2005, p.60).
Outro elemento que confirma essa afirmativa de Vico se reporta as duas verdades filológicas que ele, inspirado pelo que anunciou MarcoTerêncio Varrão, aproveita da Antiguidade dos Egípcios:
(...) ser-nos-á nisso grandemente proveitosa a antiguidade dos Egípcios, pois conservaram dois grandes fragmentos não menos maravilhosos do que as suas pirâmides que são estas duas grandes verdades filológicas. Das quais uma é referida por Heródoto: que eles reduziam a três idades todo o tempo do mundo que antes deles tinha decorrido; a primeira dos deuses; a segunda dos heróis; e a terceira, dos homens. A outra é que em número e ordem correspondente, durante todo esse tempo se tinha, falado três línguas: a primeira hieroglífica, ou seja, por caracteres sagrados; a segunda, simbólica, ou por caracteres heroicos; a terceira, epistolar, ou por caracteres convencionados pelos povos, (VICO, 2005, p.58)
Deste modo a história sagrada é concebida como a história do povo originário, que concorda com a primeira idade, a dos deuses, cuja língua deste tempo é denominada hieroglífica ou sagrada, composta por mitos e fábulas. Porém, resta a questão: e as demais nações, a que idade e tempo elas se reportam? E qual sua relação com o primeiro povo hebraico? Vico afirma que todas as nações passaram pelas três idades: “isto é, que para todas decorreu primeiro a idade dos deuses, dos quais em todas se acreditou ser rei Júpiter; e depois a idade dos heróis, que se consideravam ser filhos dos deuses, o maior dos quais se acreditou ser Hércules.” (Cf. VICO, 2005, p.59).A idade do homem se reporta ao saber humano e a vida civil.
Ainda sobre a História sagrada, Vico afirma na Dignidade 23:
A história sagrada é a mais antiga das profanas que nos chegaram, porque contam muito detalhadamente e a longo de um período de mais de oitocentos anos o estado de natureza sob o governo dos patriarcas, ou seja, o estado das famílias, baseados nas quais todos os políticos concordam que depois surgiram os povos e as cidades; estado do qual a história profana pouco ou nada nos contou e fê-lo de modo assaz confuso.(Cf. VICO, 2005, p.119)
A pretensão de Vico não é discorrer argumentando sobre a história sagrada, mas afirmar que esta tem, nas suas anotações acerca daTábua cronológica, o destaque de ser a primeira que possui memória significativa e com propriedade para ser a mais antiga de todas as nações gentílicas. Esta possuiu a revelação divina e os princípios metafísicos para sua civilização. As demais, por sua vez, têm a ação da providência divina para sua civilização.
Outra prova que destaca a História sagrada como a primeira e separada da História profana é o fato dela não ter surgido ou se originado com nenhuma ligação com outras nações gentílicas, pelo que foram ignoradas por todas. (Cf. Vico, 2005, p.60). Sendo que todas seguiram os mesmos princípios apresentados nessa ciência sem saber uma da outras. Porém, com o comercio,a navegação e as guerras cada nação foi conhecendo outras.
Em concordância com a primeira idade na filosofia viquiana, todas as nações primeiras, denominadas de gentílicas, tiveram ASsuas histórias fabulosas em que os deuses conviviam na terra com os homens, nos seus caráteres fantásticos. Disso se afirma que todas as nações gentílicas tiveram seus deuses e, separando-se da história sagrada, esta história se constitui como história universal profana com seus princípios fabulosos. (Cf. VICO, 2005, p.70).

A História Profana na reflexão deviquiana

Na segunda secção, a dos Elementos, Vico apresenta as 144 Dignidadespara conceber forma a matéria refletida sobre a cronologia. Essas Dignidades são máximas que fundamentamaCiência Nova. Já que a Tábua cronologia apresenta elementos confusos, obscuro e contraditório, ele irá refletir sobre a história de todos os povos, porém, com base nas máximas gerais, axiomas, que concordam com as três idades e destacam o fundamento do certo de todos os povos, daquilo que faz parte das coisas humanas e de sua vida prática, e os princípios metafísicos e comuns em que concordam história de todos os povos.
Algumas Dignidades esclarecem o modo como Vico estabelece a relação entre a História Sagrada e História profana. Na 24ª Dignidade ele escreve:
A religião hebraica foi fundada pelo verdadeiro Deus com base na proibição da adivinhação, baseada na qual surgiram todas as nações gentílicas. Esta Dignidade é uma das principais causas pelas quais todas as nações antigas se dividiu entre Hebreus e Gentes. (Cf. VICO, 2005, p.120).
Esta Dignidade estabelece sobre a relação entre História Sagrada e História profana ou das gentes. Foi da comunidade Hebreia que provieram às nações gentílicas. Isso se deu quando estes primeiros homens, que contrários aos preceitos da tradição Hebraica fizeram todo o diverso e contrárioa Justiça divina e a conservação de sua natureza humana sociável, e vagaram pela grande selva, num erra ferino, se relacionando com as mulheres relutantes e esquivas, tivendo filhos que, abandonados nas selvas, chegaram a um estado selvagem e tiveram educação ferina e pela mesma educação, solitária, na floresta, tornaram-se gigantes.(Cf. VICO, 2005, p.205).
Neste sentido, Vico defere acerca da 26ª[2] e 27ª Dignidades[3]:
Estas duas dignidades vêm mostrar todo o primeiro género humano dividido em duas espécies: uma de gigantes, outra de homens de justa corporatura: aqueles Gentios, estes Hebreus (diferença essa que não pode ter nascido de outra maneira senão da ferina educação daqueles e da humanidade destes) e, consequentemente, que os Hebreus tiveram origem diferente daquela que tiveram todos os Gentios.(Cf.VICO, 2005, p.122).
Vico divide a História universal em dois blocos: a história sagrada, já comentada, e a história profana, ou do povo gentílico. Esta história dos primeiros povos, em seu estado ferino, de mentes ferozes e violentas, destaca o primeiro processo para a humanidade. E isso aconteceu pela providência divina.
Com o Dilúvio Universal houve exalações de ar na terra e relâmpagos, trovões e raios. Desse modo, com essas manifestações da natureza, os primeiros homens primitivos,pela robusta imaginação e pelo temor, conceberam os elementos da natureza como divindades. E assim fizeram desses elementos o seu Júpiter, dentre outros deuses.Do exposto temos o primeiro dos três princípios da Ciência Nova viquiana: a religião.
Ele se reporta à primeira idade do homem que, pela confusão dos sentidos e pela natureza da mente ematribuíramas coisas naturais um caráter de divindade. Porém, isso se realizou pela providência divina como afirma Vico na 31ª Dignidade:
A providência divina deu origem a que os ferozes e violentos se encaminhassem para humanidade e que se ordenassem as nações, ao despertar neles uma ideia confusa da divindade, que eles, devido à sua ignorância, atribuíram a quem ela convinha; e assim, com o pavor desse divino imaginado, começaram a submeter-se a uma certa ordem.(VICO, 2009, p.123)
Daí Vico concebeu como se formou os primeiros povos, como se justifica a história sagrada com a história profana articulada ao mesmo tempo com a história universal, ou seja, a história de todos os povos. Portanto, cada idade se reporta a uma natureza, a um estado de mente, a um direito natural a um governo, a uma língua, a um falar e a uma jurisprudência, que no seu fazer humano e na ordem das coisas produzidas por ele e pela providência divina foi conduzindo as nações a sua humanidade. 
Considerações Finais

Em GiambattistaVicoa História ganha uma nova função na Ciência Nova: promover o material que concorde com os princípios metafísicos para sociabilidades de todos os povos na vida civil. Ela não é simplesmente fato e as consequências deste, mas tem uma abrangência significativa na constituição e na vida civil da humanidade. Na Ciência Nova, História não é um saber independente, em si e por si, mas está interligada e compartilha com diversos tipos de saberes, como os pertencentes às disciplinas humanistas, do renascimento, e as ciências humanas.  Esta obra abarca um conjunto de saberes que a modernidade estava desprezando. Por isso Vico afirmar em sua autobiografia: ser um estrangeiro em sua terra.Se na Grécia Antiga o saber era conjunto e interligado, na modernidade, com Vico, essa pretensão se refaz. Este por sua vez, só será valorizado no século XIX até então.
Ao mesmo tempo que Vico critica um único método de abordagem, a saber, o racional-geométrico,  para todo o conhecimento na natureza eno homem,  como fizera Descarte, ele promove um novo tipo de saber e Ciência que não separa saberes da tradição com a vidacivil prática. O contributo de Vico com a História está nesse diálogo desta com outros saberes para uma finalidade prática: conduzir as nações a sua Humanidade, tendo como fundamento a metafísica civil e o direito de todas as gentes.

Referência Bibliográfica

VICO, Giambattista. Ciência Nova. Trad. Jorge Vaz de Carvalho. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2005.



[1] Aluno do curso de filosofia/licenciatura da Universidade Estadual do Ceará.
[2]: Os gigantes foram por natureza corpos vastos, que viajantes dizem terem sido encontrados no sul da América, no país dito de lospatacones, desajeitados e ferocíssimos. E deixadas as razões vãs. Ou indecorosas, ou falsas que nos foram trazidas pelos filósofos, recolhidas e seguidas por Chassagnon, De gigantibus, são-nos trazidas as causas, em parte física e em parte morais, onde falam da gigantesca estatura dos antigos germanos; e, por nós examinadas, formaram-se com base na ferina educação das crianças. (Cf. VICO, 2005,p.121, Dig.XXVI.).

[3]: “A história graga, à qual devemos tudo o que possuímos sobre todas as outras nações da antiguidade gentílica (à excepção da romana), toma as suas origens a partir do dilúvio universal e dos gigantes”. (Cf. VICO, 2005, p.121, Dig.XXVII.).

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